19/03/2024 - Edição 540

Entrevista

A histórica desigualdade brasileira espelha outras formas de exclusão

Publicado em 07/06/2021 12:00 -

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Quando se fala na desigualdade em que o Brasil está mergulhado, talvez o mais correto seja usar o plural, pois essa desigualdade se revela nos mais variados aspectos da vida. “A histórica desigualdade socioeconômica brasileira espelha outras desigualdades. Existe um emaranhado de desigualdades e a exclusão digital não deixa de entrar nessa mesma lógica. As classes mais baixas, D e E, são tipicamente aquelas que têm as maiores dificuldades não somente no acesso, mas também no uso da tecnologia”, observa o professor Lauro Gonzalez.

Em pesquisa realizada por ele e colegas, constatou que essa exclusão digital se manifesta nas pessoas que não têm acesso à internet de qualidade e usam aparelhos – muitas vezes ainda compartilhados – que não comportam tecnologias mais novas, como o app do Auxílio Emergencial. “E ainda tem a questão das habilidades no uso, o que, por sua vez, tem uma relação muito forte com a educação formal. Portanto, o enfrentamento dessas questões é o caminho mais adequado para superar essa exclusão”, completa.

Economista, o professor também aponta que a experiência do Auxílio Emergencial evidenciou a necessidade de conceber uma renda básica. “Sem dúvida nenhuma, uma das pautas trazidas à tona com o pagamento do Auxílio Emergencial tem a ver com a necessidade de se repensar a proteção social no Brasil, mais especificamente os programas de transferência de renda. Muito claramente, o Bolsa Família, nos moldes atuais, é insuficiente tanto do ponto de vista dos recursos quanto do número de pessoas beneficiárias do programa”, analisa.

Para ele, uma renda básica universal poderia, inclusive, ser acompanhada de programas que também levassem em conta outras formas de exclusão, como a digital. “Poderiam entrar na agenda, acopladas a várias outras tecnologias sociais, inovações que hoje estão disponíveis, como, por exemplo, a possibilidade de aliar mecanismos de renda básica subnacionais, municipais, com moedas sociais digitais no contexto da lógica de atuação de bancos comunitários”, observa.

Lauro Emilio Gonzalez Farias é pesquisador do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas – FGV. Professor visitante na Université Paris-Dauphine entre 2012 e 2017, também foi professor visitante na Columbia University em 2014 e 2015. Atualmente, é professor do Departamento de Finanças da FGV EAESP e coordenador do Centro de Estudos em Microfinanças e Inclusão Financeira da FGV. Doutor em Economia pela FGV EESP, foi fellow do Microfinance Management Institute em 2005 e pesquisador visitante na Universidade de Columbia em 2004.

 

De que forma a pandemia escancarou a exclusão digital no Brasil?

A pandemia tanto escancara coisas que já existiam quanto piora outras coisas também. No caso da exclusão digital, o que ficou escancarado, em específico no que se refere ao pagamento do Auxílio Emergencial, foi o fato de que várias pessoas solicitaram, mas não conseguiram obter o auxílio justamente por conta de obstáculos ligados à exclusão digital. Entre as maiores consequências dessa exclusão está o fato de que várias pessoas não conseguiram solicitar e até mesmo obter o Auxílio Emergencial.

Quais são as maiores consequências dessa exclusão digital?

A exclusão digital tem vários detalhes, vários obstáculos que se concretizam no cotidiano das pessoas, sobretudo daquelas de baixa renda. O que nós documentamos como obstáculos ou consequências da exclusão digital no pagamento do Auxílio Emergencial, mas que vale também para outras situações, é o acesso limitado à conexão de internet de qualidade, ou seja, muitas vezes a conexão não é boa. Além disso, há o fato de que os aparelhos de celular geralmente não são os mais adequados do ponto de vista de performance, não são capazes de fazer as mesmas coisas que um celular típico das classes mais altas. Outra coisa importante é que o uso do celular muitas vezes ocorre através de pacotes de dados muito caros e que se esgotam rapidamente. Esses problemas se associam à questão da conexão. Ou seja, é a qualidade da conexão, uma conexão muito cara, além do aparelho, que apresenta problemas técnicos.

Por fim, existe um obstáculo, uma das características da exclusão digital, que está relacionado às habilidades cognitivas das pessoas, ou seja, o uso adequado da tecnologia. As pessoas muitas vezes não têm habilidades para baixar programas em geral, como é o caso do Auxílio Emergencial, especificamente o programa da Caixa.

Como falar em desenvolvimento no país, acesso à educação e emprego diante desse cenário de exclusão digital? Quais os caminhos para superar essa exclusão?

