26/04/2024 - Edição 540

Poder

Como a ministra dos Direitos Humanos aparelha sua pasta

Publicado em 21/05/2021 12:00 -

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O núcleo ideológico do governo Bolsonaro não é mais o mesmo. Dois importantes “oficiais” da tropa, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub e o ex-chanceler Ernesto Araújo, foram forçados a abandonar o campo de batalha. O guru Olavo de Carvalho acabou silenciado pelas redes e por força de decisões judiciais (uma delas o condenou a pagar 2,9 milhões de reais ao cantor e compositor Caetano Veloso, por calúnia e difamação). Carluxo Bolsonaro perdeu o controle do “gabinete do ódio” e está na mira da CPI da Pandemia. Só uma generala continua firme no posto – e prestigiada – desde o início do mandato, em 2019. Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, afastou-se dos holofotes, mas não abandonou a missão. Praticamente esquecida pelo noticiário, ela aproveita o descuido da mídia para conduzir o “rebanho” à sua maneira e levar a cabo o aparelhamento de cargos estratégicos na administração pública com figuras ligadas ao reacionarismo religioso.

Um mapa obtido com exclusividade pela reportagem da Carta Capital aponta: dos 46 cargos mais importantes do ministério, 30 estão ocupados por representantes de igrejas evangélicas, católicos ortodoxos, movimentos internacionais e nacionais da direita cristã e até do integralismo, de inspiração fascista. De acordo com o levantamento, 17 cargos são ocupados por lideranças ou afiliados das igrejas Batista, Assembleia de Deus, Quadrangular, Presbiteriana e Universal. Outros oito por representantes de movimentos católicos como a União dos Juristas Católicos de São Paulo, Regnun Christi, Mission Network e Brasil sem Aborto. Há seis cargos “sob sigilo”, expediente usado em casos excepcionais de servidores cedidos pela Agência Brasileira de Inteligência. A agenda é clara: liberdade religiosa, “defesa da família” (movimentos antiaborto e contra direitos LGBT), homeschooling­ e “escola sem partido”.

Há uma conexão clara com movimentos reacionários cristãos dos EUA

O cargo de secretária nacional da Família é ocupado pela advogada Ângela Vidal Gandra, ligada à União dos Juristas Católicos de São Paulo e filha do advogado Ives Gandra Martins, destacado integrante do Opus Dei. Martins foi padrinho de casamento de Carla Zambelli, a mais fanática aliada de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, a quem Ângela chama de “irmã”. Olavete, Eduardo Miranda Freire de Melo foi nomeado em fevereiro para compor o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Intendente da Marinha, Melo minimizou a tortura em entrevistas e não tem experiência na área de direitos humanos. Antes de conquistar um cargo na “congregação” de Damares, ele trabalhou no Ministério da Educação na curta gestão de Ricardo Vélez. Sua grande iniciativa foi interromper reuniões de trabalho para orar. Um manifesto de cerca de 600 entidades contra a indicação de Melo não surtiu efeito. O intendente foi escolhido para coordenar a terceira versão do Programa Nacional de Direitos Humanos, ao lado de ativistas antiaborto (mesmo em caso de estupro).

Liderança da Frente Integralista Brasileira e presidente da regional de Brasília, Paulo Fernando Melo da Costa foi nomeado em 2019 assessor especial do ministério. A frente se classifica como “conservadora e anticomunista” e tem como lema a tríade “Deus, Pátria, Família”. Costa foi candidato a deputado federal pelo Patriotas em 2018 e, em sua página de campanha, gaba-se de ter o dom de evitar que jovens abortem. Na página da Frente Integralista do Rio de Janeiro, é conhecido como “um homem de fé, que convence mulheres a desistirem de fazer aborto apenas conversando”. O integralista envereda-se ainda pelas questões indígenas. Em sua página pessoal, destaca, entre outras, a atuação na organização não governamental Atini, criada por Damares, de onde saiu para assessorar o ex-senador Magno Malta.  “Os novos Herodes da Funai”, escreveu, “acham que o direito à cultura do índio é superior ao direito à vida. Isso é uma aberração não só do ponto de vista do direito natural, como da vida humana.”

A Atini anuncia o objetivo de “combater o infanticídio indígena”, tese repetida pela ministra e auxiliares. A ONG e a própria Damares são alvo de duas investigações. Uma delas na fluminense Volta Redonda, por causa de uma espécie de rapto. A Atini teria “sequestrado” uma adolescente grávida do povo Saterá-Mawé. O bebê teria sido entregue a uma família da cidade. A outra, em Rondônia, pelo fato de a ONG ter exibido um documentário sobre infanticídio indígena, no qual aparecem crianças da tribo Karitiana, onde a prática não ocorre. O vídeo foi retirado do ar. Depoimentos de indígenas apontam que integrantes da Jocum, outro movimento do qual Damares faz parte, mentiram sobre o objetivo do documentário para captar a imagem das crianças. “A pauta indígena é muito cara a Damares, pois é uma de suas principais bandeiras. Quando ela assumiu o ministério, queria ficar com a Funai sob seu arcabouço. Não conseguiu, mas de qualquer forma ela tem muita influência no meio”, afirma Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação pela USP e coordenadora do grupo de pesquisa Comunicação e Religião Intercom.

