29/03/2024 - Edição 540

Poder

Governo negou compra de 43 milhões de doses de vacinas da Covax

Publicado em 11/06/2021 12:00 -

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O governo brasileiro recebeu uma proposta por parte da aliança mundial de vacinas, a Gavi, para aderir ao plano de imunização global com acesso a 86 milhões de doses. A entidade, que administra a Covax Facility, havia feito a sugestão no primeiro semestre de 2020, pensando em uma estratégia para garantir a imunização de 20% dos brasileiros.

Mas, depois de longas negociações, o Brasil optou por não aderir à proposta e comprou apenas 43 milhões, suficiente para imunizar só 10% dos brasileiros. Conforme a coluna revelou em 2020, o volume, pelas regras da Covax, era o mínimo que o Brasil poderia estabelecer na parceria com a entidade.

Agora, telegramas sigilosos revelam as tratativas em relação ao pacote e o reconhecimento por parte do governo de que o Brasil seria beneficiado pela existência do mecanismo. Ainda assim, a opção por arrastar o processo negociador e "ganhar tempo".

Os dados sobre a oferta fazem parte de um telegrama sigiloso entre o Itamaraty, em Brasília, e a missão do Brasil em Genebra, naquele momento liderado pela embaixadora Maria Nazareth Farani Azevedo.

Os documentos obtidos com exclusividade pela coluna fazem parte de centenas de telegramas que a CPI da pandemia recebeu, ao solicitar dados e troca de mensagens do Itamaraty com seus postos no exterior. Dezenas deles, porém, estão sob sigilo.

Procurados, nem o Itamaraty e nem o Ministério da Saúde explicaram o motivo pelo qual não seguiram a proposta sugerida pelo consórcio.

No dia 2 de julho 2020, o Itamaraty informaria ao posto diplomático do país na Suíça sobre a decisão tomada pelo governo de enviar uma carta à GAVI e formalizar o interesse do país em debater uma adesão à Covax. A primeira reunião da entidade havia ocorrido em abril de 2020 e a ausência do Brasil gerou polêmica. Naquele momento, procurado pela coluna, o governo explicou que tinha "outras parcerias em vista".

Três meses depois, a opção foi por se aproximar à entidade. Mas também há um relato detalhado do que ocorreu naqueles dias, reuniões e propostas.

De acordo com o documento, uma reunião foi realizada no dia 30 de junho de 2020 e coordenada pela Subchefia de Articulação e Monitoramento da Casa Civil. O objetivo era "tratar da participação do Brasil no desenvolvimento, produção e compra de vacinas contra a COVID-19".

"As discussões têm contado com a participação do Itamaraty e dos ministérios de Saúde (MS) e da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), bem como desse Posto (delegação do Brasil em Genebra), em formato virtual", diz.

No telegrama, o Itamaraty reconhece que o mecanismo daria "acesso a futuras vacinas contra a covid-19 a preços inferior aos do mercado". "O mesmo mecanismo serviria para compartilhar riscos entre maior número de países e, ao mesmo tempo, enviar sinais ao desenvolvedores/produtores de que haverá mercado para venda das futuras vacinas". apontou.

Mas a diplomacia aponta que, depois de ver uma primeira lista das vacinas que poderiam fazer parte do consórcio, houve uma ponderação. "Em análise preliminar, o Ministério da Saúde indicou que as vacinas contempladas encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento, razão pela qual haveria ainda bastante incerteza quanto a seus resultados finais", explica o telegrama.

No documento, uma lista de nove potenciais vacinas são apresentadas. Elas incluíam a Universidade de Oxford-AstraZeneca, a Clover BioPharmaceuticals, Instituto Pasteur, Universidade de Hong Kong, Novavax, Universidade de Queensland, Moderna, Inovio Pharmaceuticals e CureVac.

Segundo informado por representante da GAVI, os acordos celebrados conteriam cláusulas que "permitiriam a possibilidade de transferência de tecnologia aos países participantes".

Vantagens claras ao Brasil

No telegrama, o Itamaraty deixa claro que existiam diversas vantagens para o Brasil se o país optasse por fazer parte do projeto, principalmente no que se refere a um "contraponto a negociações bilaterais com empresas farmacêuticas".

Os benefícios seriam:

i) mitigação de riscos, em cenário de alta incerteza sobre vacinas contra a COVID-19;

ii) potencial para negociar melhores termos com múltiplas empresas;

iii) melhores condições para garantir determinado nível de acesso a
vacinas, em cenário de intensa competição, que tende a favorecer países com maior recursos financeiros

iv) promoção de cenário mais colaborativo para desenvolvimento e distribuição de vacinas;

v) inclusão do país no único mecanismo coletivo;

vi) dividendos para imagem do Brasil no cenário externo.

Naquele momento, o governo explica que a GAVI havia colocado um prazo de até 30 de junho para o envio de carta com manifestação de interesse por parte dos países.

Mas o Itamaraty destacava que "a manifestação não é vinculante e, portanto, não implica compromisso político ou financeiro". Pelas regras, seria apenas em agosto de 2020 que o país precisaria confirmar sua participação e fazer uma parcela do pagamento.

Sugestão do consórcio ao Brasil

De acordo com o telegrama, a GAVI chegou a fazer uma sugestão ao governo brasileiro. "A parcela sugerida pela GAVI ao Brasil foi de US$ 195 milhões, ou cerca de 10% de total estimado em US$ 2 bilhões, para futura aquisição de 86 milhões de doses (para 43 milhões de pessoas)", diz o texto do documento.

"O cenário com que trabalha a GAVI, inclusive no caso do Brasil, é de imunização de 20% da população dos países", constata.

O Itamaraty explica ainda que "cada país poderá, no entanto, decidir realizar investimento em valor diverso do montante sugerido (o que implicaria, ao final, direito a menor número de doses)".

Ao expôr as vantagens do projeto, o telegrama ainda constata que o consórcio ofereceria doses da vacina com preços padrões.

"Para fins de modelagem do mecanismo, a GAVI utiliza preço unitário de USD 20/dose e necessidade de duas doses por pessoa", explica. "O preço é apenas uma estimativa e foi definido com base no valor da dose da vacina mais cara entre as candidatas", diz.

"Para países de renda alta, o preço de cada dose é de USD 35. O preço final será estabelecido somente após aprovação pela OMS da(s) vacina(s) considerada(s) eficaz(es). A GAVI assegurou não haver quaisquer subsídios embutidos no preço de cada dose", aponta.

Havia inclusive a possibilidade de o consórcio devolver o dinheiro dos países, caso a vacina não chegasse.

Decisão de "ganhar tempo"

Diante dessa realidade, o governo indicou ao posto em Genebra que deveria mandar uma carta para a GAVI, sinalizando o interesse do Brasil por uma aproximação. Mas mesmo naquele momento, a cautela ainda existia.

"Tendo em conta que a manifestação de interesse por parte do Brasil não implicaria compromisso político ou financeiro, concluiu-se preliminarmente que seria vantajoso ao Brasil o envio de carta à GAVI", diz o telegrama em uma instrução para Genebra.

"Na missiva, poderiam ser solicitados maiores esclarecimentos a respeito da governança do mecanismo, da possibilidade de transferência de tecnologia, dos valores esperados e do calendário de desembolsos, da garantia dos recursos empregados pelo Brasil, entre outros aspectos", sugeriu.

"Com isso, ganhar-se-ia tempo, até o fim de agosto, para tomar decisão mais informada a respeito da conveniência, para o Brasil, de empregar recursos no COVAX Facility", concluiu.

A carta que iria ao CEO da GAVI, Seth Berkley, diria que "depois da devida consideração, o governo brasileiro acredita que a Covax tem o potencial de providenciar boas oportunidades para garantir que todos os países tenham acesso rápido à vacina".

Mas, seguindo as instruções do Itamaraty, a carta apresentaria uma série de perguntas, com o objetivo de "ganhar tempo".

"O governo brasileiro está interessado em saber mais sobre a COVAX Facility, a fim de melhor avaliar e participar de seus esforços. Entre outros aspectos, gostaríamos de ser informados sobre a governança da mecanismo, transferência de tecnologia no desenvolvimento de vacinas e produção, calendário provisório de pagamentos, e a garantia dos recursos alocados", diz a comunicação para a GAVI.

A carta ainda diz que, em nome do Brasil, "é meu prazer expressar nosso interesse em participar da Covax Facility, e de forma adequada comprar vacinas da Facility ao meu país".

Mas ela completa com um esclarecimento. "Para evitar dúvidas, nossa expressão de interesse é não-vinculante", diz. Ou seja, o Brasil não se comprometia com nada até aquele momento.

Bolsonaro prejudica envio de insumo da China para vacina

Um telegrama secreto da embaixada brasileira em Pequim ao Itamaraty reforçou o entendimento de que os ataques desferidos pelo presidente Jair Bolsonaro à China podem ter contribuído para o atraso na remessa de insumos para a fabricação de vacinas no Brasil.

A comunicação, que relata uma reunião entre a Sinovac, responsável pelo desenvolvimento da CoronaVac, e representantes brasileiros, ocorrida na capital chinesa no dia 19 de maio, está em posse da CPI da Covid e foi publicada pelo jornal O Globo no último dia 9.

Para diplomatas brasileiros ouvidos pela coluna, o tom da reunião não foi de revanche ao Brasil. Pelo contrário, os chineses se manifestaram na linha do "me ajuda a te ajudar". No caso, facilitar os trâmites com o governo da China.

De acordo com o responsável pelo telegrama ao Ministério das Relações Exteriores, o presidente da Sinovac, Weidong Yan, "realçou a importância de um bom diálogo entre Brasília e Pequim". Disse que "a questão não é meramente comercial, mas também diplomática". E usou como exemplo "o reflexo positivo das boas relações que a Indonésia e o Chile mantêm com a China sobre o suprimento de vacinas para aqueles países".

