29/03/2024 - Edição 540

Poder

Os vândalos da democracia

Publicado em 28/05/2021 12:00 -

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Generais de boa cabeça, da ativa e da reserva, qualificaram de deboche a peça de defesa do seu colega Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, remetida ao Comando do Exército, onde ele explica por que compareceu à manifestação política e partidária encabeçada no Rio pelo presidente Jair Bolsonaro.

Pazuello teve o desplante de dizer na peça que a manifestação não teve caráter político e partidário pelo simples fato de Bolsonaro não estar filiado a nenhum partido. Piada pronta, sem graça e nem imaginação! O cargo eletivo é político. Presidente da República, filiado ou não a alguma sigla, faz política o tempo todo.

Bolsonaro não foi ao Rio liderar um passeio de milhares de motociclistas só pelo gosto de rever as belezas da cidade, ou para relaxar. Foi para reforçar o apoio político que eles lhe dão, para, em meio à CPI da Covid-19 que tanto o atormenta, dar uma demonstração de força e recuperar a popularidade que se esvai.

Do alto de um carro de som no Aterro do Flamengo, fez naturalmente um discurso político. E estimulou Pazuello a fazer o seu. Não seria desapreço do general pelo ex-capitão se ele tivesse se negado a comparecer ao ato – ou, comparecendo, não tivesse subido no carro de som e falado, observando tudo à distância.

Mas esse foi outro argumento usado por Pazuello em sua defesa. O mais estúpido deles, porém, foi alegar que não poderia desobedecer a uma ordem do Comandante Supremo das Forças Armadas, como Bolsonaro quer ser chamado. Desrespeitar o Regulamento Disciplinar do Exército pareceu mais conveniente.

Está-se à espera de uma decisão do comandante do Exército, general Paulo Sérgio Nogueira, sobre a punição a ser aplicada a Pazuello. A mais leve é uma advertência; é também a mais provável.

Capitão desafia generais do "meu Exército"

Ao levar o general Pazuello para o palanque dos motoqueiros, o capitão Bolsonaro sabia o que estava fazendo: um desafio aberto ao Alto Comando do Exército por quebra de disciplina, apenas dois meses depois da mais grave crise militar deste século, quando o presidente demitiu o ministro da Defesa, e os três comandantes militares entregaram seus cargos.

No dia seguinte da micareta motorizada no Rio, quando estava em Quito, no Equador, Bolsonaro dobrou a aposta e proibiu que o "meu exército" divulgasse uma nota sobre o procedimento disciplinar instaurado para apurar a participação de Pazuello, um general de três estrelas, ainda na ativa, no ato político.

Até esse momento, os quartéis permanecem em obsequioso silêncio, como se nada tivesse acontecido.

Pazuello resiste aos apelos dos generais do Alto Comando para passar logo à reserva, o que ele não faria sem consultar o chefe supremo, já que "um manda e o outro obedece, simples assim".

Aonde Bolsonaro pretende chegar com essa provocação? Só para provar aos generais que quem manda é ele?

Nos tempos de tenente, ele também desafiou seus superiores para pedir aumento salarial. Foi preso e processado por planejar atentados terroristas. Acabou absolvido pelo Superior Tribunal Militar e promovido a capitão quando passou para a reserva.

Como a insubordinação de Pazuello foi pública, diante de milhares de testemunhas, filmada e divulgada pela rede bolsonarista, desta vez não dá para o Alto Comando alegar falta de provas, nem é provável que seja reformado e promovido a general quatro estrelas.

O que Bolsonaro quer é criar mais confusão, uma nova crise militar, para desviar as atenções da CPI do Senado e das denúncias de corrupção que rondam seu governo na Amazônia de Ricardo Salles, na Brasília do tratoraço das emendas secretas e na reforma da sede do Ministério da Saúde no Rio.

Afrontar as Forças Armadas, que já estão com sua imagem abalada pelos desmandos de Bolsonaro & Pazuello na pandemia, não parece ser a melhor ideia a essa altura do campeonato.

O regimento do Exército prevê penas que vão de advertência verbal até prisão por no máximo 30 dias, mas o medo maior de Pazuello é sua situação na CPI do Senado, que o reconvocou hoje a prestar novo depoimento.

Mesmo munido de habeas corpus para poder mentir à vontade, o general sabe que o relatório final da CPI poderá levá-lo a prestar contas à Justiça como corresponsável por boa parte das mais de 450 mil mortes de brasileiros na pandemia.

Bolsonaro colocou o comandante Paulo Sergio numa enrascada, qualquer que seja a decisão dele. Se der uma pena muito branda, ficará desmoralizado com a tropa; se pegar mais pesado, enfrentará a ira do presidente, que não gosta de ser contrariado e é o mentor de Pazuello.

A temperatura do clima nas Forças Armadas pode ser medida pelas declarações dadas ao repórter Marcelo Godoy, do Estadão, pelo tenente-brigadeiro Sergio Xavier Ferolla, que foi ministro por oito anos e presidiu o Superior Tribunal Militar:

"O caso do general é vergonhoso, um caso de indisciplina. Se você aceitar isso, acabou a disciplina nas Forças Armadas porque o tenente, o sargento e o cabo têm sido punidos dentro da lei _ e são muitos. Não pode ser diferente com o general."

No fim, pode não acontecer nada, ou acontecer de tudo. Com Bolsonaro no poder, tudo é imprevisível. Só não vamos morrer de tédio.

Reincidentes

O Exército não permite que militares da ativa participem de atos políticos como esse e estuda uma punição a Pazuello. Afinal, se o general pode, o que impede o soldado de não poder também?

Mas se um general tuíta conteúdo que faz pressão indevida a um dos poderes da República, o que impede o tal soldado de fazer o mesmo?

A situação só chegou a este ponto, com Pazuello participando de uma micareta política ao lado de Jair, porque a porteira já estava aberta, tendo passado outros antes dele. Um dos casos mais notórios foi do seu xará, o Villas Bôas

Às vésperas do julgamento do habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, em 3 de abril de 2018, ele afirmou em sua conta no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".

Depois completou o raciocínio em uma segunda mensagem: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" Sua declaração, além de representar inadmissível pressão indevida, foi vista como uma chantagem à corte.

O HC acabou negado e Lula passou 580 dias na cadeia. Neste ano, o Supremo não apenas anulou as condenações por considerar que a 13ª Vara Federal de Curitiba não era competente para julgar o caso do ex-presidente no âmbito da Lava Jato, como considerou que o ex-juiz Sergio Moro não foi imparcial ao condená-lo.

Apesar das reclamações, inclusive do então decano do STF, ministro Celso de Mello, ficou por isso mesmo. Tanto que quando o ministro Edson Fachin chamou, em fevereiro deste ano, de "intolerável e inaceitável" aquele tuíte de 2018, Villas Bôas ironizou postando: "Três anos depois".

Não se questiona a importância das Forças Armadas e o papel que elas cumprem em uma democracia. Mas os governos civis pós-1988 distanciaram os militares do processo decisório do país não apenas por traumas do passado, mas também por uma visão de democracia que emana do povo, não dos quartéis.

Uma das diferenças entre um governo militar e um civil é que no civil, os militares que desejam atuar politicamente devem fazê-lo pela via eleitoral. Eles podem participar de governos, mas se quiserem assumir a posição de atores políticos, como fizeram Villas Bôas e Pazuello, que aposentem a farda e busquem a legitimidade do voto.

O problema é que, uma vez aberta a porteira, é difícil de fechá-la. Mas isso deve ser feito, uma vez que a democracia não resiste a um estouro de boiada.

Vândalos da democracia

O gesto de Pazuello contraria frontalmente os regulamentos do Exército, que proíbem a participação de militares da ativa em eventos de caráter político, como obviamente era o caso da manifestação bolsonarista.

Que ninguém imagine que a imprudência do intendente Pazuello tenha sido um ato isolado ou apenas tresloucado. A gravidade do caso está precisamente no contexto: o militar infringiu normas das Forças Armadas numa manifestação em que o presidente Bolsonaro mais uma vez se referiu a essas Forças como “meu Exército”.

Ou seja, o intendente Pazuello, no instante em que subiu no palanque bolsonarista, deixou de servir o Exército para servir Bolsonaro – que jocosamente se referiu ao general como “nosso gordinho”, sendo que o intendente suportou prazenteiramente a humilhação. Assim, Bolsonaro explorou a oportunidade para reafirmar sua pretensão de submeter as Forças Armadas a seu projeto de poder sem limites.

Mau militar quando esteve na ativa, Bolsonaro manteve sua atitude de desrespeito pelas Forças Armadas mesmo na condição de presidente da República. Esse deboche chegou ao ápice em março passado, quando o presidente afastou os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica depois que estes rejeitaram a demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa. O ministro Azevedo havia resistido às pressões de Bolsonaro para obrigar as Forças Armadas a lhe dar respaldo político e a corroborar suas investidas contra as medidas de isolamento social determinadas por governadores e prefeitos no combate à pandemia de covid-19.

Tendo como modelo a Venezuela chavista, Bolsonaro está empenhado em envolver os militares em suas aventuras golpistas. Enquanto neutraliza o Congresso por meio do contubérnio com o Centrão e procura inocular o vírus do bolsonarismo no Judiciário e nos órgãos de controle, o presidente busca atrair para sua causa deletéria oficiais de baixa patente e policiais militares, numa clara tentativa de minar o poder dos comandantes e criar clima de ruptura de hierarquia, de ordem e de disciplina, pilares das Forças Armadas e das corporações policiais. Na última vez que um presidente da República desafiou esses pilares, em 1964, o resultado foi a instauração de um regime politicamente desastroso, a começar para aquele que incitou a insubordinação militar.

A presença do irrelevante general intendente Pazuello naquele palanque, portanto, tinha o propósito exclusivo de simbolizar a submissão de um militar de alta patente a esse empreendimento autoritário. Pazuello deixou de ser um general do Exército brasileiro para ser um recruta do exército de Bolsonaro.

Não se pode descartar que a presepada de Pazuello no Rio de Janeiro faça parte do lançamento informal de uma eventual candidatura política do general. Afinal, o bolsonarismo fez do escárnio às instituições democráticas seu principal ativo eleitoral – e o que Pazuello fez, ao desafiar as normas do Exército e ao surgir sem máscara numa aglomeração em meio a uma pandemia que já matou mais de 450 mil brasileiros, foi apresentar-se como um autêntico bolsonarista, o que pode lhe render alguns votos da gente ressentida com a democracia.

Os laços do bolsonarismo se forjam no desrespeito pela lei, justamente porque é a lei que iguala a todos. O exemplo é dado pelo próprio Bolsonaro, que cotidianamente desafia normas legais (sanitárias, militares, eleitorais e de trânsito, entre outras) não por desconhecimento ou ignorância, mas por convicção antidemocrática.

Pazuello é um peão nesse perigoso jogo de Bolsonaro, assim como são peões os camisas pardas com cara de mau que se aglomeram para adular seu “mito”, intimidar jornalistas e evocar um golpe militar que enfim dê a ele o poder absoluto que tanto procura.

Pazuello deve ser punido não somente porque desmoralizou sua farda, mas para que afinal o País demonstre que o bolsonarismo não pode tudo.

Bolsonaro pede a todos que se finjam de bobos pelo bem do general Pazuello

Tudo parecia bem encaminhado na manhã de segunda-feira. Em conversa com os repórteres, o vice Hamilton Mourão disse que o general Eduardo Pazuello telefonara para o comandante do Exército. Reconhecera que "errou" ao participar de comício ao lado de Bolsonaro, no Rio. Colocara a cabeça "no cutelo", à espera de uma punição. De repente, Bolsonaro interveio: Comício? Que comício?

Reescrever o roteiro do último final de semana é uma barbada para um capitão que diz que 64 não foi um golpe, que o torturador Ustra é um herói e que os 20 anos de ditadura foram um mal-entendido. Mourão insiste na tese da punição de Pazuello. É "para evitar que a anarquia se instaure dentro das Forças Armadas", ele explica, como se o fato tivesse alguma relevância.

Bolsonaro dá de ombros. Fato? Que fato? Não houve comício no Rio. O que aconteceu foi "um encontro que não teve nenhum viés político, até porque eu não estou filiado a partido político nenhum ainda", explicou o capitão. "Foi um movimento pela liberdade, pela democracia e de apoio ao presidente." Mais um pouco e Bolsonaro chega à amnésia absoluta. Pazuello? Aquele magrinho?

Todo brasileiro deveria desfrutar da experiência de viver como Bolsonaro, sem dar importância demais aos fatos. Não faz sentido, por exemplo, viver atormentado com a memória dos 7 a 1 da Copa de 2014. A autoestima nacional merece uma reação. Apagando os fatos, o Brasil poderia humilhar os alemães e despachá-los de volta para casa. Não dá para vencer a Copa. Mas livra o país da goleada mais constrangedora da história.

Bolsonaro pede pouco aos brasileiros. Deseja apenas que o país faça como ele, fingindo-se de bobo pelo bem da pátria e do general "gordinho". Pazuello já está convencido. Apagou da memória o erro que Mourão disse que ele tinha admitido. O Exército flerta com a anarquia. Mas Pazuello, livre da culpa, já está se sentindo mais leve. O general recita o CPF e o RG diariamente diante do espelho para ter a certeza de que continua sendo ele mesmo.


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