20/04/2024 - Edição 540

Brasil

O risco de estouro da inflação

Publicado em 10/06/2021 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O professor de música Ezequiel Moreira Franco Júnior, de 43 anos e morador de Belo Horizonte, ganhava entre R$ 1.500 e R$ 1.800 por mês antes da pandemia, dando aulas particulares de violão, flauta doce, pandeiro, técnica vocal e teoria musical.

Com a crise sanitária, Ezequiel viu o número de alunos minguar, mas em 2020, contou com o auxílio emergencial de R$ 600 para segurar as pontas. Esse ano, não foi contemplado pela ajuda do governo e está vivendo com R$ 360 que ganha dos alunos que lhe restaram e dependendo da família para se manter.

Formada em Moda, Design e Estilismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), a teresinense Adrilayne Cristina Machado Sousa, de 24 anos, tinha carteira assinada em seu emprego como produtora de moda em uma loja de roupas.

Nesse início de ano, teve seu contrato formal encerrado e foi recontratada como prestadora de serviço pela metade do salário, vendo sua renda cair de R$ 1.110 para pouco mais de R$ 500 de um dia para o outro.

Na casa de Cristina, sua mãe, professora em escola particular, também teve o salário reduzido, de pouco mais de um salário mínimo (cujo valor está em R$ 1.100 em 2021), para algo em torno de R$ 800. Com a perda de renda de mãe e filha, é o pai, técnico de eletrônica informal, que está mantendo a maior parte dos gastos da família, que foram diminuídos.

Ezequiel e Cristina são exemplos da realidade de muitos brasileiros neste início de 2021, marcado pela perda de renda dos trabalhadores, em meio à aceleração da inflação e desemprego recorde.

PIB em alta, renda em baixa

Segundo levantamento realizado por Daniel Duque, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), a renda média domiciliar per capita (por pessoa) dos brasileiros foi de R$ 1.065 no primeiro trimestre deste ano, uma queda de 10% em relação à média de R$ 1.185 de igual período de 2020.

Esse foi o quarto trimestre seguido de queda da renda na comparação anual.

A maior redução foi registrada no segundo trimestre de 2020 – marcado pela primeira onda da pandemia no Brasil -, com retração de 12%. No terceiro e quarto trimestres do ano passado, o recuo foi idêntico: de 11%, sempre em relação ao mesmo trimestre do ano anterior.

Neste início de ano, mesmo com o crescimento acima do esperado do PIB (Produto Interno Bruto) e com uma boa abertura de vagas formais, a queda da renda continuou.

A economia brasileira cresceu 1,2% entre janeiro e março, em relação ao quarto trimestre, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), acima do que era esperado pelos analistas. E foram abertas 837 mil vagas com carteira assinada, segundo o Caged (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) do Ministério da Economia.

O levantamento do pesquisador do Ibre-FGV, realizado com base na Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE, considera o rendimento efetivamente recebido pelas pessoas em todos os trabalhos por elas exercidos.

Não considera, porém, outras fontes de renda, como benefícios sociais, aposentadorias e pensões e rendimentos de aluguel, pois esses dados só são divulgados pelo instituto oficial de pesquisa ao fim do ano fechado, com a publicação da Pnad Anual.

Para calcular a renda domiciliar per capita média, Duque levou em conta a soma dos rendimentos do trabalho, dividida pelo número de pessoas no domicílio.

Por que a renda segue em queda

"Como há muitas pessoas procurando emprego, isso diminui as pressões salariais", observa Duque, sobre o efeito do excesso de oferta de mão de obra sobre os salários.

Apesar da forte criação de vagas formais nesse início de ano, o desemprego foi recorde no trimestre encerrado em março, com taxa de desocupação de 14,7% e um total de 14,8 milhões de pessoas desempregadas, segundo o IBGE.

Essa aparente contradição acontece devido à discrepância na recuperação entre os mercados de trabalho formal e informal, um dos efeitos da pandemia do coronavírus.

"Há também o fato de que as empresas não estão reajustando salários acima da inflação pela própria situação delas, em decorrência da crise", destaca o pesquisador.

Segundo o boletim Salariômetro da Fipe-USP (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo), de janeiro a abril deste ano, 61,6% das negociações salarias coletivas entre patrões e empregados resultaram em reajustes abaixo da inflação.

Um total de 25,4% dos acordos coletivos repuseram a alta de preços e apenas 13% das negociações resultaram em reajustes acima do INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor), indicador que é referência para os reajustes salariais.

