26/04/2024 - Edição 540

Brasil

Um país goleado

Publicado em 03/06/2021 12:00 -

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O País está apreensivo com a perspectiva, cada vez mais real, de um novo recrudescimento da pandemia de covid-19, e multiplicam-se os relatos de aumento das internações e de falta de oxigênio para o atendimento de doentes. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro achou que este era um bom momento para oferecer o Brasil como sede da Copa América de futebol, a ser realizada entre 11 de junho e 10 de julho.

Que o presidente não tem apreço pela saúde dos brasileiros, a esta altura está muito claro. A CPI da Pandemia tem conseguido detalhar ao País como se deu a sistemática sabotagem do governo aos esforços para conter o coronavírus, desde as medidas sanitárias e de distanciamento social até a compra de vacinas.

Mas a decisão de receber a Copa América de seleções, contrariando tão frontalmente o bom senso, vai muito além da indiferença pelos cidadãos. Na verdade, demonstra que Bolsonaro não hesitará um segundo sequer em atender exclusivamente a seus interesses eleitorais, mesmo que isso coloque em risco a vida da população.

Antes de ser uma óbvia temeridade do ponto de vista sanitário, contudo, o sinal verde de Bolsonaro para a realização da Copa América no Brasil é uma afronta moral.

O País caminha a passos largos para atingir meio milhão de mortos, uma tragédia sem paralelo na história, que certamente marcará gerações. Grande parte dos brasileiros está particularmente agastada porque muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas se o governo tivesse agido de forma racional, buscando vacinas onde houvesse, investindo em insumos hospitalares e apoiando de forma decisiva as medidas de isolamento social.

Nesse contexto, o desdém do presidente Bolsonaro pelo infortúnio dos brasileiros é profundamente imoral, e a recepção de uma competição esportiva internacional em total desconsideração pelo momento de grande angústia é nada menos que indecente.

“Lamento as mortes, mas temos que viver”, declarou Bolsonaro como resposta às reações indignadas à sua decisão de aceitar a realização da Copa América no Brasil. É o padrão bolsonarista desde o início da pandemia: o presidente estimula os brasileiros a fingir que a doença não existe, mesmo diante de uma pilha de cadáveres e do estresse do sistema de saúde.

Originalmente, a Copa América seria disputada na Colômbia, que desistiu da promoção em razão da pandemia e também de constantes manifestações de rua. A sede substituta seria a Argentina, mas o avanço da covid-19 no país fez o governo argentino vetar a realização do torneio. Assim, conforme relatado pelo próprio Bolsonaro, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) consultou o presidente sobre a possibilidade de fazer a Copa América no Brasil. “Minha primeira resposta a princípio foi sim”, contou Bolsonaro. Ou seja, em nenhum momento ocorreu ao presidente que “em princípio” seria uma péssima ideia, como concluíram argentinos e colombianos.

O presidente disse que consultou seus ministros e a resposta foi “unânime”, isto é, “todos deram sinal positivo”. Supõe-se que entre esses ministros esteja o da Saúde, Marcelo Queiroga, que sabe, ou deveria saber, quais os riscos associados à realização de um evento desses no Brasil, com tão pouco tempo para os preparativos necessários para garantir a segurança sanitária dos maltratados brasileiros e dos visitantes.

Como sempre, Bolsonaro insinuou que há motivações ocultas para as duras críticas que recebeu. “Será que é porque a transmissão (da Copa América) não é da Globo, é do SBT?”, questionou o presidente. Afinal Fábio Faria, genro do dono do SBT, o apresentador Silvio Santos, ocupa o Ministério das Comunicações. Para Bolsonaro, portanto, o problema é comercial, e não sanitário.

Em janeiro deste ano, quando a pandemia começava a dar sinais de novo avanço, com quase 1,5 mil mortos por dia, Bolsonaro defendeu a volta das torcidas aos estádios. “Temos que voltar a viver, pessoal. Sorrir, fazer piada, brincar”, explicou o presidente. É esse o espírito da impiedosa goleada de indecência que o Brasil está sofrendo desde a lamentável eleição de Bolsonaro.

Pão e circo

Se a fórmula de governar, inventada pelos romanos há milênios, sustentou o maior império que o mundo já conheceu, por que não levá-la em conta no momento em que a pandemia, e os sucessivos desacertos, ameaçam as chances de reeleição de um presidente que virou alvo de manifestações hostis de rua?

Se o pão sobe de preço, ofereça-se circo de graça. É preciso desviar a atenção do distinto público das questões que de fato importam. Bolsonaro pode não saber governar, mas de distração entende. Portanto, apesar da terceira onda da Covid-19 que se agiganta, e dos quase 500 mil mortos, a Copa América será jogada aqui.

Pelos aeroportos entrarão 650 atletas, dirigentes esportivos e membros oficiais das delegações. O número de jornalistas ainda não foi calculado, mas não há limite. Pelas fronteiras, grande parte delas desguarnecidas, os torcedores das seleções. Aumentará o movimento nos cartões postais das cidades que sediarão os jogos.

O vírus lambe os beiços. O presidente Jair Bolsonaro, também. Quem sabe (é o que deseja) o tempo fechado, sujeito a relâmpagos e trovoadas, não lhe concede um refresco? Quem sabe, ao final da Copa, ele não é convidado para levantar a taça do Brasil campeão? Campeão de um torneio caça-níquel! Mas, e daí?

E daí que ainda morram os que tiverem de morrer, ele não é coveiro; e daí que na vida real o Brasil da pandemia seja vice-campeão do mundo em número de mortos; e daí que o país se ressinta da falta de vacinas por que o governo não quis comprá-las a tempo? A taça é nossa. Com o brasileiro, não há quem possa!

Tem mais. Seria de bom tom que o Supremo Tribunal Federal, acionado por partidos, decidisse que não haverá Copa América no Brasil em meio a mais grave crise sanitária dos últimos 100 anos. Caso decida, que amargue o desgaste por isso. Bolsonaro dirá que tentou devolver a alegria ao povo e a Justiça não deixou.

O jogo dele é esse.

OMS não foi consultada

A OMS (Organização Mundial da Saúde) afirmou que em nenhum momento foi consultada sobre a Copa América no Brasil, nem pelo governo de Jair Bolsonaro e nem por parte da Conmebol e CBF.

A agência mundial tem feito parte do planejamento de diversos mega-eventos, como os Jogos Olímpicos e mesmo entrou no debate para a criação de protocolos sobre a Eurocopa, que se disputa neste mês, e outros torneios.

Mas a OMS sempre insistiu que a decisão de sediar um evento ou não cabe aos organizadores e aos governos. "A decisão de organizar, adiar, cancelar ou transferir um evento cabe ao país anfitrião e aos organizadores", disse a OMS.

Numa coletiva de imprensa, o diretor de operações da OMS, Mike Ryan, ainda fez um alerta sobre situação crítica da pandemia na América do Sul. Segundo ele, dos dez países do mundo com maior taxa de mortes por habitantes, quatro são sul-americanos. O temor da OMS é de que uma nova onda atinja a região. "Existem desafios reais", alertou.

Segundo Ryan, a taxa de mortalidade da região também está acima da média mundial, o que seria um sinal de que os sistemas de saúde estão sobrecarregados. "A transmissão é intensa", disse. "A América do Sul vai na direção errada", completou.

A agência mundial de saúde indicou que "a OMS não esteve envolvida em qualquer intercâmbio ou conversa com as autoridades relativamente a este torneio".

Mas deixou claro que, ao longo de meses, tem feito parte de diversos preparativos referentes a torneios esportivos.

A OMS também destacou como, por anos, tem apoiado governos na preparação de mega-eventos. "Antes da pandemia, a OMS/OPAS apoiou várias autoridades nacionais na sua avaliação de risco e nos esforços de preparação relacionados com o acolhimento de eventos de futebol (tais como o Campeonato Mundial da FIFA, e torneios regionais de vários tipos)", completou.

Na OMS, desde o início da pandemia, o debate sobre a realização de eventos passou a fazer parte da agenda da entidade. Ainda em 2020, um grupo dentro da agência foi estabelecido para construir protocolos e a OMS passou a ser consultada com regularidade sobre os Jogos Olímpicos de Tóquio.

Também no caso japonês, a entidade insistia que não cabia a ela cancelar ou autorizar um evento. Mas fazer recomendações sobre como garantir a proteção e minimizar riscos.

Em abril de 2020, a OMS ainda publicou e divulgou a todas as federações uma lista de medidas que deveriam ser consideradas por parte de países e entidades que desejam realizar um evento esportivo.


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