28/03/2024 - Edição 540

Poder

Devassa inédita na diplomacia coloca Itamaraty em estado de alerta

Publicado em 18/06/2021 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Uma das maiores devassas na diplomacia brasileira coloca em estado de alerta embaixadores e a cúpula do Itamaraty. Solicitado pela CPI da Pandemia, o Ministério das Relações Exteriores foi obrigado a entregar mais de 2 mil páginas de telegramas, emails, instruções e ofícios internos sobre a reação do governo diante da covid-19.

Mas os documentos foram classificados como sigilosos e agora são alvos de uma batalha sobre a retirada do caráter confidencial de suas informações. O Executivo teme revelações de dimensões importantes sobre o papel da rede de postos diplomáticos e até mesmo um impacto nas relações com parceiros pelo mundo.

No total, o Itamaraty submeteu 700 documentos, com mais de 2 mil páginas. São troca de informações e telegramas entre a sede da chancelaria em Brasília e os diferentes postos diplomáticos do país pelo mundo. Há ainda documentos internos e comunicações entre o chanceler e diferentes departamentos do Ministério das Relações Exteriores.

Para pessoas próximas à CPI, num governo onde grande parte das decisões é tomada sem registros oficiais e em esquemas extraoficiais, os documentos do Itamaraty são considerados como uma "mina de ouro" e uma rara prova material de decisões que foram tomadas desde o início da pandemia.

Técnicos, inclusive, acreditam que esse seja a maior abertura de documentos oficiais da diplomacia brasileira nas últimas décadas. "É a maior devassa", confirmou um assessor parlamentar, na condição de anonimato.

De acordo com fontes no Senado, os documentos do Itamaraty receberam uma classificação de "sigilosos" quando deixaram a chancelaria, mesmo em caso de telegramas que eram considerados como ostensivos ou que poderiam ter sido obtidos por meio da lei de acesso à informação.

Irritados, os senadores passaram a avaliar a possibilidade de retirar todo o sigilo. Mas o gesto levou o Itamaraty a fazer uma campanha nos bastidores para evitar tal medida.

O argumento do governo é de que cada um dos documentos teria de ser analisado antes de ser tornado público, já que poderia expor o Brasil diante de parceiros internacionais, afetar os interesses estratégicos e ainda eventualmente revelar informações de caráter privado de funcionários.

Pelas regras, algumas das classificações de confidencialidade poderiam significar a impossibilidade de acessar os documentos por cinco ou 15 anos. No caso da viagem do ex-ministro Ernesto Araújo para Israel, vários dos telegramas vivem essa situação e estão selados até o ano de 2035.

Mas fontes que estão avaliando a documentação consideram que o material tem um valor fundamental para o inquérito e que parte do argumento do Executivo é uma tentativa de se evitar que os dados sejam obtidos pela CPI. Vazamentos para a imprensa já revelaram a dimensão dos dados que podem surgir das mais de 2 mil páginas.

A coluna, por exemplo, revelou um dos telegramas que aponta que a Covax Facility ofereceu 86 milhões de doses ao Brasil e prevendo até devolver o dinheiro se o governo optasse por mudar de ideia. Mas, ainda assim, o país comprou apenas 43 milhões de doses.

Reportagem da Folha de S. Paulo também revelou como o Itamaraty foi acionado para buscar insumos para a produção de cloroquina, enquanto na OMS o ex-ministro Eduardo Pazuello tentou vender a ideia de tratamento precoce.

Pela análise preliminar que já começa a ser realizada, fica claro ainda para a CPI que Ernesto Araújo desempenhou um papel importante na estratégia do governo na pandemia.

O ex-chanceler encarnou a ideologia da extrema-direita na diplomacia e passou a ser acusado até mesmo internamente de usar uma das instituições mais tradicionais do Brasil para atender aos objetivos da ala mais radical do bolsonarismo.

Procurado pela coluna, o Itamaraty não respondeu aos pedidos de esclarecimento.

Crise Universal

O reino de Edir Macedo começa a ruir. Ao menos na África. Depois de enfrentar um terremoto em Angola – com a perda do controle de sua igreja, pastores brasileiros expulsos, Record TV local suspensa e dirigentes acusados de lavagem de dinheiro e associação criminosa –, o bispo brasileiro, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, se depara agora com problemas semelhantes na África do Sul.

É justamente para lá que o governo Bolsonaro indicou o bispo e ex-prefeito do Rio Marcelo Crivella, sobrinho de Edir Macedo, para o cargo de embaixador.

Bispos e pastores locais começaram a se rebelar contra a direção brasileira da igreja no início deste ano, e a revolta ganhou corpo nas últimas semanas. Além de organizarem um protesto, dissidentes acusam a ala brasileira de supostos crimes como lavagem de dinheiro, racismo e imposição de vasectomia aos pastores – um roteiro parecido com o de Angola.

“Os atuais pastores e suas esposas estão se revoltando contra o racismo, as injustiças, a lavagem de dinheiro e os privilégios na igreja”, me disse o ex-pastor sul-africano Luthando Jumba, um dos líderes do movimento. Ele tem se posicionado nas redes sociais contra a liderança brasileira da Universal.

As denúncias na África do Sul estão sendo encaminhadas à Comissão para a Promoção e Proteção dos Direitos das Comunidades Culturais, Religiosas e Linguísticas, órgão do governo local. Em fevereiro e março, o órgão recebeu queixas e colheu depoimentos de religiosos e familiares de pastores. Houve relatos de esterilizações forçadas, humilhações, maus-tratos e até supostos rituais satânicos, segundo noticiou a imprensa sul-africana.

Para defender os interesses de religiosos e ex-membros da Universal na África do Sul, os dissidentes se organizaram e criaram a Vision Trust Foundation. “Temos bispos, pastores, esposas de pastores e auxiliares. Os pastores estão falando conosco, mas não podem fazer isso publicamente ainda”, diz Jumba. Essa cautela se deve ao receio de represálias.

Em 16 de junho, quarta-feira, 16, um grupo de pastores e ex-pastores, obreiros e fiéis realizaram uma manifestação em frente à sede da Universal, em Joanesburgo. Os manifestantes pediram autorização oficial ao Departamento de Polícia Metropolitana para o ato, mas, na véspera, o evento acabou sendo proibido. Ainda assim, foi realizado.

Participaram cerca de 100 pessoas, segundo Jumba. O ato não reuniu mais religiosos, de acordo com o ex-pastor, em virtude de o país estar em lockdown parcial por causa da pandemia do coronavírus. Os manifestantes distribuíram um manifesto pedindo liberdade de expressão na igreja, o fim das campanhas de arrecadação, o fim do racismo e a saída do país de bispos racistas, não à vasectomia, fim do controle sobre as redes sociais dos pastores e construção de escolas e clínicas pela igreja.

‘A África acordou’

Jumba contou ter entrado na Universal em 1997 e exercido a função de pastor por 12 anos e meio, chegando a ser o segundo responsável na sede central, em Joanesburgo. Afirmou ter saído da igreja por vontade própria, “por causa do racismo e das injustiças” que teriam sido praticadas, de acordo com ele, por Marcelo Pires, bispo responsável pela Universal na África do Sul e nos países africanos de língua inglesa.

São acusações semelhantes às que a igreja sofreu em Angola. No final de 2019, um grupo de 330 bispos e pastores angolanos da Universal divulgou um manifesto com críticas e acusações ao comando da igreja. Em junho do ano passado, eles assumiram o controle da instituição no país.

A Reforma, como foi chamado o rompimento entre ex-bispos e ex-pastores e Edir Macedo, foi apoiada pelo governo. As denúncias de lavagem de dinheiro passaram a ser investigadas pelas autoridades e, em dezembro do ano passado, o governo angolano reconheceu os dissidentes como os novos líderes da Igreja Universal local.

