26/04/2024 - Edição 540

Brasil

Após férias milionárias, Bolsonaro diz para pobres irem atrás de empréstimo

Publicado em 03/06/2021 12:00 -

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Apesar de ter entrado para o anedotário mundial, Maria Antonieta, rainha da França no século 18, nunca declarou "se o povo não tem pão, que coma brioches". Mas Jair Bolsonaro efetivamente disse, no último dia 1º, algo semelhante ao afirmar que "quem quer mais [auxílio emergencial], é só ir no banco e fazer empréstimo".

O que os trabalhadores informais pobres que perderam o emprego por conta da pandemia e não estão conseguindo sobreviver com o novo valor do benefício vão dar como garantia de um empréstimo, ninguém sabe. Os próprios rins, talvez?

"Nós gastamos em 2020 com o auxílio emergencial o equivalente a dez anos de Bolsa Família. E tem gente criticando ainda falando que quer mais. Como é endividamento por parte do governo, quem quer mais é só ir no banco e fazer empréstimo", disse.

E não é a primeira vez que isso acontece em seu governo. Não há registro que Bolsonaro ou o então ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, tenham dito: "se o povo de Manaus quer oxigênio hospitalar, que engula cloroquina". Mas foi o que, de fato, fizeram. O que, segundo Omar Aziz (PSD-AM), presidente da CPI da Covid, transformou os moradores da capital amazonense em "cobaias" da imunidade de rebanho.

Mas se a situação fiscal do país é tão grave a ponto de negar a garantia do mínimo para uma família sobreviver, por que ele gastou milhões dos recursos públicos para bancar suas férias de Ano Novo e de Carnaval?

Bolsonaro e sua equipe de apoio custaram para nós cerca de R$ 1,8 milhão em hospedagem alimentação, passagens aéreas e gastos no cartão corporativo no Carnaval, em São Francisco do Sul, litoral de Santa Catarina. Ele já tinha usado R$ 2,3 milhões dos cofres públicos para curtir o final do ano na mesma São Francisco do Sul e no Guarujá (SP). Um total de R$ 4,1 milhões. As informações foram requeridas ao governo pelos deputados federais Elias Vaz (PSB-GO) e Rubens Bueno (Cidadania-PR).

Com esse montante seria possível aumentar de R$ 375 para R$ 600 o valor pago a mais de 18,2 mil mães que chefiam sozinhas suas famílias por um mês. Ou seja, pelo menos 18,2 mil mulheres não precisariam durante 30 dias seguir a recomendação do presidente da República e ir implorar por um empréstimo bancário para poder dar de comer a seus filhos.

Na primeira onda da pandemia, o governo propôs um auxílio de apenas R$ 200, mas o Congresso Nacional forçou o aumento do valor, que passou a ser de R$ 600/R$ 1200 por domicílio. No segundo semestre, o benefício foi reduzido para R$ 300/R$ 600 por família. Na retomada, no dia 6 de abril, o valor passou a ser de R$ 150, R$ 250 ou R$ 375 mensais.

Enquanto o custo médio da cesta básica de alimentos aumentou em 15 das 17 capitais em abril, segundo levantamento mensal do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), o auxílio emergencial foi retomado com um piso muito menor que antes. Os R$ 150 compram, hoje, menos de 25% da cesta básica em Florianópolis, São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro. E, vale lembrar, a gente não quer só comida.

O valor das férias presidenciais comparado aos bilhões que o Brasil precisa para bancar auxílio emergencial, comprar vacinas, ativar leitos de UTI covid, fornecer oxigênio hospitalar, adquirir insumos para intubação de doentes é muito pouco. Poderia até ser demagogia, mas não é, porque estamos em uma tragédia que já matou 463 mil pessoas e mantém outras tantas sem comer.

De acordo com pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 19,1 milhões passaram fome (9% da população, a maior taxa desde 2004) em um universo de 116,8 milhões que não tiveram acesso pleno e permanente à comida. O levantamento foi feito em dezembro, antes, portanto, da interrupção de 96 dias no pagamento do auxílio por parte de Bolsonaro e quando o montante pago por família era maior.

O baixo valor de auxílio emergencial e as férias espalhafatosas estão, curiosamente, interligados. Com ambos, ele ajudou a empurrar pessoas de volta às ruas, forçando uma falsa normalidade – ele provocava aglomerações no litoral frequentemente.

O PIB cresceu 1,2% no primeiro trimestre, mas não há serviço para todos, o que significa que a riqueza segue se concentrando na mão de poucos. Enquanto isso, a taxa de desocupação foi de 14,7% ou 14,8 milhões de pessoas, de acordo com o IBGE. Enquanto a pandemia não arrefecer, a falsa sensação de normalidade servirá apenas para aumentar as taxas de contágio.

Preocupado que uma economia deprimida possa prejudicar suas chances de reeleição, Bolsonaro vem atacando medidas de restrição social desde o início da pandemia e ameaçando baixar um decreto para obrigar a reabertura imediata da economia. Em contrapartida, defende o contágio rápido como forma de fazer o vírus parar de circular.

"Sabemos da situação difícil que se encontra a população, que perdeu o emprego. Não por culpa do presidente, eu não obriguei ninguém a ficar em casa, não fechei comércio e por consequência não destruí emprego", acrescentou Bolsonaro nesta terça, praticando o esporte olímpico do Arremesso de Responsabilidade à Distância.

Não é verdade. Por ter atuado duramente contra as medidas de isolamento social, ter promovido um remédio considerado inútil contra a doença e demorado a comprar vacinas, o presidente alongou a pandemia por mais tempo. O que matou pessoas e destruiu empregos.

É paradigmático, portanto, que, no momento em que a população pobre mais precisa de seu presidente, ele terceiriza sua responsabilidade de garantir dignidade ao sistema bancário nacional.

Seca e pandemia agravam fome no campo

O campo brasileiro vive uma contradição: o país é o segundo maior exportador de alimentos do mundo, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC), mas três em cada quatro domicílios localizados em áreas rurais (75,2%) estavam em situação de insegurança alimentar entre agosto e dezembro de 2020, conforme estudo da Universidade Livre de Berlim publicado em abril.

A insegurança alimentar abrange desde a alimentação de má qualidade, passando pela instabilidade no acesso a alimentos, até a fome.

Segundo o levantamento, o percentual de insegurança alimentar no campo supera o das cidades (55,7%) e do Brasil como um todo (59,4%).

Os moradores de áreas rurais também estão mais sujeitos à insegurança alimentar grave, quando a escassez de alimentos chega às crianças da família e a fome passa a ser uma experiência do cotidiano.

Em áreas rurais, 28% dos domicílios estavam em situação de insegurança alimentar leve (marcada pela incerteza no acesso aos alimentos e qualidade inadequada da alimentação) ao fim de 2020; 19,9% passavam por insegurança moderada (quando há redução na quantidade de alimentos disponíveis para os adultos) e 27,3% enfrentavam insegurança alimentar grave.

Já em áreas urbanas, a insegurança alimentar leve afetava 31,6% dos lares, a moderada 11% e um total de 13,1% conviviam com a insegurança alimentar grave.

Segundo especialistas, o elevado índice de insegurança alimentar em áreas rurais no Brasil se deve a uma combinação de fatores.

Entre eles estão o maior percentual de pobreza no campo, a elevada concentração no acesso à terra, a limitação dos recursos hídricos em muitas regiões do país e o menor acesso das comunidades rurais afastadas aos equipamentos públicos de segurança alimentar e às redes privadas de solidariedade e doações.

Essa situação tem sido agravada, desde 2016, por um desmonte das políticas públicas de segurança alimentar, dizem os estudiosos. E, na pandemia, somou-se a esse quadro um menor acesso dos pequenos produtores rurais aos mercados, que prejudicou sua condição de renda.

Em 2021, uma forte seca tem tornado o cenário ainda mais dramático.

Um sistema alimentar que produz desigualdade

"O sistema alimentar dominante do país referenda e produz desigualdade", afirma Renato Maluf, coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

"A agropecuária exportadora concentra propriedade, tem impactos sociais e ambientais onde atua e promove êxodo rural. Essa é uma característica da formação histórica da sociedade brasileira, não é de agora", observa o pesquisador.

"Esse modelo não tem a perspectiva de alimentar pessoas, é um grande negócio global. O mundo nunca produziu tantos alimentos como agora e a fome continua. Portanto, não é essa a saída", avalia o especialista em segurança alimentar.

Renata Motta, pesquisadora da Universidade Livre de Berlim e uma das autoras do estudo Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil tem avaliação similar.

"A fome não é resultado da falta de produção de alimentos, mas da falta de acesso a eles", diz Motta.

"Josué de Castro, o pesquisador da fome que construiu uma agenda importante sobre o tema na Organização das Nações Unidas (ONU), sempre falava que a fome é uma questão política. Ela não é uma questão de mercado e não vai ser resolvida pelas leis de mercado, pois o mercado vende para quem pode comprar."

Ela cita o exemplo do arroz brasileiro, que acumula uma alta de preços de 57% em 12 meses até abril, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em meio ao aumento das exportações do produto para a China.

"Compra quem pode. No Brasil e no mundo, temos uma produção de alimentos suficiente para alimentar a população inteira e temos a fome, porque ela é uma questão de desigualdade."

A BBC News Brasil procurou as principais entidades representantes do agronegócio no país para falar sobre a insegurança alimentar em áreas rurais.

A Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e o Instituto Pensar Agropecuária (IPA) não quiseram dar entrevistas, mas destacaram que o setor lança em 1º de junho, junto ao Ministério da Agricultura, o programa Agro Fraterno, que vai arrecadar e doar alimentos para famílias necessitadas e afetadas pela pandemia da covid-19.

Já a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) informou através de sua assessoria de imprensa que ainda não havia recebido retorno de sua área técnica até o fechamento desta reportagem.

A seca tem agravado a situação de insegurança alimentar em comunidades rurais cuja renda já vinha sendo afetada pela pandemia desde o ano passado.

"Nossa comunidade é uma comunidade quilombola, uma comunidade carente do município de Iaciara, que é uma cidade muito pobre", conta Antonino Bispo da Silva, de 57 anos, uma das lideranças da comunidade quilombola do Levantado, em Iaciara, no nordeste de Goiás.

A comunidade fica cerca de 320 km de Brasília e pouco mais de 200 km por estrada de Alto Paraíso de Goiás.

Os quilombolas do Levantado são cerca de 40 famílias, das quais entre 200 e 300 pessoas vivem atualmente na comunidade, que há 14 anos aguarda a demarcação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

"A gente passa muita dificuldade, porque a sobrevivência da gente é o plantio da gente mesmo e já há algum tempo que aqui há falta de chuva e as nossas lavouras não rendem", diz o líder quilombola.

Além da falta de chuvas, os quilombolas enfrentam uma disputa por água com os fazendeiros vizinhos que represam o fluxo do riacho local para a produção agrícola rio acima da comunidade. Também estão em conflito com a mineradora CalBrax, que pretende explorar calcário, tendo a base de exploração a 1,5 km das casas da comunidade.

Segundo Bispo da Silva, quando não havia seca, a comunidade plantava cana-de-açúcar, banana, arroz, feijão, mandioca, milho. "A gente se alimentava e ainda sobrava um pouquinho para vender", lembra o agricultor.

Agora, as famílias têm se sustentado com a aposentadoria rural dos idosos e uma ou outra diária em fazendas que os mais jovens de vez em quando conseguem, além de doações de cestas básicas feitas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).

"Se a gente já vinha sofrendo, agora está muito mais. E, com a pandemia, quando pega serviço, não pode botar muita gente para trabalhar, para não ter aglomeração", conta. "Se não tivéssemos as pessoas que às vezes nos dão um auxílio, seria pecaminosa a nossa situação."

'Nunca tinha recebido tanto pedido de cesta básica'

Na vizinha Minas Gerais, a falta de chuva também tem agravado a insegurança alimentar na região de cerrado do norte do Estado.

"Tem 18 anos que eu trabalho aqui, desde que me formei, e eu nunca tinha recebido tanto pedido de cesta básica de comunidades rurais como está acontecendo agora", relata Samuel Caetano, assessor técnico do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA).

O CAA é uma organização formada há 35 anos por agricultores familiares e comunidades tradicionais, que atua no norte de Minas desde que a monocultura de eucalipto chegou ao cerrado, ocupando territórios tradicionais desses povos.

"Estamos numa região semiárida, de chuvas irregulares. Não é que não chove, mas o que tem que chover ao longo do período de chuva, às vezes acontece em 15 dias e isso tem um impacto muito grande, a agricultura fica muito comprometida", diz Caetano.

"No meio disso, teve o processo da pandemia, que se soma à diminuição de programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o Pnae (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e as políticas de acesso a crédito", enumera o assessor técnico.

"Tudo isso deixa a agricultura familiar muito fragilizada, porque o agricultor planta, às vezes perde o que plantou e, com o processo da pandemia, muitas vezes não consegue comercializar, porque os mercados estão comprometidos, as feiras ficaram fechadas, impedindo de vender a produção para comprar os outros itens de que eles têm necessidade."

Segundo Caetano, a segunda onda da pandemia foi muito mais devastadora do que a primeira, porque pegou as comunidades em estado muito mais frágil.

"Na primeira onda, tinha o auxílio emergencial de R$ 600 e houve um bom período de chuva, foi um ano de fartura — se produziu muita abóbora, feijão, milho, então os celeiros estavam abastecidos, mesmo que não se pudesse comercializar", relata o técnico.

"Isso foi esgotado, esse ano muita gente não conseguiu pegar o auxílio e a seca chegou forte, não vai ter mais o plantio. Então, o que se anuncia é um processo de fome, que já está acontecendo na prática e que é agravado pelo quanto o preço das coisas está crescendo."

A inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumula alta de 6,76% em 12 meses até abril. Os alimentos e bebidas, no entanto, subiram quase o dobro disso, com um avanço de 12,31% no mesmo período.

Itens básicos como óleo de soja (82%), arroz (57%), feijão preto (42%), carnes (35%) e o botijão de gás (21%) usado para cozinhar acumulam aumentos de preços ainda mais expressivos.

Como mudar esse quadro

Questionado sobre o que é preciso ser feito para mudar o atual quadro de insegurança alimentar no campo, Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan, não titubeia.

"A primeira coisa que precisa ser feita é tirar o Bolsonaro", responde o pesquisador, sem meias palavras. "Isso não é apenas uma manifestação de desejo. Não há a menor possibilidade de os programas de segurança alimentar serem retomados, da forma como foram concebidos, sob esse governo."

Maluf afirma que o desmonte dessas políticas teve início em 2016, após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT) e com a aprovação da regra do teto de gastos, que limitou as despesas do governo federal, visando controlar a trajetória da dívida pública.

Entre os programas que foram esvaziados, o pesquisador cita o de construção de cisternas, o Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar, além do fim da política de valorização do salário mínimo que, junto com o avanço do emprego, foram fundamentais para que o Brasil deixasse do mapa da fome da ONU em 2014.

Ele cita ainda a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), o encerramento da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional e o fim do Ministério do Desenvolvimento Agrário, que concentrava as ações de apoio à agricultura familiar.

"Houve um desmonte da estrutura institucional que havia sido montada nessa área", avalia.

Para Renata Motta, da Universidade Livre de Berlim, além da retomada desse sistema, é necessário, em caráter imediato, tornar o auxílio emergencial uma política perene enquanto durar a pandemia, para que não seja necessário renegociá-lo a cada três meses.

Além disso, segundo a socióloga, é preciso retomar um valor de auxílio que permita às pessoas ficarem em casa, para que a pandemia possa de fato ser controlada.

Débora Nunes, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), defende ainda que o fim da insegurança alimentar no campo depende do avanço da reforma agrária no Brasil.

"Há dois projetos de agricultura no nosso país: o do agronegócio que produz commodities para exportação e o da agricultura camponesa e familiar."

"Quanto mais gente no campo, quanto mais terra democratizada, maior a possibilidade de produção de alimentos. Por isso dizemos que a reforma agrária possibilita resolver problemas fundiários do nosso país, com a democratização da terra, mas também tem a possibilidade de enfrentar outros problemas estruturais que a sociedade vivencia, como a fome", afirma.


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