O caminho para superar a exclusão digital passa, sobretudo, pelo combate aos obstáculos que mencionei anteriormente. Assim, é preciso melhorar a conexão, levar em consideração também que os custos de transação para o acesso a pacotes de dados são muito elevados e ainda tem a questão das habilidades no uso, o que, por sua vez, tem uma relação muito forte com a educação formal. Portanto, o enfrentamento dessas questões é o caminho mais adequado para superar essa exclusão.

Segundo pesquisa da FGV/Cemif, da qual o senhor participou, a exclusão digital impossibilitou o acesso dos mais pobres ao Auxílio Emergencial. Gostaria que nos detalhasse os dados da pesquisa.

Embora tenha tocado nisso anteriormente, é importante repetir aqui que os dados da pesquisa mostraram, sobretudo, os obstáculos enfrentados pela população de baixa renda, entendida aqui como a população das classes D e E, para solicitação e obtenção do Auxílio Emergencial.

Na verdade, foram muitos os obstáculos destacados pelas próprias pessoas, sendo que eles têm relação com a falta de acesso a celular, pois, ao contrário do que se imagina, nem todo mundo possui um celular. Sobretudo nas classes D e E, as pessoas compartilham o celular, e esses aparelhos, muitas vezes, não são adequados – e voltamos aqui ao segundo obstáculo.

Do ponto de vista de performance, como disse antes, muitos aparelhos aos quais essas pessoas têm acesso não possuem as características necessárias para o uso adequado da tecnologia. Um problema importante, também, é a qualidade da conexão à internet. A qualidade é ruim e o custo de acesso, muitas vezes, é elevado por conta de pacotes de uso de dados com preços altos, o que faz com que as pessoas os utilizem muito rapidamente e isso pode ter sido um obstáculo também. E, por fim, o obstáculo que tem relação com as pessoas e suas habilidades e capacidade de uso da tecnologia.

Quais são as classes sociais que tiveram maior dificuldade no acesso?

Aqui vale dizer que a histórica desigualdade socioeconômica brasileira espelha outras desigualdades. Existe um emaranhado de desigualdades e a exclusão digital não deixa de entrar nessa mesma lógica. As classes mais baixas, D e E, são tipicamente aquelas que têm as maiores dificuldades não somente no acesso, mas também no uso da tecnologia.

Em outras pesquisas que o senhor realizou acerca do Auxílio Emergencial, constatou-se que enquanto em São Paulo o benefício fez crescer, em média, 54% da renda dos beneficiários, no Ceará o ganho foi muito maior, de até 110%. O que isso revela sobre os pobres e a renda no Brasil?

Existe uma desigualdade regional bastante grande no Brasil. Nos estudos que fizemos anteriormente, percebemos que o efeito do auxílio foi muito maior, na medida em que é um valor fixo, naqueles estados nos quais a renda usual pré-pandemia era menor. Por exemplo, um auxílio de R$ 600 ou R$ 1.200 pode ter representado um acréscimo muito grande para pessoas que moravam nos estados de menor renda, como é o caso, por exemplo, do Ceará e de estados do Norte e Nordeste. E isso é mais forte ainda quando os dados são desagregados por município. Em municípios do interior do Norte e Nordeste do Brasil esse efeito foi ainda maior.

Que outros efeitos o Auxílio Emergencial teve sobre a renda das pessoas?

Os efeitos foram bastante grandes. Vale dizer que nós fizemos várias pesquisas estimando esses efeitos e, na primeira onda da pandemia, quando as perdas de renda foram muito elevadas, o auxílio teve um efeito menor. Conforme o segundo semestre foi passando, a economia foi reabrindo, as atividades foram sendo retomadas, ainda que de forma limitada, as perdas com a pandemia também foram caindo e o auxílio, até um certo período, continuou sendo pago. Nesse momento, os acréscimos de renda foram maiores porque as perdas, como disse anteriormente, foram caindo e o auxílio continuava fixo.

Esse cenário teve uma grande mudança a partir de 2021, quando houve uma alteração do valor do auxílio, que caiu pela metade, de R$ 600 para R$ 300 para as mães que são chefes de família e, abruptamente, caiu a zero no primeiro trimestre de 2021. Foi retomado agora, mas com efeitos bastante reduzidos, sobretudo para aqueles que vão ganhar R$ 150, valor que será pago para o maior número de pessoas. Hoje, são três os valores a serem pagos: R$ 150, R$ 250 e R$ 375. Nas nossas estimativas, o valor de R$ 150 não repõe as perdas derivadas da pandemia.

Em que medida a concessão do Auxílio Emergencial abre caminho para que se institua uma renda básica universal no Brasil?

Sem dúvida nenhuma, uma das pautas trazidas à tona com o pagamento do Auxílio Emergencial tem a ver com a necessidade de se repensar a proteção social no Brasil, mais especificamente os programas de transferência de renda. Muito claramente, o Bolsa Família, nos moldes atuais, é insuficiente tanto do ponto de vista dos recursos quanto do número de pessoas beneficiárias do programa. Os efeitos do auxílio sobre a pobreza e a extrema pobreza, que foram muito notáveis, provavelmente lançam a semente de uma discussão acerca do pagamento de uma renda básica universal. Me parece que o primeiro passo para isso é justamente repensar o Bolsa Família e, num segundo momento, os programas de renda básica universal poderiam entrar na agenda também.

Agora, poderiam entrar na agenda, acopladas a várias outras tecnologias sociais, inovações que hoje estão disponíveis, como, por exemplo, a possibilidade de aliar mecanismos de renda básica subnacionais, municipais, com moedas sociais digitais no contexto da lógica de atuação de bancos comunitários. Então é, sim, possível pensar no Auxílio Emergencial como algo que coloca essa discussão no topo da agenda, na medida em que ele escancara a necessidade de os programas serem aprimorados e expandidos.

O Brasil da pandemia que viu a renda encolher também sofre com a volta da fome. Como, desde a economia e políticas de renda, enfrentar o desafio da erradicação da fome no Brasil?

Não sou especialista nesse tópico, mas me parece que a pandemia chegou ao Brasil num contexto em que o mercado de trabalho já passava por desafios estruturais bastante evidentes: o nível de informalidade na economia é muito elevado, há um número grande de trabalhadores dentro da chamada “economia do bico”, que foi denominada por alguns de “uberização da economia”. Enfim, são transformações que colocam desafios muito grandes.

Existe uma certa precarização nas relações de trabalho e isso é histórico. Ao mesmo tempo, claro que é possível enxergar aspectos positivos, mas, ao que tudo indica, essas mudanças estão predominantemente trazendo aspectos negativos para o mundo do trabalho, sobretudo acentuando as desigualdades e deixando mais para trás a população de baixa renda, legando essa população à informalidade. Então, a fome se insere nesse contexto de transformações e maior precarização e vulnerabilidade e, obviamente, diante desse choque terrível que é a pandemia.

2022 é ano de eleição. Que medidas econômicas e sociais não podem faltar nos programas de governo de quem vai concorrer ao Planalto?

Realmente temos um cenário bastante conturbado adiante: temos mais seis meses de 2021, não há uma clareza acerca do fim da pandemia e 2022 é um ano de eleição. Parece inevitável que os programas de proteção social e, sobretudo, os de transferência de renda sejam revistos, aumentando os recursos – isso é inevitável. Como disse anteriormente, seria interessante acoplar esses recursos aplicados às novas tecnologias existentes sem deixar de levar em consideração os obstáculos relacionados à exclusão digital. Nesse sentido, reitero que o uso de programas de transferência de renda acoplados a moedas sociais digitais e à atuação de bancos comunitários me parece bastante promissor.

A economia brasileira teve um aumento de 1,2% no PIB e trouxe surpresa aos mais otimistas. Como o senhor analisa esses dados?

O aumento acima do esperado no PIB, bastante acima do que era consenso entre os economistas e o mercado, é bastante positivo. Entretanto, chama a atenção o fato de que o aumento do PIB tem um resultado muito assimétrico na medida em que se restringe a alguns setores afetados positivamente pelo avanço do preço das commodities e também pela desvalorização do câmbio, sobretudo o setor exportador. Portanto, os efeitos são bastante desiguais e ainda não atingiram o mercado de trabalho, principalmente em relação aos mais pobres.

Que cenário o senhor projeta para o Brasil, em termos econômicos e sociais, em curto e médio prazos? E como ficam as desigualdades e o índice de pobreza nesse cenário?

O cenário de curtíssimo prazo é basicamente determinado pela evolução da pandemia – esse é um primeiro fator importante. O segundo fator importante é a vacinação – é preciso avançar e a volta à normalidade só deve vir quando a vacinação de fato atingir um percentual bastante grande da população. E, por fim, políticas públicas que mitiguem os efeitos da crise, os quais não vão sumir repentinamente. Ao contrário, podem durar bastante tempo.

Para um prazo maior, o essencial – e o próprio pagamento do Auxílio Emergencial mostrou isso, porque foram 68 milhões de pessoas que solicitaram o auxílio, um número muito acima do que o próprio governo esperava –, inequivocamente, é o desafio da retomada do crescimento e do desenvolvimento. Um bom caminho seria a retomada através de investimentos coordenados por uma ação mais forte do governo em torno da economia verde. Isso para o médio e longo prazo, num contexto de pós-pandemia.


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