25/04/2024 - Edição 540

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Como Salles ‘passou a boiada’ para liberar madeira na Amazônia

Publicado em 28/05/2021 12:00 -

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Em relatório de 92 páginas relacionado ao recente escândalo de contrabando da madeira da Amazônia, a Polícia Federal reservou um capítulo para descrever os “fortes indícios de envolvimento” do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na investigação da Operação Akuanduba. Ela apura um esquema montado dentro do Ibama de facilitação de exportação de madeira ilegal extraída da floresta. Segundo os agentes da PF, Salles aplicou o “método” que ele propalou na fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020 de aproveitar o momento da pandemia para “passar a boiada” usando “parecer, caneta, parecer, caneta”.

Na descrição dos agentes, tudo começou quando autoridades ambientais norte-americanas apreenderam carregamentos de madeiras nobres vindas da Amazônia por falta de documentação adequada, em portos dos Estados Unidos. A partir daí, os representantes das madeireiras começaram a tentar liberar as cargas junto a autoridades do Ibama, no Brasil.

Primeiro, buscaram o superintendente da autarquia no Pará, Walter Magalhães, e o diretor Rafael Macedo, que emitiram algumas certidões e ofício. A papelada, no entanto, não foi aceita pelos fiscais norte-americanos por “falta de previsão legal”. Depois, tentaram obter uma documentação “mais ousada” que foi pedida pela diretoria do Ibama em 6 de fevereiro de 2020 – “coincidentemente momentos depois” de Salles ter se encontrado com representantes das madeireiras, anotou a PF.

“O que se verificou, na sequência, foi o atendimento integral e quase que imediato da demanda formulada pelas duas entidades, contrariamente, inclusive ao parecer técnico elaborado por servidores do órgão, legalizando, inclusive com efeito retroativo, milhares de cargas expedidas ilegalmente entre os anos de 2019 e 2020”, diz o relatório assinado pelo delegado Franco Perazzoni.

A PF ainda prossegue dizendo que em 19 dias a norma que travava a liberação da madeira foi revogada por um despacho interpretativo do presidente do Ibama, Eduardo Bim, que é um dos principais alvos da Operação. A regra – que foi restituída pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, relator da Operação – exigia um documento de autorização de exportação do Ibama que é emitido nos portos brasileiros antes de a carga embarcar para o exterior.

Os investigadores ainda destacam que os servidores do Ibama que atuaram a em prol das madeireiras foram “beneficiados” pelo ministro com promoções no cargo à medida em que os servidores que contrariaram esses pareceres foram exonerados. No fim do relatório, a PF pede mais informações sobre movimentações financeiras consideradas atípicas feitas nos últimos dois anos pelas contas do escritório de advocacia em São Paulo no qual Salles aparece como sócio.

Em suas manifestações, Salles tem dito que as informações sobre a movimentação financeira são “mentirosas”, que a operação contra ele foi “exagerada e desnecessária” e que o inquérito “induziu” a Justiça ao erro ao passar a “impressão de que houve, ou teria havido, possivelmente uma ação coordenada de agentes do Ibama e do Ministério para favorecer ou para fazer o destravamento indevido do que quer que seja”.

Como a PF chegou à “boiada” criminosa de Ricardo Salles

Nunca antes na história um ministro do Meio Ambiente brasileiro foi investigado por supostas violações ambientais. O ineditismo foi quebrado no último dia 19, quando Ricardo Salles apareceu entre os investigados da Polícia Federal sob acusação de envolvimento num “grave esquema de facilitação ao contrabando de produtos florestais”. As 35 ordens de busca e apreensão que vasculharam propriedades de Salles e servidores apontados por ele para a pasta aconteceram em São Paulo, no Distrito Federal e no Pará e vem num péssimo momento para o fiel integrante do gabinete Jair Bolsonaro. Enquanto o Governo brasileiro tenta se livrar da imagem de “vilão ambiental” e se aproximar do Governo Joe Biden, foram justamente autoridades norte-americanas que ajudaram a deflagrar a operação da PF, ao denunciar irregularidades em carregamentos de madeira exportados para os Estados Unidos.

O objetivo da Operação Akuanduba, segundo a PF, é apurar crimes de corrupção, advocacia administrativa, prevaricação e facilitação de contrabando por meio da exportação ilegal de madeira que teriam sido cometidos por agentes públicos e empresários do ramo madeireiro. Além de Salles, estão entre os investigados 10 funcionários do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Ministério do Meio Ambiente, que foram nomeados pelo ministro e afastados de seus cargos —entre eles o presidente do Ibama, Eduardo Bim.

A investigação de Salles, que tem foro privilegiado por ser ministro, foi autorizada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, um desafeto do bolsonarismo. Além das buscas, apreensões e afastamentos, Moraes determinou “a suspensão imediata”de uma despacho, editado no ano passado, que permitia a exportação de produtos florestais sem a necessidade da emissão de autorizações, e a quebra de sigilo bancário e fiscal de Salles e outros investigados. A justificativa da decisão leva em conta “os depoimentos, os documentos e os dados que sinalizam para a existência” do esquema de contrabando.

“A situação que se apresenta é de grave esquema criminoso de caráter transnacional. Esta empreitada criminosa não apenas realiza o patrocínio do interesse privado de madeireiros e exportadores em prejuízo do interesse público (…) mas, também, tem criado sérios obstáculos à ação fiscalizatória do poder público no trato das questões ambientais com inegáveis prejuízos a toda a sociedade”, afirma a PF, em trecho reproduzido na decisão de Moraes. O mesmo documento cita a frase dita por Ricardo Salles em reunião ministerial, que se tornou pública no fim de maio do ano passado, onde ele afirmou que a pandemia do coronavírus era uma “oportunidade” para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas [ambientais] (…) de baciada. Tem um monte de coisa que é só parecer, caneta, parecer, caneta”.

“O referido modus operandi (’parecer, caneta’) teria sido aplicado na questão das exportações ilícitas de produtos florestais”, descreve a decisão. Segundo explica o documento, o papel de Salles no esquema criminoso foi evidenciado após a apreensão nos Estados Unidos de madeira ilegal exportada do Pará pelas empresas Ebata Produtos Florestais Ltda. e Tradelink Madeiras Ltda. Por conta da apreensão, a Associação Brasileira das Empresas Concessionárias Florestais (Confloresta) e a Associação das Indústrias Exportadoras de Madeira no Pará (Aimex) procuraram Walter Mendes Magalhães, superintendente do Ibama no Pará, e Rafael Freire de Macedo, diretor de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas do Instituto —ambos nomeados e promovidos por Ricardo Salles— para “resolver a situação”. Ambos teriam emitido certidões e ofício “claramente sem valor” para liberar a exportação. “O que se viu na prática foi a elaboração de um parecer por servidores de confiança [do ministro Salles], em total descompasso com a legalidade”, afirma o texto de Moraes.

As autoridades norte-americanas não aceitaram os pareceres e fizeram a denúncia à Justiça brasileira, o que motivou o início das investigações em janeiro de 2021 e culminou nos mandados desta quarta (19). Os indícios da participação do ministro no contrabando foram reforçados pelo depoimento de outro servidor do Ibama, Hugo Leonardo Mota Ferreira, à Polícia Federal. O depoente, que atua no Instituto desde 2015, destacou a participação Leopoldo Penteado Butkiewicz, assessor especial de Salles, dizendo que “nunca tinha visto um assessor direto do Ministro do Meio Ambiente atuar de forma direta no Ibama (…) tendo por diversas vezes dado ordens diretamente [a Ferreira] e intercedido em favor de autuados”.

Assim que soube da operação, Ricardo Salles compareceu na sede da Polícia Federal em Brasília com um assessor armado (que seria militar da reserva e atuaria como segurança do ministro) e cobrando explicações sobre o inquérito ao superintendente. Poucas horas depois, o ministro participou da abertura de um evento sobre desenvolvimento sustentável da indústria em Brasília e classificou operação como “exagerada” e “desnecessária”. “O Ministério do Meio Ambiente, desde o início desta gestão, atua sempre com bom senso, respeito às leis, respeito ao devido processo legal”, prometeu. Também disse que o inquérito induziu Alexandre de Moraes “a dar impressão de que teria havido possivelmente uma ação concatenada de agentes do Ibama e do Ministério do Meio Ambiente para favorecer ou para fazer destravamento indevido do que quer que seja. Essas ações jamais, repito, jamais aconteceram”.

No mesmo evento, Salles disse que explicou ao presidente Jair Bolsonaro que “não há substância em nenhuma das acusações” e que “o assunto pode ser esclarecido com muita rapidez”. Com as atenções voltadas ao depoimento de Pazuello na CPI da Pandemia, nenhum membro do Governo federal se manifestou em suas redes sociais sobre a investigação da Polícia Federal, nem sequer Salles. Somente o filho do presidente e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, publicou em seu Twitter que Ricardo Salles “é o melhor ministro do Meio Ambiente da história deste país”.

Por outro lado, quem celebrou a Operação Akuanduba foi Alexandre Saraiva, ex-superintendente da PF no Amazonas. Saraiva apresentou uma notícia-crime ao STF no dia 14 de abril em que dizia que o ministro Salles e o senador de Roraima, Telmário Mota (PROS), agem “no intento de causar obstáculos à investigação de crimes ambientais e de buscar patrocínio de interesses privados e ilegítimos perante a Administração Pública”. No dia 15 de abril, Saraiva foi exonerado do cargo pelo diretor-geral da PF, Paulo Maiurino. Após os mandados desta quarta (19), o delegado publicou em seu Twitter: “Salmo 96:12: ‘Regozijem-se os campos e tudo o que neles há! Cantem de alegria todas as árvores da floresta’”, para em seguida exibir o desenho de uma moto com a inscrição “Eu te disse, eu te disse!!”.

Os atritos entre Salles e Saraiva começaram após o então superintendente coordenar a maior apreensão da história de madeira extraída de maneira ilegal na região amazônica, em dezembro do ano passado. A carga é avaliada em 130 milhões de reais, representa mais de 200.000 metros cúbicos de madeira e foi apreendida no Pará. O inquérito da PF sobre o caso apontou que a madeira foi retirada ilegalmente de terras públicas griladas e as madeireiras responsáveis pelas toras não apresentaram documentação válida. Tudo foi confiscado na ação batizada de Operação Handroanthus. Depois da apreensão, o ministro Salles visitou o local duas vezes para prestar apoio aos apontados como criminosos, sugeriu que estava tudo certo com a documentação apresentada pelos madeireiros e pediu a liberação da madeira. Daí se seguiu a denúncia do ex-superintendente e sua exoneração no dia seguinte.

A bancada do PSOL na Câmara dos Deputados entrou com uma representação no Ministério Público Federal (MPF) contra o diretor-geral da PF por causa da troca do chefe no Amazonas, mas a atitude não gerou resultados. A notícia-crime apresentada por Saraiva ao STF foi repassada à Procuradoria Geral da República pela ministra Carmen Lúcia, mas também não caminhou até agora. Até o fechamento desta reportagem, a Superintendência Regional da Polícia Federal no DF não havia respondido às tentativas de contato para dar mais detalhes sobre a mais recente operação. O nome escolhido para a ação, Akuanduba, faz referência a uma divindade protetora do meio ambiente da mitologia dos índios Araras, que habitam o estado do Pará. “Segundo a lenda, se alguém cometesse algum excesso, contrariando as normas, a divindade fazia soar uma pequena flauta, restabelecendo a ordem”.

A investigação é mais um problema de imagem para o Brasil. “Infelizmente quem quiser saber sobre a questão ambiental precisa abrir as páginas policiais”, criticou Marcio Astrini, secretário-executivo da ONG Observatório do Clima. O levantamento mais recente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) apontou que a Amazônia perdeu em abril 581 quilômetros quadrados de sua cobertura vegetal (43% acima dos valores desmatados em 2020), o maior índice de desmatamento no mês de abril desde 2016, quando foram destruídos 440 quilômetros quadrados. No mesmo mês em que aconteceu a Cúpula do Clima liderada pelos EUA, Bolsonaro também enviou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, prometendo acabar com o desmatamento ilegal no bioma até 2030.

Salles editou mais de 120 atos de risco à política ambiental, indica estudo

Desde o início do mandato do presidente Jair Bolsonaro, em 2019, ao menos 124 medidas adotadas pelo Ministério do Meio Ambiente podem ter gerado algum tipo de risco às políticas de proteção ambiental no Brasil. O levantamento é de pesquisadores ambientais e  foi organizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). Ele traz uma radiografia das medidas apresentadas até o momento pela gestão de Ricardo Salles.

Acesse o relatório completo

A pesquisa analisou 524 medidas administrativas da pasta desde janeiro de 2019. Nela há citações a pelo menos 76 de risco médio, 38 de risco alto e 10 de risco muito alto de perda da capacidade proteção ambiental. Seriam medidas eminentemente técnicas, como instruções normativas e portarias, voltadas a enfraquecer medidas de fiscalização de órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Há também medidas voltadas, de acordo com o estudo, a enfraquecer a estrutura do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), responsável por gerir as unidades de conservação nacionais. O levantamento indicou que ao menos 40 medidas de médio, alto e muito alto risco vieram direto do instituto.

O estudo, chamado "Dando Nome Aos Bois", rememora a a controversa frase dita pelo ministro na reunião ministerial de 22 de abril do ano passado. Na ocasião, o ministro afirmou que, por conta da atenção da sociedade na pandemia de covid-19, era o momento de "ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas."

Alessandra Cardoso, que redigiu o relatório e integra a assessoria política do Inesc, reitera que o estudo aponta uma tendência do atual governo. "De fato, nestes dois primeiros anos do governo bolsonaro, confirmando a própria estratégia do Salles, houve uma ação de editar atos normativos internos para produzir uma flexibilização da legislação e dos órgãos", explicou.  Ainda de acordo com ela, "o ministério do Meio Ambiente foi tomado de assalto pelo Salles, agora a gente sabe disso, pelo Salles – que está seguindo uma estratégia do governo de desmontar a política ambiental e a capacidade institucional do órgão."

Alessandra argumenta que, por mais que a área ambiental seja fruto de constantes cortes de orçamento – que trespassam governos – o que ocorre hoje é "sem precedentes". A proposta do estudo é corroborar com outros levantamentos do tipo feitos desde o início dos mandatos de Salles e Bolsonaro, além de indicar medidas que devem ser revistas em futuros governos.

Missão essa que será mais difícil do que parece, conforme a avaliação da assessora."Embora seja até mais fácil de reverter em um outro governo, é mais fácil que reverter um processo legislativo, que tem todo um processo de aprovação no Congresso Nacional, o fato é que é muito difícil reverter todas as medidas infralegais, porque são muitas e é medida a medida", aponta.

Caso de Salles abre fenda no sistema de blindagem idealizado por Bolsonaro

Bolsonaro construiu um sistema de blindagem em três camadas. Para anestesiar investigações, colocou Anderson Torres, um amigo da família, no Ministério da Justiça, de cujo organograma pende a Polícia Federal. Para inibir a procura, entregou a poltrona de procurador-geral a Augusto Aras. Para manter uma centena de pedidos de impeachment na gaveta, apostou cargos e verbas na eleição do réu Arthur Lira à presidência da Câmara. De repente, o enrosco criminal que enreda o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) num caso de corrupção e lavagem de dinheiro transformou uma suposta blindagem invulnerável numa casamata de vidro.

Alheio aos acertos de Bolsonaro com o seu ministro da Justiça, o delegado federal Franco Perazzoni dirigiu-se diretamente ao Supremo para informar sobre os malfeitos na pasta do Meio Ambiente. Ignorando Aras, que mandara arquivar investigação contra Salles, o ministro Alexandre de Moraes concedeu ao delegado o aval para realizar batidas de busca e apreensão em endereços do investigado e seu grupo. O magistrado ordenou ao delegado que mantivesse o procurador-geral de estimação de Bolsonaro no escuro até a conclusão das buscas. Temia o vazamento de informações.

Podendo afastar o ministro sob suspeição, mesmo que temporariamente, Bolsonaro preferiu transformar o derretimento de Salles num processo de corrosão da sua Presidência. No momento, o melhor ponto de observação para acompanhar os movimentos do presidente é o telhado de vidro. É dali que o brasileiro tem uma visão panorâmica de um fenômeno curioso: o descaso ético do presidente vai criando no governo um drama estético.

Antes mesmo da conversão de Salles em bomba radioativa, já estava entendido que o compromisso de restauração da moralidade assumido por Bolsonaro com seus eleitores em 2018 não passava de estelionato eleitoral. O problema é que o drama do governo migrou da área ética para o campo da estética. Afora o ministro o ministro Salles e sua turma, há um ministro palaciano, Onyx Lorenzoni, que teve de fazer acordo com o Ministério Público para administrar uma confissão de caixa dois; há os líderes do governo na Câmara e no Senado, senador Fernando Bezerra e deputado Ricardo Barros, às voltas com inquéritos por corrupção; há o réu Arthur Lira, convertido em zagueiro da grande área da Câmara.

Tudo isso e mais uma organização familiar com fins lucrativos. Bolsonaro perde o nexo quando chama adversários de ladrões e vagabundos sem levantar o tapete que esconde coisas assim: as debilidades do zero à esquerda número um, Flávio Bolsonaro, os depósitos mal explicados do operador de rachadinhas Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro e, agora, a contemporização com as suspeitas de crime atribuídas a Ricardo Salles. Além de antiético, o governo vai se tornando esteticamente horroroso.


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