25/04/2024 - Edição 540

Poder

Chavismo caboclo

Publicado em 11/06/2021 12:00 -

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Foram dois movimentos paralelos, mas têm tudo a ver e acendem a luz amarela em gabinetes e consciências neste país: a decisão do comandante do Exército, que jogou no lixo os princípios basilares das Forças Armadas para agradar ao presidente Jair Bolsonaro, e o ataque também covarde da polícia pernambucana a manifestantes pacíficos, para testar limites da nossa democracia. 

Tudo está dominado e é indefensável que oficiais e policiais se calem em nome da disciplina e da hierarquia. O capitão insubordinado e suas tropas podem implodir esses princípios à vontade, porque os que teriam de garanti-los alegam que “têm de respeitar a hierarquia”. 

Ele se lixa para os protocolos das três Forças, como já fazia há mais de 30 anos, na ativa, mas os que prezam a farda e estão indignados, estupefatos, adotam a mesma postura que criticam do comandante Paulo Sérgio: condenam, mas aos sussurros, no conforto dos seus lares. 

Bem fizeram os generais Fernando Azevedo e Silva e Edson Pujol, o almirante Ilques Barbosa e o brigadeiro Antônio Carlos Bermudes, ao comandar as Forças Armadas como instituições de Estado, não de governos que vêm e vão. Eles tinham um limite e caíram por saber de que lado da história ficar. Agora, precisam agir e falar. 

Devem estar se remoendo diante da decisão de Paulo Sérgio, com aval do Alto Comando, de deixar para lá a grave insubordinação de Pazuello, que passou por cima do Estatuto Militar e do Regimento Disciplinar do Exército para se aboletar num trio elétrico da campanha pré-eleitoral de Bolsonaro. Nem uma mísera advertência? 

A desculpa de Pazuello é que não era ato político. Não?! Então, era o quê?! Ele, deliberadamente, fez o comandante e o Alto Comando de bobos. E só fez isso, e deve ter dado gargalhadas ao fazê-lo, porque tinha costas quentes. “O que manda” engoliu “os que obedecem”, de véspera, na Amazônia. Instalou-se a anarquia, é só aguardar as eleições de 2022 para ver. 

Ao pularem no barco de Bolsonaro em 2018, os militares achavam que teriam a bússola e o manche. Ledo engano. O capitão encheu o Planalto de generais e o governo de variadas patentes, mas subjugou todos eles. “Quem manda sou eu”, repete, enquanto dá medalha para o dócil comandante do Exército e um gordo aumento para “seus generais”, em meio à pandemia e ao desemprego feroz. 

Não se ouve nenhum oficial-general das três Forças capaz de defender a impunidade absurda de Pazuello, mas, aparentemente, empurraram para dois civis, os ex-ministros da Defesa Raul Jungmann e Aldo Rebelo, o papel de porta-vozes do descontentamento. Entre corajosas exceções, mais uma vez, o general Santos Cruz

Como satisfação, ou tentativa de acalmar os ânimos, oficiais sérios e com senso de responsabilidade informam que a sensação de vitória de Bolsonaro no episódio é só isso mesmo, uma sensação. Segundo eles, o presidente alimentou a cizânia, aprofundou a divisão e disparou o sinal de alerta. Onde ele quer chegar? Quer fazer as Forças Armadas de marionetes? 

Essas questões se tornam ainda mais inquietantes com o comandante da PM do DF usando o slogan eleitoral de Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), e vai-se desenrolando o fio que permitiu que a polícia de Pernambuco cegasse dois civis indefesos num protesto pacífico. 

As outras duas pontas já estão desencapadas: o vínculo comprovado com as milícias e a obsessão de armar e ampliar a munição de civis. 

Se Bolsonaro perder a reeleição e um bando de alucinados invadir o Congresso e o Supremo, o que fará a PM? E como reagirão as Forças Armadas? Esse risco é tão óbvio que só não vê quem não quer. O Exército não quer ver? E a Marinha? E a Aeronáutica? Todos vão tapar olhos, ouvidos e bocas, esperando o carnaval chegar?