Neste ano, o Tribunal de Contas da União abriu investigação para apurar uma “dobradinha” entre Damares e Michelle Bolsonaro. O tribunal calcula em 7,5 milhões de reais os danos ao Erário por conta das doações para compra de testes da Covid-19. A verba repassada pela Marfrig acabou transferida para o projeto Arrecadação Solidária comandado por Michelle no Pátria Voluntária. Com isso, a Associação de Missões Transculturais Brasileiras, que, segundo o site da Receita Federal, funciona no mesmo endereço da Atini, e dois institutos filiados à AMTB receberam parte do dinheiro.

Os grupos antiaborto e do movimento “escola sem partido” ocuparam os espaços

Sob Damares, as igrejas foram eleitas parcerias prioritárias da pasta de Direitos Humanos. Em 2020, asilos e casas de repouso tornaram-se um dos principais focos da pasta. Por causa da pandemia, foram direcionados 160 milhões a entidades majoritariamente administradas por instituições religiosas. De acordo com a própria Damares, só em São Paulo a Assembleia de Deus auxiliou em 33 municípios paulistas com 1,3 mil idosos assistidos. Em janeiro, o ministério publicou uma portaria na qual solicita às igrejas que se cadastrem voluntariamente para selar a parceria entre o governo e os cristãos. Com a base de dados, as instituições ficarão aptas a receber recursos federais. Segundo dados do IBGE, anualmente, 14 mil igrejas evangélicas são abertas no País. Como estratégia, o ministério foca em pequenas congregações e obreiros. A ministra costuma, inclusive, enviar vídeos caseiros para estimular pastores e movimentos a aderir aos programas federais.

A chegada de Damares ao ministério reforçou a presença de religiosos estrangeiros no País. “A partir de 2019, houve uma facilitação da entrada de grupos internacionais relacionados a projetos fundamentalistas. Existe, inclusive, financiamento internacional, cujas ações são padronizadas”, descreve Magali Cunha. A Associação Nacional de Juristas Evangélicos tem, por exemplo, pressionado Bolsonaro a indicar um ministro ao Supremo Tribunal Federal “terrivelmente evangélico” para a vaga de Marco Aurélio Melo. O presidente da Anajure, Uziel Santana, reuniu-se com o presidente em outubro do ano passado, quando teria apresentado o pleito.

Dos grupos internacionais atraídos para o Brasil destaca-se o Capitol Ministries, criado pelo pastor Ralph Drollinger e financiado pelo ex-presidente estadunidense Donald Trump, Mike Pence e Mike Pompeo. A partir de 2019, o Capitol abriu escritório e expandiu seus braços pela América Latina, criando coordenações em outros sete países. O objetivo é “criar discípulos de Jesus” na política mundial. Eles atuam em gabinetes no Senado coordenados pelo pastor Raul José Ferreira Júnior. Drollinger fez questão de comparecer ao lançamento da filial brasileira, em evento no Senado, que contou com a presença do senador Flávio Bolsonaro.

A aliança com os cristãos dos EUA teve como um dos principais articuladores o ex-chanceler Ernesto Araújo, que, antes de perder o cargo, anunciou na ONU que o Brasil iria sediar a IV Reunião Ministerial para o Avanço da Liberdade ou Crença Religiosa, marcado para 19 de novembro. O evento é resultado de aliança entre Trump e o governo brasileiro, com o objetivo de difundir as “pautas cristãs” no País.

Outro movimento da direita cristã dos Estados Unidos que conta com apoio irrestrito de Damares e Bolsonaro é o The Send, fundado em 2016 em Los Angeles, que tem como objetivo “reevangelizar a América”. Durante um evento em fevereiro, que durou 12 horas e ocorreu simultaneamente em Brasília e São Paulo, a ministra e o ex-capitão discursaram. “No governo, toda estratégia religiosa não é isolada, faz parte de uma articulação que abrange a América Latina. É uma rede que passa pelos EUA e que interfere diretamente em políticas públicas”, ressalta Magali Cunha. Enquanto isso, dados do site Gênero e Número apontam que, em 2020, o ministério pouco investiu em políticas para mulheres e LGBTI. No caso das mulheres, foram empenhados 106 milhões de reais, mas gastos apenas 2 milhões. Para a população LGBTI, foram empenhados 800 mil, mas nenhum centavo foi aplicado. Procurado, o ministério não respondeu às perguntas desta revista.

