20/04/2024 - Edição 540

Especial

A democracia em risco

Publicado em 04/06/2021 12:00 -

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Aliados de Jair Bolsonaro têm usado as instituições brasileiras como ferramenta para ofensiva jurídica e intimidatória a intelectuais críticos do governo e do bolsonarismo. A prática da perseguição política não está abertamente disseminada nem é institucionalmente estabelecida no Brasil, mas casos pontuais reproduzem o modus operandi de governos totalitários e autocráticos pelo mundo afora. 

Dois casos ocorridos no mês passado tiveram grande repercussão pelos mecanismos heterodoxos na tentativa de reprimir a liberdade de expressão de críticos do presidente e de seu séquito. Um deles envolve o professor de direito constitucional da USP Conrado Hübner Mendes, doutor em direito e ciência política, colunista do jornal Folha de S.Paulo, e tem como algoz o procurador-geral da República, Augusto Aras. 

O outro foi uma ação de dois senadores bolsonaristas na CPI da Pandemia que utilizaram a Polícia do Senado para tentar punir Celso Rocha Barros, doutor em sociologia pela Universidade de Oxford. Assim como Conrado Hübner, Rocha Barros também é colunista na Folha de S.Paulo, veículo de imprensa que tem se posicionado de maneira crítica ao atual governo.

"Tem efeito psicológico, parece que você será preso"

“Isso mostra o grau de esculhambação da política brasileira. Alguém achou que era razoável acionar a Polícia do Senado para reclamar de um artigo de opinião. E tem um efeito psicológico, parece que você será preso. Obviamente é uma tentativa de intimidação”, disse Celso Rocha Barros. 

O colunista diz não ter dúvidas de que “estão tentando calar os críticos”. “Os bolsonaristas percebem que estão em crise, os números nas pesquisas estão piorando bastante. Grupos que antes pareciam estar fechados com eles, como os militares, não estão dispostos a afundar junto”, afirmou. 

Segundo ele, o caso de Conrado Hübner é ainda pior pelo fato de o procurador-geral ter acionado o Conselho de Ética da USP com objetivo de punir o professor da universidade, além de ter ajuizado na Justiça Federal do Distrito Federal uma queixa-crime contra o professor universitário. 

“O procurador-geral está fazendo perseguição política. Ele tinha que ser derrubado. Evidentemente ele está perseguindo opositores, como fez o ex-ministro da Justiça André Mendonça, que se prestou a processar jornalistas que falam mal de Bolsonaro”, criticou o colunista.

Em entrevista à DW Brasil, Conrado Hübner afirma que “esse tipo de ataque tem sido comum e indistinto para quem emite críticas à esfera pública”. “Faz parte de um conjunto bastante extenso de repressão à ciência, à intelectualidade, à pesquisa e à opinião crítica. Liberdades em geral estão despencando no Brasil, e isso são os grandes relatórios globais sobre qualidade da democracia que estão dizendo. A liberdade acadêmica, especificamente, também está decaindo.”

Boletins têm textos idênticos até nos erros

Rocha Barros escreveu uma coluna intitulada Consultório do Crime tenta salvar Bolsonaro na CPI da Covid, em que aponta a existência de um grupo de parlamentares na comissão que atuam com intuito de “tumultuar a investigação, mentindo sobre a medicina”. Citou dois exemplos: os senadores Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luiz Carlos Heinze (PP-RS). Ambos acionaram a Polícia do Senado e fizeram “boletim de ocorrência” contra Rocha Barros. O órgão legislativo instaurou procedimento para apurar “crime contra a honra”. 

“A Polícia do Senado não tem atribuição de investigar isso. É absolutamente abusivo e protocolamos uma petição dizendo que o Celso não prestaria depoimento algum”, afirmou Luiz Francisco Carvalho Filho, advogado do sociólogo. A Polícia do Senado, acrescenta Carvalho Filho, “foi uma criação do Poder Legislativo para o resguardo da ordem dentro do Congresso”. “Não seria necessário que existisse, e agora querem ampliar as atribuições da Polícia do Senado. Essa atribuição de proteger a honra de senador ofendido não existe”, explica o advogado. Celso Rocha Barros, segundo o advogado, tem o direito de crítica e não vai se explicar pelo que disse. “Estamos aguardando e a expectativa é que o procedimento seja arquivado por falta de propósito.”

O “termo circunstanciado” [boletim de ocorrência] feito pelos dois senadores na Polícia do Senado Federal tem peculiaridades, a começar pelo local de ocorrência, que é a “rede mundial de computadores, sítio do jornal Folha de S.Paulo”.

O texto dos dois boletins de ocorrência é idêntico, repleto de erros ortográficos, mudando-se apenas o nome dos parlamentares em cada um deles.  Ambos alegam que o sociólogo tem “evidente interesse em denegrir a imagem” dos parlamentares e que o título de sua coluna tem a pretensão de qualificar os senadores como criminosos. 

Além de acusarem o colunista de ofensa, alegam que Rocha Barros tem o “interesse torpe” de taxar os dois senadores como cúmplices do presidente da República na morte de mais de 100 brasileiros durante a pandemia [o autor cita que o Brasil se aproxima de quase meio milhão de mortes]. “Desafio Heinze, Girão, Osmar Terra ou qualquer outro cúmplice de Bolsonaro a me mostrar um estudo em que Bolsonaro seja responsável por menos do que 100 mil mortes até o fim da pandemia”, escreveu Celso Rocha Barros, possivelmente o trecho ao qual os parlamentares se referem, ainda que a grafia do boletim de ocorrência cite 100, e não 100 mil.