A matéria afirma que, ao ser questionado se a Sinovac conseguiria fornecer a quantidade contratada pelo Brasil, o presidente da empresa disse que tinha dificuldades em atender "toda a demanda" e que precisa atender diversos clientes. E "que seria conveniente, para o processo, que o governo brasileiro buscasse 'desenvolver uma relação mais fluida e positiva com o governo chinês'".

Um diplomata brasileiro que atua nessa área avalia à coluna que o significado disso é claro: "Imagine a China, recebendo pedidos de vacinas de todo o mundo. De um lado, líderes de outros países, educados, com boa relação, mandando cartas assinadas por eles, fazendo pedidos. E, de outro lado, o presidente brasileiro dizendo que a covid é resultado de uma guerra biológica provocada pela China para vantagem econômica".

Ou seja, por mais que a empresa tenha o máximo de boa vontade, fica difícil priorizar se o Brasil adota um tom politicamente beligerante contra o seu governo.

"Os empresários da Sinovac são pragmáticos, querem que a exportação dê certo, mas o telegrama revela que a situação estava complicada no aspecto político", diz outro diplomata que atua Ásia. "Propuseram uma solução de ajuda. Não esperavam um pedido de desculpas público do Brasil. Mas uma carta do presidente ou do chanceler, de forma educada, rogando boa vontade das autoridades chinesas já ajudaria."

De acordo com a reportagem de Natália Portinari e Julia Lindner, de O Globo, o telegrama enviado ao Itamaraty, sugere que o Brasil enviasse uma correspondência, "no nível político", para expressar a expectativa sobre a quantidade de insumos e o cronograma de suprimento de vacinas.

O executivo da empresa "fez questão de ressaltar a importância do apoio político para a realização das exportações, e mesmo a possibilidade de tratamento preferencial a determinados países".

Uma questão importante para a CPI é descobrir se isso foi feito e como. Em seus depoimentos, tanto o ex-chanceler Ernesto Araújo, um crítico contumaz da China, quanto o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmaram que as declarações de Bolsonaro não influenciaram no atraso do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), matéria-prima para as vacinas.

Por outro lado, entrevistas concedidas pelo governador de São Paulo, João Doria, e pelo diretor do Instituto Butantan, Dimas Covas, apontam o contrário. Ambos afirmaram que os atrasos no recebimento dos insumos se deviam aos ataques do presidente. O Butantan estava em contato constante com a Sinovac.

'Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica'

"É um vírus novo, ninguém sabe se nasceu em laboratório ou nasceu por algum ser humano ingerir um animal inadequado. Mas tá ai. Os militares sabem o que é guerra química, bacteriológica e radiológica. Será que não estamos enfrentando uma nova guerra? Qual o país que mais cresceu o seu PIB? Não vou dizer para vocês", afirmou Bolsonaro na manhã do dia 5 de maio.

Nem é difícil descobrir: a China teve um crescimento recorde de 16,3% no primeiro trimestre deste ano em relação ao mesmo período do ano passado. Foi o país economicamente relevante que mais cresceu.

Mas após insinuar que a covid-19 pode ter sido criada pela China como parte de uma guerra biológica, Jair Bolsonaro não sustentou o que disse. Seguindo o padrão de cortinas de fumaça que lança para encobrir denúncias contra ele e seus filhos, voltou atrás, zombando da inteligência dos brasileiros e chineses.

"Mas eu não falei a palavra 'China'. Peraí, eu falei a palavra 'China' hoje de manhã? Eu não falei. Eu sei o que é guerra bacteriológica, o que é guerra química, o que é guerra nuclear. Eu sei porque tenho a formação. Só falei isso, mais nada. Agora, ninguém fala, vocês da imprensa não falam onde nasceu o vírus. Falem! Ou tão temendo outra coisa? Falem! A palavra 'China' não está no meu discurso de hoje, de quase 30 minutos de hoje. Agora, muita maldade tentar aí o atrito com um país que é muito importante para nós e nós somos importantes para ele também."

As declarações foram usadas por ele para tentar abafar o depoimento de Luiz Henrique Mandetta, na CPI da Covid no dia anterior. O ex-ministro da Saúde disse que o presidente foi avisado de que centenas de milhares morreriam e, mesmo assim, continuou sabotando o isolamento social.

E também o do ex-ministro Nelson Teich, que disse, no último dia 5, que Bolsonaro impôs a distribuição da cloroquina, apesar de sua inutilidade para o tratamento da covid-19 e o risco de morte de brasileiros.

O problema é que, pelo que pode ser visto pelo telegrama, houve reação. Se o atraso na remessa de insumos, que paralisa periodicamente a produção tanto do Butantan quando da Bio-Manguinhos/Fiocruz, tem relação com isso, significa que os ataques de Bolsonaro podem ter custado a vida de brasileiros que morreram por falta de vacinas.


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