Tia do Zap

“Ainda me lembro da tarde quente e dos corredores lotados da Vara Única de São Sebastião da Boa Vista, município do arquipélago do Marajó, no Pará. Vejo os rostos das meninas, mães com bebês e homens que esperavam, a poucas cadeiras de distância uns dos outros, pelo julgamento de crimes sexuais”, diz a jornalista Andrea Dip.

Uma das meninas que aguardava ali, Mariana*, havia sido estuprada pelo pai desde os sete anos de idade, engravidou aos 12, teve o filho, engravidou novamente aos 13 e só conseguiu escapar da violência reiterada porque teve complicações no segundo parto — alguns médicos suspeitaram da situação e chamaram o Conselho Tutelar. Até os profissionais conseguirem chegar ao local de difícil acesso onde a família morava, o pai já havia começado a abusar também da filha mais nova, na época com sete anos.

“Não foi a primeira e infelizmente não seria a última reportagem que eu faria sobre violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil mas certamente o motivo de estarmos ali — eu e a fotógrafa Julia Dolce — tornava tudo ainda mais grave”.

O ano era 2019 e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Bolsonaro, Damares Alves, tinha dito publicamente que meninas eram estupradas no Marajó porque "não usavam calcinha" e sugeriu construir uma fábrica de lingerie na região como medida para "solucionar o problema".

“A fala causou grande repercussão e nós, da Agência Pública, fomos até lá para ouvir de quem estava na linha de frente de combate e também das próprias meninas os reais motivos para o alto índice de violência sexual contra crianças e adolescentes no arquipélago”. Um pequeno spoiler: o Marajó tem os mais baixos índices de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil e, no município de São Sebastião da Boa Vista, em 2019, não havia delegado há mais de um ano e nem Defensoria Pública, os Centros de Referência em Assistência Social (CRAS E CREAS) não funcionavam como deveriam e o Conselho Tutelar tinha poucos funcionários e nenhum transporte para se locomover pelos rios que cortam e permeiam a região. E esse nem era todo o problema.

“Me lembrei disso porque o último dia 18 marcou o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes”, diz Dip, e em cerimônia realizada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a ministra Damares Alves disse: "Esse evento é para mandar um recado para o Brasil: acabou, basta de violência contra a criança. Os números nos assustam. Nossos telefones tocaram 3,5 milhões de vezes no ano passado. No ano de pandemia o número de ligações diminuiu e a gente sabe o porquê: as crianças estavam em casa e não na escola. Aqui fica o registro da preocupação do presidente e da ministra com as crianças que vamos receber nas escolas agora".

Damares se referia às mais de 6 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes registradas pelo serviço Disque 100 nos cinco primeiros meses 2021 e aproveitou a ocasião para defender novamente a educação domiciliar, bandeira do governo Bolsonaro. Mas a fala de Damares vai mais uma vez na contramão do que dizem os especialistas no assunto. Para dar apenas um exemplo, o relatório divulgado pela Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância, na sigla em português) em 2020, dava conta de que 80% dos estupros de vulneráveis (menores de 14 anos) aconteciam dentro de casa e alertava justamente para a dificuldade de se denunciar esses crimes durante o isolamento social.

Como no caso da fábrica de calcinhas, a ministra que diz ter como uma das principais lutas a defesa de crianças e adolescentes "contra a pedofilia" — algo reducionista em si porque leva em conta apenas a doença e não todas as questões estruturais que sustentam a exploração sexual e abusos de crianças e adolescentes no Brasil — dá mais um de seus discursos equivocados.

Mas não são apenas discursos grotescos porque Damares não é sua tia dando opinião no grupo da família do WhatsApp. É uma ministra de Estado e o que diz tem poder de virar ou não políticas públicas e ações efetivas de combate à violência ou de acolhimento às vítimas

Ao mesmo tempo em que oferece recursos públicos para fazer uma "sala rosa" no IML (Instituto Médico Legal) do Acre para receber mulheres vítimas de violência sexual, os municípios com os mais altos índices de mortes de mulheres no Brasil seguem sem delegacias especializadas. Enquanto fala em construir uma fábrica de calcinhas no meio de um arquipélago, pais estupram suas filhas dentro de casa, e o Conselho Tutelar não consegue chegar porque não tem barco. Enquanto defende a criminalização do aborto mesmo em caso de estupro, uma criança que engravidou do tio precisou chegar ao hospital dentro do porta-malas de um carro para evitar fanáticos religiosos e fazer valer seus direitos.

“Quando ouço Damares celebrar a diminuição no número de denúncias de violência sexual e defender que as crianças possam ser educadas em casa e não precisem mais ir à escola — mesmo após o fim da pandemia de covid-19 —, só penso em Mariana e naquela sala cheia de meninas que ficaram tempo demais trancadas em casa com seus pais”, diz a jornalista.

* O nome foi trocado para preservar a identidade da menina; a reportagem citada deu o prêmio de jornalismo True Story Awards 2021 para a jornalista Andrea Dip e a fotógrafa Julia Dolce e a Agência Pública


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