Chavismo caboclo

A escalada da crise protagonizada pelo presidente Jair Bolsonaro com os militares sugere que o País corre o sério risco de sofrer forte degradação democrática, a ponto de assemelhar-se à Venezuela chavista.

“Os militares daqui estão enfrentando o que os da Venezuela enfrentaram no início do período chavista”, comparou Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa no governo de Michel Temer. Em entrevista ao Estadão, Jungmann disse que “Bolsonaro persegue o modelo de Chávez”, isto é, quer transformar as Forças Armadas em braço do bolsonarismo. “Os militares, aqui como lá, guardadas as devidas proporções, evitam o confronto direto com o comandante para não ferir a Constituição, mas o dilema é que assim correm o risco de ver a Constituição destruída junto com a hierarquia e a disciplina”, alertou Jungmann.

Na mesma linha foi o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. Também ao Estadão, Maia descreveu como Bolsonaro está seguindo rigorosamente o manual chavista: tenta envenenar o processo eleitoral, ao questionar as urnas eletrônicas; hostiliza a imprensa livre; intervém na estatal de petróleo, submetendo-a a seus interesses políticos; busca transformar as Polícias Militares estaduais em milícias bolsonaristas; neutraliza o Congresso por meio de distribuição desavergonhada de verbas, abaixo dos radares republicanos; e ataca sistematicamente o Supremo Tribunal Federal, além de inocular os órgãos de fiscalização e controle com a toxina bolsonarista. Como disse a historiadora Lilia Schwarcz à revista The Economist, basta ler o Diário Oficial para perceber que Bolsonaro dá “um golpe por dia”.

Já advertimos várias vezes, neste espaço, sobre a marcha bolsonarista rumo a uma versão cabocla do chavismo (ver especialmente os editoriais O bê-á-bá do chavismo, de 31/1/21, e A hora da verdadeira oposição, de 4/2/21). Os sinais dessa degeneração são tão evidentes que não podem ser mais ignorados, especialmente agora, quando Bolsonaro dá um passo concreto na tentativa de transformar as Forças Armadas em sua guarda pretoriana.

A crise está contratada. Ao levantar dúvidas sobre o processo eleitoral, ao mesmo tempo que amalgama os militares a seu governo, Bolsonaro semeia confusão e tenta intimidar quem porventura não aceite viver sob seu tacão.

Há um ano, à TV Cultura, o ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Luís Roberto Barroso, descreveu com precisão o cerne do problema: “As Forças Armadas não podem se identificar com o governo porque numa democracia existe alternância de poder. Se as Forças Armadas são governo e o governo é derrotado nas urnas, as Forças Armadas são derrotadas e acabou. Evidentemente isso não pode acontecer”. Na mesma ocasião, o ministro Barroso também já alertava para o que chamou de “chavização”, isto é, a multiplicação de militares em cargos no governo: “Isso é o que aconteceu na Venezuela”.

Não é prudente ignorar tantos alertas e tantos sinais. Quando Bolsonaro se refere ao Exército como “meu Exército”, não é mera figura de linguagem. Ao dobrar o número de militares no governo em relação à administração de Temer, Bolsonaro deixou claro que pretendia enredar as Forças Armadas em seus devaneios golpistas. Considerando-se que cresceu em cerca de 30% a presença de militares da ativa no governo, essa relação fica ainda mais forte – e o caso da submissão humilhante de um general, Eduardo Pazuello, aos interesses de Bolsonaro, sob a vista grossa do Comando do Exército, foi o ponto alto, até agora, dessa genuflexão militar ao presidente.

Timidamente, o Congresso começa a reagir à militarização do governo promovida pelo bolsonarismo, ao articular uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe a atuação de militares da ativa em cargos de natureza civil no Executivo. É uma medida necessária, pois aos militares da ativa é vedada a atividade política – que é essencialmente o que se faz num governo. Mas talvez seja tardia: a esta altura, a identificação forçada por Bolsonaro entre ele e os militares já não depende mais de quem usa o crachá do governo.


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