Colunista vê bolsonarismo acuado

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não se pronunciou sobre o caso. Pelo Twitter, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que é relator da CPI da Pandemia, escreveu que “a iniciativa da Polícia do Senado de investigar jornalista por emitir opinião é ilegal, rebaixa a instituição e envergonha quem está comprometido com valores democráticos”. 

Para Rocha Barros, a ofensiva do movimento autoritário ligado a Bolsonaro dá sinais de desespero e declínio, ainda que não se possa prever uma derrota eleitoral em 2022.

“Na CPI, colocaram esses senadores só para bagunçar, tumultuar. Todas as vezes em que a investigação está progredindo, eles entram lá falam coisas totalmente sem pé nem cabeça para gerar polêmica, virar uma briga. E isso é acobertar um crime. Eu tenho o direito de achar que isso é crime. O que eles fizeram é incontroverso. Vamos chegar a meio milhão de mortos. Isso tem que ser investigado. Entrar num procedimento investigativo para fazer palhaçada é terrível, uma conduta inaceitável”, justifica o colunista.

"Bolsonarismo penetrou nas instituições"

“O bolsonarismo penetrou nas instituições e as contaminou com uma visão autoritária, com ataques recorrentes à liberdade de imprensa, com a construção de uma pauta retórica de verdades que estão muito distantes de serem apuradas como tal”, alerta o advogado Marco Aurélio Carvalho, coordenador do grupo Prerrogativas, que atua em defesa do Estado Democrático de Direito. Ele aponta que “funções estratégias do Estado estão sendo ocupadas por pessoas que têm afinidade de princípios e proposições com Bolsonaro e o alto comando do governo”, sendo que o procurador-geral da República é a maior demonstração disso. 

“Quando um procurador-geral vai para cima de um colunista, talvez isso seja o ápice da contaminação deste pensamento numa instituição que é um dos pilares da manutenção da democracia, como a PGR.” Bolsonaro e seu grupo, acrescenta, “tomaram o governo de assalto para defender seus próprios interesses”.

O arcabouço legal brasileiro, sustenta Carvalho, assegura e defende a liberdade de expressão “em todo e qualquer sentido”. “Temos uma das Constituições mais elogiadas do mundo para amparar esse direito da livre manifestação, de liberdade de imprensa. Essa Constituição, com todo arcabouço infraconstitucional, está sendo utilizada para defender a democracia no país e o direito das pessoas de se informarem e prestarem informação.” Esse arcabouço legal, segundo o advogado, assegura relativa tranquilidade para o exercício dessas atividades, ainda que sob constante ameaça. A reação ocorre e é diária, observa Carvalho, mas dá trabalho e provoca bastante desgaste aos que se tornaram alvos.

O exército cooptado

De duas, uma. Não era o general Eduardo Pazuello, talvez um sósia dele, o cidadão de baixa estatura, balofo, testa larga e sorridente que pilotou uma moto no último dia 23 de maio, no Rio, subiu em um carro de som e, ao lado do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), discursou para uma multidão barulhenta de motociclistas.

Ou então: era Pazuello, sim, mas por um desses truques de computadores, tiraram-lhe a farda e meteram-lhe trajes civis, e trocaram a plateia formada por militares reunidos em um amplo auditório por outra de motociclistas que aclamava o presidente da República. Coisa feita para a internet, sabe como é…

Se não era o general, mas alguém parecido com ele, não havia de fato porque Pazuello ser punido pelo general Paulo Sérgio Nogueira, comandante do Exército, que fez muito bem ao arquivar o procedimento administrativo aberto para investigá-lo. Mas se era, como não puni-lo pelo menos com uma advertência oral?

Era a pena mais leve. Por ser oral, a advertência não constaria da folha corrida de Pazuello ao se aposentar daqui a menos de um ano. Passados mais alguns meses, o assunto seria esquecido. Jamais, porém, será esquecida a decisão de Nogueira de arquivar o caso, acolhendo os argumentos esfarrapados da defesa do general.

Pazuello admitiu que pilotou uma moto, subiu no carro de som e falou para a multidão à sua frente. Mas disse que aquela não foi uma manifestação político-partidária. Que ele estava ali como convidado do presidente. E que, como general, não poderia negar-se a falar, como ordenara o Chefe Supremo das Forças Armadas.

O regulamento disciplinar do Exército considera transgressão “manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária”. O estatuto dos militares diz que “são proibidas quaisquer manifestações coletivas” de caráter reivindicatório ou político.

E daí? Daí que o Exército, por meio do seu comandante, ajoelhou-se aos pés de Bolsonaro. O comandante ouviu do presidente que Pazuello deveria ser poupado, e se rendeu à sua vontade. Um manda, outro obedece por ter juízo e querer manter-se no cargo. Como aos olhos dos seus pares permanecerá ali?

E se amanhã um soldado qualquer recusar-se a bater continência para um oficial? E se um capitão (relembre Bolsonaro) montar em um tamborete e discursar para a tropa sobre o soldo irrisório que ela recebe? Bolsonaro foi afastado do Exército por insubordinação. E é de insubordinação que se trata agora.

O país assiste ao avanço do bolsonarismo sobre as Forças Armadas e demais instituições do Estado. Valer-se da Lei de Segurança Nacional para calar opositores não é algo normal. Não é normal ensaios de rebeliões de policiais militares. Não é normal a prisão de advogados e de militantes de partidos, mesmo que temporárias.

Para evitar a volta da esquerda ao poder, o Exército aderiu à candidatura do ex-capitão que afastou dos seus quadros por má conduta ética. Com o mesmo propósito, renovou desde já seu voto a ser depositado nas urnas do próximo ano. Guardem esta data: 3 de junho de 2021, o segundo ano da pandemia.

Nesta data, ao que tudo indica, caiu de vez a máscara do profissionalismo das Forças Armadas brasileiras e do seu apego à Constituição desde que o país se redemocratizou com o fim da ditadura militar de 64. A farda cedeu outra vez aos encantos da ideologia, do vil metal e do exercício do poder à sombra.

Haverá golpe antes das eleições do ano que vem ou depois delas se Bolsonaro for derrotado? Na verdade, o golpe está em curso “dentro das quatro linhas da Constituição”, cada vez mais largas. A democracia foi intubada com o passe concedido ao vírus da anarquia militar para que circule livremente.

O Brasil viveu até aqui tempos estranhos e preocupantes. Deve preparar-se para enfrentar doravante tempos sombrios, turbulentos, e sem desfecho previsível.

O general Carlos Alberto Santos Cruz publicou nesta sexta-feira, 4, um texto em que se diz envergonhado pela decisão do Exército de não punir o general Eduardo Pazuello por ter participado de um ato político com o presidente Jair Bolsonaro. Santos Cruz escreveu que o ocorrido é uma “desmoralização para todos nós” e que o presidente “procura desrespeitar, desmoralizar pessoas e enfraquecer instituições”.

“Mais um movimento coerente com a conduta do Presidente da República e com seu projeto pessoal de poder”, disse o militar, que foi ministro-chefe da Secretaria de Governo de Bolsonaro. “A cada dia ele avança mais um passo na erosão das instituições”. 

Santos Cruz chamou a decisão de não punir Pazuello de “subversão da ordem, da hierarquia e da disciplina no Exército, instituição que construiu seu prestígio ao longo da história com trabalho e dedicação de muitos”.

O militar lembrou ainda que Bolsonaro já se referiu à instituição como “meu Exército”. “O ‘seu Exército’ não é o Exército Brasileiro. Este é de todos os brasileiros. É da nação brasileira”, escreveu ele.

O general terminou o texto pedindo que a politização das Forças Armadas seja combatida “pela raiz”. “Independente de qualquer consideração, a união de todos os militares com seus comandantes continua sendo a grande arma para não deixar a política partidária, a politicagem e o populismo entrarem nos quartéis”, concluiu.

Leia o texto completo abaixo.

Em nota, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, alertou que a situação é grave e exige respostas firmes para que a ordem institucional seja mantida. Leia a íntegra:

"A lei estabelece claramente que a hierarquia e a disciplina são a base institucional das Forças Armadas. Não é raro ouvir declarações públicas dos comandantes militares de que “quando a política entra pela porta da frente num quartel, a hierarquia e a disciplina saem pela porta dos fundos”. Pois a decisão de hoje escancarou as portas, ao não punir um general da ativa que participou de um evento político, em clara afronta à disciplina e ao que determina a lei. A partidarização das Forças Armadas ameaça a democracia e abre espaço para a anarquia nos quarteis. A grave situação do país exige das instituições respostas firmes para impedir retrocessos e quebra da ordem institucional".

Para Celso Amorim, que chefiou o Ministério da Defesa no primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, a situação é gravíssima. “O Exército é uma instituição do Estado, não do governo. Então, as pessoas ali têm que obedecer a Constituição, a lei e os regulamentos. O que houve, obviamente, foi um desrespeito ao regulamento, como o Mourão, um general de quatro estrelas, disse”, afirmou Amorim.

“Se houver uma situação no Brasil similar ao que foi a invasão do Capitólio, você não tem a quem recorrer. É uma hipótese, não estou dizendo que vai ocorrer. Vai ser a força da delinquência se fazendo presente. É uma situação em que não apenas a integridade das Forças Armadas é ameaçada, mas a integridade das instituições democráticas. É muito grave. Do ponto de vista institucional, é a coisa mais grave que já aconteceu”.

Celso Amorim afirma torcer por uma reação “bastante afirmativa” das forças democráticas, inclusive do Congresso Nacional. Afinal, ressalta, “o comandante do Exército não ia tomar uma decisão dessa gravidade sem auscultar o alto comando. Ele deve achar que tem apoio para tomar a decisão que tomou, uma decisão que abre a porteira para uma politização das Forças Armadas”.

O ex-ministro também analisou as recentes ocasiões em que Jair Bolsonaro se referiu ao “meu Exército”.

“Eu acho que o que fica bastante claro é que isso não foi uma coisa casual, uma transgressão casual que você pode punir ou deixar de punir. Isso foi planejado. Ele chamava de ‘meu Exército’ e o general [Edson] Pujol [ex-comandante do Exército] não se comportava de maneira que implicasse aceitar essa caracterização. Nós não temos um imperador. Então, ao considerar ‘meu Exército’, é como um imperador. E acho que tudo isso que aconteceu não foi gratuito. O general Pazuello, que já está fustigado por outros lados, conhece os regulamentos, que são claríssimos. Aquela manifestação foi obviamente política”, pondera Amorim.

Veja outras manifestações contra o alinhamento do Exército.

A PM cooptada

A conduta do Batalhão de Choque da Polícia Militar durante a manifestação contra Jair Bolsonaro (sem partido) no último dia 29 no Recife (PE) cegou dois homens, atingidos por balas de borracha disparadas por policiais na direção da cabeça. Os projéteis acertaram os olhos de Daniel Campelo da Silva, de 51 anos, e Jonas Correia de França, de 29 anos, ambos perderam parte da visão. O Governo de Pernambuco disse que a operação não foi autorizada.

A operação truculenta dos policiais fez com que o governador Paulo Câmara (PSB) afastasse o comandante da operação no protesto da PM, Vanildo Maranhão, que posteriormente pediu exoneração do cargo. Outros quatro policiais militares envolvidos na agressão contra a vereadora do Recife Liana Cirne (PT) foram afastados, ela foi atingida com spray de pimenta no rosto por policiais. 

O secretário de Defesa Social, Antônio de Pádua, segue no cargo. Até o momento o governo não explicou quem deu a ordem para o ataque, o que está sendo investigado por meio de um inquérito policial de lesão corporal gravíssima e um inquérito policial militar para investigar a atuação da polícia.

O descontrole da conduta da Polícia Militar continuou pouco tempo depois, mas em outro estado. Em Goiás, um professor que se recusou a retirar um adesivo escrito ‘Bolsonaro genocida’ do carro foi preso pela PM do governo de Ronaldo Caiado (DEM), no último dia 31. 

O professor Arquidones Bites, que é secretário de movimentos populares do PT, foi levado para a Polícia Federal em Goiânia. Os policiais apresentaram como motivo da prisão a LSN (Lei de Segurança Nacional), editada em 1983, no final da ditadura militar (1964-1985). O professor foi liberado no mesmo dia pela PF e o policial envolvido na detenção foi afastado das atividades nas ruas.

Os atos recentes ocorridos com respostas das polícias militares acenderam um alerta a autoridade ou a falta dela dos governadores dos respectivos estados e mostram falhas históricas dos governos de centro-esquerda na atribuição de papel dada à PM, hoje usada pelo bolsonarismo como massa de manobra, dizem pesquisadores. 

Para entender os últimos acontecimentos, é preciso olhar a situação de exceção na qual a polícia trabalha para além do bolsonarismo, afirma Orlando Zaccone, fundador e atual coordenador do movimento Policiais Antifascismo, que também é doutor em ciência política pela Universidade Federal Fluminense e membro da Leap (Law Enforcement Against Prohibition), organização internacional que reúne policiais, promotores e juízes na busca de alternativas à guerra às drogas. “Essas ocorrências tanto em Pernambuco como em Goiás demonstram que as polícias estão sem controle político dos governadores.”

Para ele, “se o governador, imediatamente após os fatos em Pernambuco, afastou o comandante geral da PM e se o policial que apreendeu o professor também foi afastado em Goiás, significa que essas condutas não são politicamente desejadas. Mas se a polícia atua na contramão do desejo político do governador significa que esses governos estão sem controle político das polícias”.

O descontrole se dá a fatores históricos e a um discurso despolitizado dos governos de centro e centro esquerda, segundo Zaccone. “A direita nunca disse que a polícia não tinha que ter controle político, pelo contrário a direita sempre trabalhou em ter o controle político das polícias. Quem veio com esse discurso de que a polícia é um órgão técnico e que a política não deve se intrometer foi a esquerda. Infelizmente o discurso é equivocado”. 

O pesquisador afirma que muitos governadores, principalmente do campo progressista, têm medo de “fazer a governabilidade e o controle social da polícia”. “Já vimos secretários de segurança e delegados federais que eram colocados na Secretaria de Segurança Pública vindo de outros estados, sem nenhuma realidade com o estado onde iria exercer a função, sob o argumento de que estavam tratando a segurança de uma forma profissional e técnica, afastando a política da área de segurança.” Ele cita o exemplo da governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra (PT), cujo Secretário de Segurança Pública é Coronel Araújo, alinhado a Bolsonaro. 

Zaccone também lembra que historicamente esse trato na segurança pública passou pelos governos populares do pós-ditadura, como no caso de Leonel Brizola (PDT), no Rio de Janeiro, Alceu Collares (PDT), no Rio Grande do Sul, Franco Montoro (PSDB), em São Paulo, além de Miguel Arraes (PSB), em Pernambuco: “foram governos que tentaram fazer modificações na área de segurança, mas fracassaram”. 

O pesquisador explica que os governos citados aconteceram no momento em que a violência urbana e os índices criminais no mundo, sobretudo nos países periféricos como o Brasil, estavam crescendo e o discurso que cresceu foi o de que a defesa dos direitos humanos era a defesa do bandido. “Essa foi a derrota do campo progressista. E a partir daí os governos de esquerda começaram a não querer assumir a implantação de políticas de segurança em seu próprio nome, começavam a tratar a segurança pública como uma questão técnica, algo que os policiais podem gerir, ou seja, chegamos nesse momento sem nenhum controle político.”

Nessa trajetória, a esquerda se afastou de assumir um discurso político sobre segurança pública, “com medo do resultado negativo daqueles governos pós-ditadura”.

Com a eleição de Bolsonaro, Zaccone diz que, com o pensamento militar e conservador deste governo, a PM se vê muito mais a serviço do Exército do que do governador. “Abre espaço para a polícia ter autonomia, ela vai operar independente dos resultados que a sua ação possa causar ao governador”. 

Por isso, segundo ele, a desmilitarização ajudaria a devolver às polícias o comando dos governadores. “Hoje a legislação que rege as Polícias Militares, o decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983, em última instância diz que quem tem a última palavra é o Exército, não é o governador. O governador paga salário, nomeia o comandante geral da PM, mas ainda está em vigor um dispositivo na lei que diz que se o Exército não aceita o comandante geral indicado pelo governador ele não assume”.

Em última instância, a Polícia Militar serve a dois senhores, ao governador e ao Exército, complementa Zaccone. “Essa estrutura militarizada da segurança pública também permite contribuir para esse distanciamento da tropa em relação ao governo estadual”.

Controle frágil e omissão

No mesmo sentido da análise de Zaccone, a doutora em segurança pública, antropóloga e professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz, que já foi Coordenadora de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, também avalia que os governadores vêm sendo omissos na gestão da segurança pública dos estados. “Quem dá o fim da política é o governante, ele que determina os meios logísticos de atuação, os armamentos, e os modos táticos de intervenção”.

“Quando você não dá a missão clara, você autonomiza os meios para agirem conforme cada um a sua cabeça, produzindo sentenças diferentes nas ruas. O não decidir é tão responsável quanto o decidir”, diz a pesquisadora, se referindo à conduta do governo de Pernambuco.

O grande problema do Brasil é o controle da ação policial, para ela. “Aqui nós sofremos de autonomia demais e controle de menos, os governantes engordam onças [policiais] e põem elas no quintal e depois elas comem o braço deles. É um problema crítico no Brasil, tem que controlar a capacidade coercitiva da polícia, o potencial de autonomização e quebrar o monopólio de ação da polícia. O poder de polícia pertence à sociedade e é administrado pelo Estado”. 

De acordo com a pesquisadora, há um cheque em branco na segurança pública brasileira, que não é transparente. “O processo decisório é de baixa visibilidade social e informal, mostrando debilidade na cadeia de comando e controle das organizações de força no Brasil, isso vai da PF [Polícia Federal] ao Guarda Municipal da esquina, é um problema crônico. É um cheque em branco preenchido por lógicas particularistas, corporativistas e partidárias.”

Para ela, a influência de Bolsonaro nas polícias funciona como um estimulo para as condutas radicais, mas não são um fim em si mesmas. “O bolsonarismo se beneficia como um ‘estimulante muscular’ e um ‘anabolizante moral’, de levantar a auto estima de sujeitos desvalorizados que são os policiais, um anabolizante para iludi-los com o ‘canto do boto policial’, achando que eles têm mais poder do que de fato tem, isso só é possível porque estruturalmente no Brasil não se controlou e não se controla o uso da força intencionalmente. Enquanto isso, os debates de segurança seguem ‘cloroquinados’ e as pessoas morrendo, não é razoável explicar 29 mortes no Jacarezinho”.

Por isso, na visão da pesquisadora, o bolsonarismo não funciona sozinho dentro das policias. “O sujeito se sentir à vontade na rua para quebrar os protocolos, rasgar a lei, a legalidade e a legitimidade é porque os mecanismos de controle são falhos, não se tem governo. O governador tem na mão o regulamento disciplinar, o estatuto do servidor público, o estatuto do servidor militar, a Justiça Militar, ele tem mecanismos internos de sanção e premiação de condutas extremas, toda vez que um policial tem uma conduta extrema ele está violando o seu próprio código de ética”.

Boneco de posto de gasolina

Jacqueline lembra que ações como as que ocorreram nos últimos dias não são novas e que é preciso que os governadores encarem a segurança pública com seriedade. “Assistimos governadores que querem empurrar para longe do Planalto a segurança pública, porque é portadora de má notícia, serve para o oponente perder a eleição, então não assume governabilidade, fica igual boneco de posto de gasolina, movendo o braço conforme o vento e a opinião pública. É importante uma política pública escrita de segurança pública, de polícia e de policiamento para dar previsibilidade, estabilidade”.

O bolsonarismo só cresce por conta desses motivos, esclarece a pesquisadora. “Hoje se põe tudo na conta do bolsonarismo ainda que ele esteja lá atuando, é diferente, mas ele só cresce nesse ambiente por conta desses fatores. Está na hora de pegarmos o poder de polícia que é nosso, é da sociedade, quem decide o armamento da polícia é a sociedade, a capacidade coercitiva, onde começa e termina o poder de polícia é a sociedade. Está na hora de regulamentar e atualizar o poder de polícia no Brasil que foi definido em 1966 no auge da ditadura. Está na hora de usar a tinta da caneta e governar”, alega Jacqueline.

“Se não vamos experimentar golpes de novo. Todos ficam brincando de arrependimento em rede social, os governadores precisam parar de querer ser lacradores de redes sociais e governar. O presidente é um meme militaresco, desenhado por civis, porque sequer conhecimento militar e policial ele tem. O que nós estamos assistindo é uma farra das licitações, a indústria da insegurança e um projeto autoritário de poder”, finaliza a professora.

Alinhamento

Ainda que permeada por diversos aspectos sociais, a presença das ideias bolsonaristas nas polícias são fortes. Em abril deste ano, uma pesquisa do instituto Atlas mostrou que 71% dos PMs declaram ter escolhido Bolsonaro no segundo turno em 2018 e 81% dizem que continuam hoje contentes com a opção que fizeram. Somente 17% afirmam ter arrependimentos.

O estudo feito a pedido da revista Época ainda revela que entre os policiais civis, 53% disseram ter votado em Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018 e, desse total, 61% diz estar arrependida. Na PF, nas últimas eleições presidenciais, 61% dos agentes optaram pelo atual presidente. Hoje, 38% deles se dizem arrependidos. 

Outra pesquisa divulgada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em agosto de 2020, apontou que 41% dos praças da PM participavam de grupos bolsonaristas nas redes sociais e aplicativos de mensagens, 12% defendiam o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso e 25% defendiam ideias radicais. 

Para Adilson Paes de Souza, tenente-coronel da reserva da PM paulista e autor da tese de doutorado “O policial que mata: um estudo sobre a letalidade praticada por policiais militares do Estado de São Paulo”, pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, os dados mostram que a democracia brasileira corre riscos. “Uma parcela significativa de policiais militares podem atuar em pleitos antidemocráticos se Bolsonaro não ganhar as próximas eleições. Nós temos atuações policiais militares contra a democracia”.

Assim como os demais pesquisadores, Adilson também indica que houve omissão histórica para tratar da segurança pública. “Nós temos exércitos estaduais atuando com uma lógica militar que é permeável ao discurso bolsonarista e que é reacionário, muito conservador e centrado na militarização. Os governadores dos Estados não sabem o que fazer. Eles não sabem exatamente até que ponto as polícias fecham com eles”, completa.

A aderência do bolsonarismo entre soldados, cabos, sargentos e subtenentes nos quarteis da PM é significativa em todo o país, mais até do que nas Forças Armadas. Tanto que o presidente tem nesse grupo uma das bases de seu eleitorado. Não à toa, defende com unhas e dentes a aprovação do excludente de ilicitude, sempre que pode, está presente em formaturas de policiais e até já defendeu policiais milicianos no Rio de Janeiro.

Para transformar essa influência simbólica em controle objetivo, parlamentares aliados do presidente empurram propostas para restringir o poder dos governadores sobre. Preveem mandato para os comandantes-gerais da PM, com escolha a partir de lista tríplice oferecidas pelos oficiais. E querem facilitar a requisição de policiais pelo governo federal.

A pandemia de covid-19 viu fortalecer o federalismo, com parte dos governadores barrando a omissão e a irresponsabilidade do presidente no enfrentamento da crise sanitária. Isso irritou Bolsonaro, que bravateia contra Estados que adotarem lockdown com a força do "meu Exército".

Lideranças bolsonaristas insuflam forças policiais nos Estados, como foi visto no motim de agentes da PM no Ceará, em fevereiro do ano passado, e no caso do policial que entrou em surto psicótico e atirou nos próprios colegas antes de ser morto em Salvador (BA). A tragédia, ocorrida no dia 28 de março, foi usada por deputados e policiais bolsonaristas para tentar incitar um motim contra o governo estadual.

Alvo do "Meu Exército" e da "Minha Polícia" são as eleições

Imaginem o que pode acontecer se um presidente com grande influência sobre tropas policiais e um Exército sem coluna vertebral resolver afirmar, após uma derrota em 2022, que a eleição foi roubada.

Ele pode ter sucesso naquilo que Donald Trump falhou, com sua invasão ao Congresso norte-americano. Não se trata de intervenção tradicional, mas de levantes policiais "contra a fraude" e em nome da "legalidade". Com Bolsonaro entregando à sociedade a possibilidade de comprar arsenais com decretos e portarias, a banda podre da polícia, as milícias, e o bolsonarismo-raiz estarão bem preparados.

O bolsonarismo tem um componente revolucionário. Mas ele não conta, neste momento, com força para adotar uma mudança através de um processo violento e agudo. Por isso, desde que assumiu o poder, vem minando ou sequestrando instituições, tornando-as flexíveis às suas necessidades de acúmulo e de manutenção do poder. Receita Federal, Coaf, Polícia Federal, Procuradoria-Geral da República.

A ditadura é revivida não apenas quando inconsequentes – que usam sua liberdade de expressão contra a liberdade de expressão alheia – vão às ruas pedir "intervenção militar constitucional", vulgo, golpe, ou quando o governo tentar calar comunicadores e jornalistas. Mas também quando cidadãos, normalmente pobres, sofrem violência pelas mãos do Estado ou de pessoas treinadas por ele a fim de garantir a ordem (nas periferias das grandes cidades) e o progresso (no campo).

Policiais, é importante reconhecer, são sistematicamente maltratados, com baixa remuneração e falta de condições de trabalho por uma sociedade que não se importa se eles vivem ou morrem. A esquerda, com raras exceções, falhou por não ouvir os policiais para a construção de um projeto de segurança pública cujo foco seja a população.

Enquanto isso, Bolsonaro tornou-se deputado representando os interesses trabalhistas dos praças militares e policiais e com eles manteve uma relação duradoura. Muitos matariam pelo capitão.

O campo democrático se preocupa, com justiça, com as Forças Armadas. Mas se esquece que aquelas Forças Armadas têm herdeiros que estão muito mais próximos do presidente do que a cúpula militar. E são esses herdeiros que controlam a vida e a morte hoje no país.

Senado trava revogação da Lei de Segurança Nacional, usada para inibir críticos de Bolsonaro

Um mês após a Câmara decidir pela revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN), a medida ainda segue em vigor. O projeto que altera a legislação elaborada no período da ditadura militar empacou no Senado, que nem sequer definiu um relator para analisar a proposta. O governo é contra a redação aprovada pelos deputados e atua para barrar o projeto. Enquanto isso, a regra segue sendo usada para inibir críticos do presidente Jair Bolsonaro.

Um dos casos mais recentes ocorreu no início da semana, em Trindade (GO), onde um policial militar deu voz de prisão a um professor que se negou a retirar do seu carro uma faixa em que chamava Bolsonaro de “genocida”. O agente de segurança citou como justificativa artigo da LSN que trata como crime “caluniar” o presidente da República, com pena de até quatro anos de detenção. A Polícia Federal, no entanto, não viu ilegalidade e liberou o professor.

Para a senadora Eliziane Gama (Cidadania-MA), a ação do policial poderia ter sido evitada caso o Senado já tivesse revogado de uma vez a lei atual. “É estarrecedora e fruto de total abuso de autoridade a prisão do professor em Goiás. Esse despojo da ditadura vem sendo utilizado como medida de intimidação contra os cidadãos que se manifestam pacificamente contra o governo”, afirmou ela, que é autora de um projeto semelhante ao que foi aprovado na Câmara para substituir a LSN. “Vamos cobrar a votação da proposta e levar o assunto ao colégio de líderes na próxima reunião”, afirmou Gama. Desde a aprovação pelos deputados, no dia 4 de maio, o Senado já realizou dez sessões e votou outros 38 projetos.

Entre os motivos apontados por senadores para o freio está a necessidade de se ampliar o debate sobre a mudança. Ao revogar a LSN, a Câmara criou no lugar a chamada “Lei do Estado Democrático”, que tem como pressuposto, entre outros pontos, instituir o crime de golpe de Estado, inexistente na legislação atual nestes termos. O texto, porém, sofre resistência de governistas, que tentam barrar a previsão de prisão de até cinco anos para quem fizer disparos de fake news em massa durante o período eleitoral.

Bolsonaro é alvo de ações no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que investigam, justamente, a contratação de empresas de tecnologia para disparo de mensagens em massa pelo WhatsApp durante a campanha em que foi eleito, em 2018. O tribunal, no entanto, já rejeitou processos semelhantes por falta de provas.

Aliados do presidente também são contrários a retirar da lei a punição para quem caluniar ou difamar o presidente da República, sob o argumento de que seria uma “carta branca” para Bolsonaro ser chamado de “genocida”. Apesar da pressão governista, o trecho foi revogado pela Câmara.

“O texto aprovado na Câmara vai ter que ser analisado com calma, pois há temas delicados como a inclusão de 14 novos crimes, os chamados ‘crimes contra o Estado Democrático de Direito’”, afirmou o vice-líder do governo, senador Marcos Rogério (DEM-RR), que cita entre os “novos crimes” o compartilhamento de mensagens em massa nas eleições. Ele se diz favorável à revogação da LSN, que chama de “entulho autoritário”, mas pede cautela com o que vai ser aprovado no lugar. "Teve uma nova Constituição em 1988 e a LSN tinha que ser interpretada à luz dela”, disse.

Como mostrou o Estadão no último dia 30, a ofensiva jurídica de Bolsonaro contra críticos ao governo tem sofrido seguidos reveses na Justiça e no Ministério Público. Ao menos dez pedidos de investigações, quatro delas baseadas na LSN, foram suspensas nos últimos meses. Para especialistas, apesar de derrotadas nos tribunais, as ações servem como uma forma de intimidação a oposicionistas.

O número de procedimentos abertos com base na lei pela Polícia Federal para apurar supostos delitos contra a segurança nacional aumentou 285% nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, na comparação com o mesmo período das gestões Dilma Rousseff e Michel Temer.

Oposição

Além de governistas, partidos de oposição também defendem mudanças na proposta aprovada na Câmara. Parlamentares de siglas de esquerda veem uma brecha que, na visão deles, permitiria criminalizar a atuação de movimentos sociais.

Na Câmara, a relatora do projeto, deputada Margarete Coelho (Progressistas-PI), acatou em parte a demanda da oposição e acrescentou uma ressalva para resguardar a manifestação crítica aos poderes e reivindicação de direitos por meio de passeatas, reuniões, greves, aglomerações ou qualquer outra forma de manifestação política. A mudança, porém, não foi suficiente e parlamentares pedem que essa "blindagem" seja mais clara.

Diferentemente do Senado, na Câmara o projeto foi tratado como prioridade e contou com o apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (Progressistas-AL). Ao revogar a LSN, os deputados se anteciparam a uma possível decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para limitar o alcance da legislação atual. Ao menos cinco ações de partidos políticos, sob relatoria do ministro Gilmar Mendes, questionam trechos da regra em vigor, e magistrados já indicaram ver inconstitucionalidades.

Durante as discussões na Câmara, Margareth Coelho chegou a se reunir com o presidente do Corte, Luiz Fux, para pedir que aguardassem uma definição do Congresso Nacional antes de as ações que questionam a LSN serem julgadas. O argumento foi o de que o STF poderia se debruçar sobre uma legislação que já não teria mais validade.

O impasse do Senado para analisar a revogação da LSN é visto com apreensão por ministros do Supremo, mas o discurso é de que o ideal é aguardar uma “solução política”. A preocupação da Corte é que uma decisão agora seja interpretada como mais uma interferência do Judiciário no momento em que o Legislativo ainda discute a medida.

“Esse fato envolvendo um professor em Goiás é emblemático da importância da Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito (que substitui a LSN), porque a livre manifestação do pensamento é um direito constitucional, é um dos pilares da democracia”, disse Margareth Coelho. Cabe a ela agora apenas aguardar o avanço do seu projeto no Senado.

O perigoso afastamento da política

Um estudo realizado pelo Ibope e pela Rede Nossa São Paulo mostrou uma situação preocupante para o regime democrático e o exercício da cidadania. Segundo o levantamento, 67% das pessoas entre 16 e 24 anos na cidade de São Paulo não têm nenhuma vontade de participar da vida política do Município. Dois terços de uma parcela especialmente relevante da população – a nova geração, que se aproxima da vida adulta – querem distância da política. Apenas 19% disseram ter alguma vontade de participar da vida política e 15%, muita vontade.

Realizada no mês de janeiro com 800 pessoas na cidade de São Paulo, a pesquisa apresentou aos entrevistados uma série de possibilidades de atuação na vida política, que iam desde o compartilhamento de notícias sobre política na internet e trabalho voluntário até a participação em atos de rua e atuação em conselhos municipais. Quase a metade (42%) respondeu que não pratica nenhuma das ações listadas.

Segundo o público pesquisado, a forma mais frequente de fazer política é a assinatura de abaixo-assinados (22%), seguida do compartilhamento de notícias em redes sociais e em aplicativos de mensagens (18%) e atuação no movimento estudantil (15%).

O quadro é especialmente grave tendo em vista que as pessoas reconhecem a importância da participação política, mas mesmo assim não veem sentido nessa atuação. “Sei que é importante acompanhar, mas não me vejo refletida na política”, disse Giovanna Paulo, de 20 anos, que trabalha numa fábrica de automóveis.

Não é, portanto, apenas uma carência de informação. Pode-se dizer que há uma resistência consciente a participar da vida política, por entender que essa atuação seria inútil ou mesmo contraproducente. É a desilusão motivando um desejo de distância da política.

Outro ponto que desperta especial preocupação refere-se ao voto. Questionados se a proximidade das eleições levava a um maior interesse pela política, 43% discordaram totalmente dessa afirmação.

Ou seja, mesmo nesse momento único da democracia, em que o cidadão tem nas mãos o poder de direcionar os rumos da cidade, do Estado e do País, boa parte da juventude sente-se desinteressada da política. É um grave sintoma do desapreço pelo voto. Para parte da população, nem na hora de escolher seus representantes a política adquire algum interesse.

Mais do que simplesmente condenar a juventude pelo distanciamento da política, os resultados da pesquisa devem levar a uma reflexão. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer a existência de um problema grave. O regime democrático não funciona bem quando parcela importante da população está distante da política.

Tal problema tem uma dimensão ainda maior quando são os jovens os que querem distância da política. Já não se trata de uma questão apenas do presente, mas também do futuro. Quem zelará pelo regime democrático nos próximos dez, vinte, trinta anos?

Em segundo lugar, é preciso investigar e, na medida do possível, sanar a causa da desilusão dos jovens com a política. Não basta repetir a importância da participação de todos. Tal consciência, como diz a própria pesquisa, é bem difundida. Trata-se de melhorar a funcionalidade do sistema político, de forma a que as pessoas se sintam estimuladas a participar.

A atuação política não pode ser vista como uma perda de tempo ou uma atividade para quem não tem outros compromissos. É justamente o oposto. Uma democracia pujante deve ser capaz de atrair jovens e adultos ocupados, com carreiras profissionais entusiasmantes, genuinamente comprometidos com o desenvolvimento social e econômico do País.

Como se vê, um sistema político disfuncional não causa apenas danos no curto prazo. Ao desestimular a participação política, ele prolonga seus nefastos efeitos ao longo do tempo, gerando um autêntico círculo vicioso.

É imprescindível, portanto, melhorar continuamente as regras e o funcionamento do sistema político. Um regime democrático saudável deve atrair e promover a participação de todos, especialmente das novas gerações. Não há democracia com distância ou alheamento.


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