Na África do Sul, Jumba me disse que “evidências” de lavagem de dinheiro estão sendo colhidas e serão encaminhadas às autoridades para possíveis investigações. “É hora de a África do Sul ser liderada pelos sul-africanos”, afirmou.

É um discurso semelhante ao do ex-pastor angolano Tavares Armando, que tem conclamado os seguidores da igreja em países como Moçambique, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Madagascar a repetirem a experiência da revolta angolana.

“A África acordou. É o momento de dar um basta. O continente tem de ser respeitado. Os irmãos de língua inglesa da África do Sul já estão aderindo”, comemorou Armando em um vídeo.

“São as mesmas denúncias que os irmãos angolanos fizeram. Será que os irmãos angolanos combinaram? É claro que não há combinação. São acontecimentos em cadeia. Por que os mesmos crimes apontados em Angola – a ponto de Edir Macedo ser punido e expulso de Angola – podem ser verificados e investigados, que vai se ver que são os mesmos, telegraficamente e minuciosamente, cometidos em outros países”, completou.

O bispo angolano Felner Batalha, porta-voz da Reforma, afirma que o movimento de contestação à ala brasileira da igreja, iniciado em Angola, deve se repetir em muitos outros países.

“A Reforma vai ocorrer em todos os países. E é irreversível. Onde existe a Igreja Universal existem os mesmos problemas, como discriminação e a opressão”, ele me disse na semana passada. “Há uma necessidade de se voltar à essência do Evangelho e do Cristianismo, e essa é a finalidade da Reforma. Houve um desvio daquilo que são os princípios basilares do Cristianismo e do próprio Evangelho de Jesus Cristo”.

Crivella para acalmar os ânimos

Felner Batalha afirmou acreditar que a Universal pediu ao presidente Jair Bolsonaro a nomeação do bispo Marcelo Crivella na África do Sul justamente “por recear que a Reforma ecloda no país”.

O objetivo seria evitar um novo racha na Universal e também que novas rupturas na igreja se espalhem por países africanos. A indicação de Crivella ainda não foi oficializada. Caso se efetive, o ex-prefeito do Rio de Janeiro seria uma espécie de embaixador da Universal na África do Sul – e não, de fato, um embaixador do Brasil.

O sobrinho de Edir Macedo, no momento, não pode sequer sair do Brasil. Ele foi preso em dezembro do ano passado acusado por associação criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção ativa e passiva. Em fevereiro, sua prisão foi revogada – mas seu passaporte, apreendido. Por isso, foi proibido pelo Supremo Tribunal Federal de deixar o país.

Sua nomeação para o cargo de embaixador dependeria de o STF rever essa decisão e também da aceitação de seu nome pelo governo da África do Sul e de uma aprovação após sabatina no Senado brasileiro.

Diplomatas ouvidos pelo Intercept consideraram a indicação “lamentável e um absurdo”. “Não é por ser judeu, católico, evangélico ou por não ter religião. É que o estado brasileiro é laico e, não me consta que, até hoje, bispo católico tenha sido indicado para ser embaixador”, me disse Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do governo Lula.

Outro diplomata, embaixador e ex-ministro, que preferiu falar reservadamente, disse não ver chances de êxito na nomeação de Marcelo Crivella para a embaixada na África do Sul. O governo sul-africano pode nem aceitar, e o Senado também deve barrar, em sua avaliação.

Com o apoio de Bolsonaro, Crivella e a Universal se esforçam para tentar viabilizar a indicação. Em 8 de junho, o bispo e também cantor gospel – que fala inglês e zulu, língua dos povos originários do sul da África e morou na África do Sul nos anos 1990 –, postou nas redes sociais uma de suas canções, “África”.

No clipe, imagens do continente africano e uma inscrição em zulu, “Ngi Buyela”, que quer dizer: “Estou voltando para casa”.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *