28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

Das ruas às redes: manifestações de 29 de maio colocam a oposição de volta ao front

Publicado em 02/06/2021 12:00 -

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A primeira manifestação de rua contra o governo Bolsonaro desde o começo da pandemia reuniu centenas de milhares de pessoas em mais de 200 cidades espalhadas pelo Brasil no sábado, dia 29 de maio. Foi um movimento cuja “vitória”, se assim se pode dizer, ultrapassa a tomada das ruas, mas também converge para a incidência preponderante dos críticos ao governo nas redes sociais, território que deu sustentação importante à atual gestão. Os resultados e desdobramentos de toda esta correlação de forças ainda não se pode prever, mas há algo diferente no ar.

Para Rudá Ricci, “O resultado político [da manifestação] foi uma injeção de ânimo, adrenalina e autoconfiança dos setores organizados de esquerda e/ou populares”. “Não há como cravar uma previsão. Podem, contudo, fazer contraponto às amplas negociações que Lula faz com o centro e a direita política do país”, complementa.

Henrique Costa traz um elemento interessante para pensarmos, no caso das manifestações de 29 de maio, a ausência do ex-presidente Lula nos protestos. “Lula tem popularidade inegável, mas se afastou das manifestações, provavelmente porque não quer ser associado a nada que cheire radicalismo. Seu esforço é o de se consolidar como opção viável de centro, ainda mais do que em 2002, pairando novamente acima das ideologias”, propõe. Em contrapartida, Costa salienta que o bolsonarismo continua sendo a principal força política do país, cujos defensores vão de motoristas de aplicativo a administradores de grupos de whatsapp.

Rudá Ricci é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara e colunista político da Band News. É autor de Terra de Ninguém (Ed. Unicamp, 1999), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica, 2007), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2010) e coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp, 2004), entre outros.

Henrique Costa é doutorando em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp, mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP. É autor do livro Entre o lulismo e o ceticismo. Um estudo com bolsistas do Prouni de São Paulo (São Paulo: Alameda, 2018), baseado na etnografia política com bolsistas do Prouni, tema de sua dissertação de mestrado. Ele concedeu a entrevista “A esquerda optou pela obsolescência da transformação social e se rendeu à ideia de que as coisas são feitas aqui e agora” à IHU On-Line em 2016, quando a pesquisa estava sendo realizada.

 

Como analisa as manifestações de sábado, dia 29? Elas representam uma virada no cenário nacional?

Rudá Ricci – As manifestações de sábado foram um sucesso, dado o ambiente contaminado pela Covid-19: mais de 200 cidades com mais de 400 mil pessoas nas ruas. Lembremos que em 2013, tivemos 600 cidades envolvidas em três semanas de eventos. A média de cidades em protesto no último dia 29 estaria, em meio à pandemia, na média de 2013, o que não deixa de ser impressionante. Também foi impressionante o grau de organização dos protestos, com a quase totalidade dos manifestantes usando máscaras e mantendo, na maioria do percurso, distanciamento. O resultado político foi uma injeção de ânimo, adrenalina e autoconfiança dos setores organizados de esquerda e/ou populares. Revelou como o bloco oposicionista é muito superior em número que o bloco bolsonarista, algo que as pesquisas recentes já revelavam.

O professor Fábio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES, fez um estudo sobre o impacto nas redes sociais e o bolsonarismo foi derrotado amplamente a respeito da narrativa sobre o que ocorreu no sábado. A Rede Globo teve que se curvar e no Jornal Nacional do dia 31 apresentou as imagens impressionantes das manifestações. A manchete da Folha de São Paulo do dia 30 revelava a multidão ocupando dez quarteirões da avenida Paulista, numa clara diferença em relação à última manifestação da extrema-direita em São Paulo (ocupando entre dois e três quarteirões).

Os protestos, contudo, ainda não se configuraram, na minha avaliação, a uma ameaça política aos parlamentares conservadores do Congresso Nacional. Foi uma demonstração de força que foi vista por eles e pelo Supremo Tribunal Federal – STF. As placas tectônicas da política nacional se moveram. Mas, pode ter causado uma apreensão, mas não um susto. Somente se as manifestações se repetirem e se ampliarem, os parlamentares repensarão suas posturas porque estarão preocupados com sua reeleição no próximo ano.

Henrique Costa – Não, mas acredito que era o momento de se tomar uma decisão e sair da inércia, e a gestão bárbara da pandemia deu o argumento necessário. Como Bolsonaro insiste em caricaturar seus opositores como covardes, partiu-se da avaliação de que era preciso se contrapor a isso, mesmo sob risco de perder a coerência do discurso do isolamento social. Essa inércia, contudo, não é só pela pandemia, porque a esquerda organizada deixou de inspirar e canalizar as energias utópicas da sociedade há algum tempo. Qualitativamente, não foram muito diferentes de outras manifestações importantes da esquerda recente, como o “Ele não”. São grupos muito concentrados do ponto de vista de classe, de escolaridade alta e pouco vulneráveis às intempéries da economia. Os mais vulneráveis, por sua vez, não saíram às ruas nos últimos anos, nem mesmo em 2013 e 2016, então não se deve esperar que o façam agora; a precariedade e a falta de renda atingiram pesadamente a classe trabalhadora, que tende a se retrair. Dia 29 foi um momento importante, de mostrar a cara, mas seus resultados no médio prazo são incertos.

Sabe-se que uma das estratégias do bolsonarismo é essa tensão reiterada, essa percepção constante de “guerra pela eternidade”, no que foram bem-sucedidos nos últimos anos ao forjar a esquerda como inimigo interno. Há um reconhecimento por parte de movimentos sociais de que este é um momento delicado para o governo e, portanto, propício para atos de rua, de modo que implicitamente também se reconhece que os ventos podem mudar de direção, pois a pandemia, em algum momento, vai arrefecer e isso deve acontecer justamente no ano eleitoral. Portanto, a dúvida diante da catástrofe atual só geraria mais apatia.

Qual é a proposta da esquerda no atual contexto do país?

Rudá Ricci – A proposta da esquerda é abalar as bases do governo Bolsonaro de uma vez por todas, aumentando as defecções entre empresários, Centrão e militares, o que já vem ocorrendo nas últimas semanas. A partir daí, será possível emplacar políticas nacionais mais concretas em defesa da vida (política sanitária consequente), políticas sociais (emprego e ajuda emergencial mais ampla) e coibição de atos selvagens e violentos antidemocráticos. O que significa que é preciso, daqui por diante, ampliar eventos públicos com cada segmento social que se sente marginalizado ou em risco, mas que ainda não tem muita clareza de como reagir, caso de populações periféricas, igrejas não alinhadas com a Bancada da Bíblia (incluindo muitas igrejas evangélicas independentes), populações indígenas, mulheres, população LGBT, entre outros. É preciso, ainda, criar formas mais performáticas de manifestação, tendo como exemplo experiências internacionais como o Stop the City que ocorreu em Londres décadas atrás.

Henrique Costa – Entendo que não é possível identificar uma mesma proposta para a esquerda no contexto atual, e nem mesmo será com uma possível vitória de Lula em 2022. Não apenas porque existem diferentes atores em busca de autoconstrução, fragmentando inclusive os próprios partidos internamente, mas porque há uma tendência global de pulverização dos antigos partidos de massa em direção a propostas cada vez mais específicas informadas sobretudo por pautas culturais, ecológicas etc. Por sua vez, o que reunia (ou negligenciava) essas bandeiras – a defesa de um Estado de bem-estar social contra a primazia da iniciativa privada, ideias-força que estruturaram a política do século XX – ficaram para trás, como sugeriu o cientista político Yascha Mounk. Especificamente no caso brasileiro, ganha ainda mais força o centrão como “poder moderador” e o Supremo Tribunal Federal, esvaziando o espaço da política. Em caso de vitória, Lula buscará reconstituir uma “governamentalidade de esquerda”, porém em condições muito adversas, tanto pela economia devastada como pela verdadeira força de oposição inspirada por Bolsonaro, que é social e muito diferente da antiga oposição tucana.

Que possíveis impactos a manifestação do final de semana pode ter na rearticulação da cena política?

Rudá Ricci – Não há como cravar uma previsão. Podem, contudo, fazer contraponto às amplas negociações que Lula faz com o centro e a direita política do país. Podem recolocar uma agenda mais popular e democrática e afastar o risco de montagem de um governo amorfo e cheio de disputas internas como ocorreu no governo Sarney. Lula se posta como candidato de centro e está obtendo um nítido sucesso do ponto de vista eleitoral. O problema é como agendas mais populares, de combate à desigualdade social e política – é sempre importante afirmar o alargamento do controle popular sobre a gestão pública, única garantia de sustentabilidade dos avanços sociais – e de limitação determinada do avanço das agendas ultraliberais e de extrema-direita podem se impor em 2022 e 2023. Há pontos centrais na tarefa de reconstrução da democracia e Estado Social brasileiros que não podem ser objeto de negociação com quem fez de tudo para chegarmos à atual situação de caos que maculou profundamente a imagem do Brasil no exterior. Hoje, somos vistos como uma abominação pelo mundo todo. Temos que recuperar nossa imagem de país que um dia tinha um futuro e que acolhe uma nação séria e alegre. Não voltaremos a ser respeitados e felizes se vendermos nossa alma como Fausto vendeu a Mefistófeles.

Henrique Costa – Lula tem popularidade inegável, mas se afastou das manifestações, provavelmente porque não quer ser associado a nada que cheire radicalismo. Seu esforço é o de se consolidar como opção viável de centro, ainda mais do que em 2002, pairando novamente acima das ideologias. Assim como a rejeição a Lula recuou a partir de fatos extraordinários com densa cobertura da mídia, os 30% que hoje consideram a gestão atual regular podem facilmente voltar a considerá-la positivamente com o avanço da vacinação e a retomada da economia. O bolsonarismo, apesar de ser minoritário na sociedade, é a principal força política do país sem nem mesmo contar com uma estrutura partidária. Isso é fruto de anos de trabalho de base e formação de “intelectuais orgânicos” fora dos espaços tradicionais da chamada esfera pública.

Não são apenas líderes evangélicos ou empresários exóticos ou policiais, mas comerciantes locais, administradores de grupos de whatsapp e facebook, influenciadores entre motoristas de Uber e entregadores, além dos caminhoneiros, que já mostraram a cara algumas vezes em defesa do governo. Gente reconhecida na vizinhança e distante do mundo espetacularizado de Brasília e das celebridades, isto é, gente “em quem se pode confiar”. Muitos são, isto sim, católicos praticantes, que rejeitam as políticas “identitárias” e de diversidade sexual, que se reconhecem na defesa da família e dos valores tradicionais, contra os quais a esquerda se tornou ameaça, em sua visão. Esse conservadorismo, que vai além de Bolsonaro, pode ser novamente acessado nos próximos meses.


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