"A aceleração da inflação é um outro fator importante. Por conta dela, os reajustes nominais não têm sido capazes de contrapor a variação dos preços", diz Duque.

Até março, o INPC acumulou alta de 6,94% em 12 meses. E a situação piorou nos meses seguintes, com o índice acumulando avanço de 8,90% até maio, conforme divulgado na quarta-feira (09/06) pelo IBGE.

A inflação esse ano tem sido puxada pelo aumento de preços dos alimentos e combustíveis, devido à valorização das commodities, impulsionadas pela recuperação da economia global, com o controle da pandemia em outros países. Em maio, somou-se a esse quadro a alta das contas de luz, devido à seca histórica, que também deve afetar os preços da alimentação.

O economista reconhece que parte da queda da renda pode ter sido impactada pela mudança de composição da amostra da Pnad, que tem sido afetada pela migração da coleta dos dados de presencial para por telefone em meio à pandemia. Mas avalia que, dada a magnitude da retração, esse fator certamente não explica a totalidade da baixa.

O que aconteceu com a desigualdade?

Apesar da continuidade da queda dos rendimentos nesse início de 2021, a desigualdade da renda do trabalho teve uma pequena melhora, em relação ao pior momento para o indicador, registrado entre o segundo e terceiro trimestres do ano passado, observa o economista da FGV.

O Índice de Gini da renda do trabalho – uma medida de desigualdade que varia de zero a um, sendo zero a igualdade perfeita -, ficou em 0,670 no primeiro trimestre deste ano, abaixo do pico de 0,677 registrado no segundo trimestre de 2020. Apesar dessa ligeira melhora, o indicador segue muito acima do nível anterior à pandemia.

"Depois de aumentos bastante relevantes no segundo e terceiro trimestres do ano passado, estamos vendo uma desaceleração da desigualdade", diz Duque.

Um dos fatores que explica essa dinâmica é o comportamento da renda dos trabalhadores formais e informais. No primeiro trimestre, a renda média dos formais caiu 3% em relação ao mesmo período de 2020, enquanto a dos informais aumentou 1%.

"Começa a haver um retorno dos trabalhadores informais, com mais horas trabalhadas", observa Duque. "Por outro lado, como a renda dos formais é maior do que a dos informais, isso contribui para a queda que observamos na renda média geral."

E o que esperar pela frente?

Na desigualdade, o economista da FGV avalia que devemos observar à frente uma desaceleração adicional.

"Enquanto no mercado de trabalho do topo a situação está praticamente normalizada, ainda há espaço para o mercado de trabalho dos mais pobres melhorar um pouco mais", afirma.

"Mas provavelmente não voltaremos rapidamente ao nível anterior à pandemia, porque, geralmente quando há um choque tão grande, ocorrem perdas não transitórias, com pessoas que talvez nunca voltem à renda anterior delas, que talvez nunca voltem a procurar emprego ou nunca mais encontrem uma vaga", observa o economista.

"Choques transitórios muito fortes, mesmo que durem um curto período de tempo, podem ter um impacto permanente, de modo que podemos ter um efeito de longo prazo, em que não vamos conseguir retomar, pelo menos não na velocidade esperada, a situação do mercado de trabalho da população mais afetada, que foram os informais e os mais vulneráveis em geral."

Se a desigualdade tende a melhorar, para a renda, a situação é mais problemática, diz Duque.

Isso porque ainda há muita gente para ser reabsorvida pelo mercado de trabalho e as horas trabalhadas já estão quase no nível pré-pandemia. "Isso deve fazer com que o salário médio caia ainda mais, provavelmente, e depois ainda fique estagnado por um tempo", prevê.

"A competitividade do mercado de trabalho está muito elevada", observa o economista. "Isso faz com que a gente tenha uma trajetória da renda do trabalho provavelmente bastante ruim para os trabalhadores por muito tempo."

Segundo Duque, o efeito macroeconômico disso já ficou evidente no PIB do primeiro trimestre, quando o consumo das famílias registrou uma queda de 0,1% em relação ao quarto trimestre do ano anterior e recuo de 1,7% na comparação com o primeiro trimestre de 2020.

"Deve haver alguma melhora do consumo no segundo trimestre, devido à volta do auxílio emergencial", acredita Duque. "Mas depois disso, podemos voltar para uma situação negativa, com as famílias tendo um menor rendimento do trabalho, que pode resultar em uma desaceleração do crescimento no segundo semestre, acompanhada do aumento da inflação."

O professor Ezequiel e a produtora de moda Cristina compartilham do pessimismo do economista. Ambos dizem que não sentiram o aumento do PIB no primeiro trimestre nas suas vidas.

"Isso para mim é 'caô' do governo para engambelar os incautos", afirma o músico.

"Eu não senti esse crescimento da economia, muito pelo contrário", diz Cristina. "As coisas para mim pioraram bastante, parece que a cada dia eu vivo mais no aperto."

O risco de estouro da inflação

Garantir comida, moradia e demais condições básicas de sobrevivência é uma tarefa cada vez mais complicada para os brasileiros, com a disparada dos preços. A inflação de maio, 0,83%, foi a maior para o mês em 25 anos. Chegou-se a um recorde nada festivo, especialmente num país com mais de 14 milhões de desempregados. Muitas famílias têm dependido de ajuda para comer e o número de subnutridos volta a aumentar, num tenebroso retrocesso histórico. O quadro piora seguidamente. Já chegou a 8,06%, em 12 meses, a alta acumulada do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Em abril havia chegado a 6,76%.

Nem os mais otimistas levam em conta, em suas previsões, a meta oficial de inflação, de 3,75%. O foco, agora, está num ponto bem mais alto, no limite de tolerância, de 5,25%, fixado para 2021. O estouro desse limite já é tido como quase certo. No mercado, a mediana das projeções já cravou 5,44% como resultado final deste ano.

Com mais de 8% em 12 meses, parece bem menos fantasmagórica a inflação de 2015, quando o IPCA subiu 10,67%. Foi uma das últimas façanhas do governo da presidente Dilma Rousseff. O Brasil saberá, dentro de dias, depois da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), se os diretores do Banco Central (BC) terão sangue-frio para manter a “normalização parcial” da taxa básica de juros. “Normalização parcial” foi a qualificação oficial dos últimos dois aumentos, cada um de 0,75 ponto porcentual. Mantido o padrão, a taxa será elevada para 4,25%.

O sangue-frio foi demonstrado, até a última reunião, com a tentativa de atender a dois objetivos: reagir à inflação crescente com um leve aperto monetário e, ao mesmo tempo, manter juros muito moderados para estimular a atividade. Economistas muito respeitados no mercado e na academia têm criticado a “normalização parcial”, sugerindo ações mais fortes para contenção da alta de preços. Isso permitirá, segundo argumentam, um avanço mais seguro, logo adiante, na reativação dos negócios.

O novo surto inflacionário é um fenômeno global. A inflação recuou quando a atividade foi derrubada pela crise pandêmica e retornou em seguida, mais forte, quando a economia reagiu. O Banco Mundial dá destaque a esse novo surto na edição de junho de suas Perspectivas Econômicas Globais. Segundo o relatório, a inflação média nos países emergentes e em desenvolvimento chegou a 3,5% em 2020 e a projeção para 2021 aponta 4,5%. Na maior parte dos países, o resultado anual ficará na meta ou na vizinhança.

O cenário brasileiro é obviamente mais preocupante. A alta de preços tem sido bem superior à média observada naquele grande grupo de países e, além disso, as projeções são bem piores. Alguns fatores têm sido observados em toda a parte: alta das cotações de alimentos e de minérios e desvalorização das moedas em relação ao dólar.

Mas quem segue o dia a dia do Brasil percebe logo algumas diferenças. A alta geral de preços tem sido maior e as projeções são piores, assim como o impacto do câmbio. Desde o ano passado, o real tem sido uma das duas ou três moedas mais desvalorizadas diante do dólar. Além disso, a instabilidade cambial tem claramente refletido as incertezas diante do quadro fiscal e reações negativas a palavras e decisões do presidente da República. A posição do câmbio seria muito diferente se estivesse associada apenas ao comércio exterior, à evolução do balanço de pagamentos, ao estoque de reservas e à excelente condição de solvência externa.

O IPCA subiu 3,22% em cinco meses. Atingirá rapidamente a meta anual de 3,75% e ficará muito difícil evitar o estouro do limite superior. O Copom terá de resolver se um aperto mais forte será justificável como forma de cumprir sua missão central, a defesa do poder de compra da moeda. Se um aumento maior de juros frear o crescimento, o desemprego, já muito alto, será ainda mais duradouro. Se a inflação continuar intensa, os desempregados e os pobres, de modo geral, serão os mais prejudicados. É permitido jogar cara ou coroa em reunião do Copom?


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *