25/04/2024 - Edição 540

Poder

Bolsonarismo na CPI ensina que negacionista é quem critica remédio ineficaz

Publicado em 28/05/2021 12:00 -

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O depoimento da pediatra Mayra Pinheiro, a "Capitã Cloroquina", foi mais um capítulo do grande laboratório de realidade paralela que Jair Bolsonaro transformou o Brasil. Um lugar onde aquilo que faz mal é louvado e o que salva é crucificado.

Senadores governistas tentaram vender a tese de que negacionismo é negar a eficácia da cloroquina e da ivermectina no tratamento da covid-19, apesar deles serem comprovadamente inúteis para esse fim. Ambos vem sendo promovidos por Jair Bolsonaro, médico com especialização em infectologia pela Universidade do WhatsApp.

O "doutor" não se importa se brasileiros vivam ou morram com sua receita, apenas se eles voltarão às ruas enganados pela promessa do tratamento precoce, barato e rápido. Para ele, vidas são um detalhe desprezível na longa estrada de sua reeleição.

O discurso encontrou terreno fértil no depoimento da Secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, que se agarra de forma religiosa à pequenina parcela de estudos com baixa credibilidade que ainda defende o uso desses medicamentos contra o coronavírus.

Há praticamente um consenso científico de que os produtos são ótimos para malária, lúpus ou vermes, mas não funcionam para pacientes com covid-19.

A questão, contudo, não é a opinião dela como médica sobre a cloroquina, mas o Ministério da Saúde ter adotado a disseminação de um medicamento sem eficácia como política pública. E enquanto Manaus sufocava por falta de oxigênio hospitalar, o governo oferecia cloroquina para a cidade com a ajuda dela. Se o povo quer ar, que tome kit covid.

Essa inversão do que é certo e errado defendida pelos senadores governistas na CPI está alinhada com aquela para a qual o presidente da República vem batendo bumbo nas últimas semanas.

Nas aglomerações causadas pelos comícios eleitorais que organizou no Mato Grosso do Sul, no Maranhão e no Rio de Janeiro, Jair Bolsonaro afirmou que as medidas de isolamento social para reduzir a propagação do coronavírus "não têm comprovação científica". Sim, é chocante, eu sei, mas é isso mesmo que você leu.

Entendo a cabeça do cidadão que é contrário a quarentenas e lockdowns, mas que tem noção de que essa é uma escolha que pode levar a mortes. Ele faz um cálculo racional, do qual discordo, e pondera entre uma coisa e outra. O que Bolsonaro propõe aqui é outra coisa, a erradicação de qualquer racionalidade no debate público. O problema é que, como divulgou o Datafolha em 15 de maio, 14% da população acredita sempre no que ele diz.

Se agem como rebanho, acreditando que a notícia de que o isolamento social salvou neozelandeses, australianos, entre outros, é uma grande fake news, imagine diante da teoria conspiratória de que grandes indústrias farmacêuticas não querem que as pessoas tomem cloroquina porque pretendem vender remédios caros, teoria essa que circulou hoje na CPI.

O fato é que sua estratégia de promover a disseminação rápida de um vírus mortal para garantir imunidade de rebanho e fazer com que a pereba pare de circular é que não tem comprovação científica. A sua tentativa de promover remédios sem eficácia a "elixires mágicos" para que trabalhadores voltem ao serviço e ele não corra o risco de ter a reeleição prejudicada é que não tem comprovação científica.

Contudo, qual a validade de fatos no Brasil de Bolsonaro?

O bolsonarismo não se importa com nada disso e tenta jogar a população na realidade paralela que seu próprio discurso constrói, espalhando miragens e demonizando aquilo que poderia salvar vidas. Sabotou o isolamento, o distanciamento, o uso de máscaras. Não comprou vacinas no momento certo. Deixou de monitorar insumos e não enviou oxigênio para quem precisava. Atrapalhou quem trabalhava.

Até agora são mais de 450 mil mortos, como consequência. E a terceira onda ainda está só no começo.

Mas, como disse a "Capitã Cloroquina", a responsabilidade pelas mortes causadas pela doença não é do Ministério da Saúde, mas do "vírus". Pelo menos 14% vão balançar a cabeça assertivamente.

Nem a perícia feita em aplicativo sobre cloroquina tem eficácia comprovada

O depoimento da secretária Mayra Pinheiro à CPI da Covid revelou que um mesmo fato pode ter três versões no Ministério da Saúde: a do general Eduardo Pazuello, a da capitã cloroquina Mayra e a verdadeira. Submetido a tantas variáveis, o TrateCov, aplicativo sobre tratamento precoce da Covid, tornou-se uma espécie de símbolo da inépcia. Nem mesmo a perícia encomendada pela Saúde para atestar o suposto manuseio indevido do aplicativo possui eficácia comprovada.

Pazuello dissera à CPI que o TrateCov foi retirado do ar em janeiro porque havia sido adulterado por um hacker. Segundo Mayra o que aconteceu foi uma "extração de dados" por um jornalista, não um hackeamento. "Não houve alteração do que estava proposto no TrateCov", tentou esclarecer. Ambos sustentaram que o caso foi investigado. Mencionaram a existência de uma "perícia".

O presidente da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais, Marcos Camargo, declara que o laudo pericial citado por Pazuello e Mayra pode resultar em "fraude processual." Ele afirma em nota que "a lei determina que casos relativos a crimes contra órgãos federais sejam analisados, imprescindivelmente, pela perícia criminal federal, carreira incumbida das análises científicas nos vestígios de crimes e de possíveis crimes."

Uma perícia encomendada a empresa privada teria, neste caso, tanta eficácia numa investigação oficial quanto a cloroquina no tratamento da Covid. De acordo com Marcos Camargo, a perícia criminal federal "não foi acionada formalmente" pelo Ministério da Saúde. A análise não passou, portanto, pelo Instituto Nacional de Criminalística.

Relator da CPI, Renan Calheiros simulou surpresa ao inquirir Mayra: "Então, houve extração de dados, mas não houve alteração do que estava proposto no TrateCov." E ela: "Não, porque o sistema era seguro. O que ele [o jornalista] fez foram simulações completamente indevidas, fora de contexto epidemiológico."

Presidente da CPI, Omar Aziz mirou no ponto: "Se esse aplicativo não foi hackeado, não foi modificada a orientação ou determinação ou qualquer outra palavra que a senhora possa dar, por que que foi retirado do ar?" Mayra soou inverossímil: "No primeiro momento, nós retiramos para que a gente pudesse fazer a investigação." Aziz não se deu por achado: "E depois, por que não voltou? A capitã refugiou-se na trincheira do gerúndio: "Estamos organizando para que ele volte a ser utilizado."

A sinalização de que o TrateCov ainda pode voltar ao ar indica que a troca de comando na Saúde, com a entrada do cardiologista Marcelo Queiroga, não livrou o país dos riscos que as idiossincrasias de Bolsonaro impõem à saúde pública.

Chama-se Rodrigo Menegat o jornalista que Mayra Pinheiro diz ter extraído dados do TrateCov. O personagem realizou, na verdade, um teste do aplicativo. Ele anotou dados de um paciente fictício, para simular a consulta que um médico faria se desejasse obter recomendação de tratamento para um paciente com suspeita de infecção por coronavírus.

Menegat registrou sua surpresa no Twitter: "Bicho, eu acabei de colocar no aplicativo TrateCov que meu paciente é um recém-nascido de uma semana que tem dor de barriga e nariz escorrendo. O aplicativo recomendou cloroquina, ivermectina, azitromicina e tudo o mais. Crime, crime, crime, crime." Diante da constatação de que a ferramenta da Saúde era viciada em cloroquina e outros remédios de ineficácia comprovada para casos de Covid, a coisa foi retirada do ar. A volta do aplicativo faria de Marcelo Queiroga um cardiologista sem comprovação científica.


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