26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘A gente só aparece no extraordinário’

Publicado em 19/05/2021 12:00 -

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Atual diretor do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal de Roraima (UFRR), onde atua desde 2013, o professor João Carlos Jarochinski é também membro efetivo do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras. Pós-doutor pelo Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (NEPO/Unicamp), doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS), ele aceitou refletir, nesta entrevista para a Radis, sobre a invisibilidade da Região Norte no restante do país (tema de reportagem da edição de maio).

Dedicado ao estudo das migrações e do refúgio desde 2007, ele conduziu a conversa, feita pelo telefone, para a discussão sobre os problemas e os potenciais das áreas de fronteira do país, destacando consequências para a garantia de direitos e o exercício da cidadania. Ele identificou que a presença do Estado nestes territórios, muito vinculada à perspectiva da segurança, contribui para a sensação de não pertencimento ao lugar, condição que reforça preconceitos e a não integração de migrantes refugiados de outros países, em especial dos venezuelanos que entram no Brasil pelo estado de Roraima.

Observador da realidade onde vive com a família, ele avaliou o papel dos meios de comunicação na manutenção destes fenômenos e os relacionou à disputa por espaço e pela oferta de serviços públicos inadequados. Uma realidade de desigualdade de condições acentuada pela invisibilidade. “Nosso cotidiano é pouco conhecido. O que são conhecidos são os estereótipos. Os estereótipos do não lugar, da violência e, também, do lugar das belezas naturais, da floresta”, revelou.

 

Como morador de Roraima há quase uma década, você percebe que há uma certa invisibilidade da Região Norte no restante do país?

Sem dúvida. As pessoas vêm para cá e se surpreendem, chegam aqui com a visão de que é a periferia da periferia, como se nada funcionasse ou prestasse, ou então que seria um paraíso natural. Mas a maioria das pessoas de fora que recebi aqui, nesses últimos tempos, se surpreenderam positivamente com a cidade. Elas se surpreendem com o tamanho de Boa Vista, por exemplo. Apesar de seus muitos problemas urbanos, é uma cidade com muita beleza, que tem um projeto urbanístico. Impressionante como a ausência de informações estabelece um desconhecimento do que existe aqui. Mas há outros elementos da região que também surpreendem.

Quais elementos?

Outro ponto que é muito forte aqui no Norte tem relação com a migração e as fronteiras. Dentro do que se conhece como fronteiras amazônicas, eu conheço desde Oiapoque [no Amapá] a Guajará Mirim [em Rondônia], além de Tabatinga [no Amazonas], percebo a ausência da presença estatal — a não ser nos serviços de segurança. Tem sempre nesses espaços a presença do Exército, do Batalhão de Fronteiras, da Marinha e da Aeronáutica (em alguns desses locais) e também da Polícia Federal. Mas os outros serviços não estão presentes, o que gera uma forte vinculação do Estado à perspectiva da segurança, ao combate a ameaças. Isso é muito forte na região. Você tem uma construção de “Estado” a partir da visão de defesa do território, mas ao mesmo tempo sem a prestação de uma cidadania plena. Você integra as pessoas que vêm de fora dentro de um repertório do que é Estado, mas ao mesmo tempo esses locais não oferecem serviços adequados para quem fica aqui. Então, mesmo para esse rol de funções estatais desenvolvidas na fronteira, para que elas sejam desempenhadas, é preciso que você beneficie o agente que vem de fora com o pagamento de um adicional de fronteira, porque as pessoas não querem permanecer.

Quais as consequências disso para a região?

Isso gera um aspecto muito ruim, principalmente na prestação de serviços, porque as pessoas não sentem aqui como seu lugar. A gente brinca que as pessoas vêm com a mochila nas costas e não a tiram durante todo o período, já esperando a ida para outras localidades. Não se cria a identificação consistente destes agentes públicos com o local. Sobre aqueles que permanecem, eu gosto muito de uma analogia feita pela [escritora e jornalista] Eliane Brum, quando discutiu os confrontos em Pacaraima [município no norte de Roraima que ganhou notoriedade na mídia por ser a principal porta de entrada dos migrantes venezuelanos no Brasil]. Ela disse, não exatamente com estas palavras, que quem permanece em locais como Pacaraima, veio e segue com a ideia de “eu não tinha para onde ir, então eu fui para aquele lugar que é o não lugar, onde ninguém quer estar, mas é o que me sobrou”. Outro elemento que percebo é que quando chega alguém novo nesse espaço, principalmente de outros países, há a ideia de disputa, de repulsa com quem é de fora [o migrante estrangeiro]. Quando é um elemento nacional, aí é valorizado, principalmente se for branco, já que passa a ideia de que traz progresso, civilização, mesmo que sejam pessoas não identificadas com o espaço.

Por que isso acontece?

Eu acho que isso ocorre muito por conta da ausência de interesse por esse espaço. Como ele não atrai interesse, ele continua invisível. Quando ele atrai interesse é sempre nessa perspectiva securitária, tanto do Estado, tanto na construção de noticiários, sempre de aspectos muito negativos. A violência, o tráfico de drogas, o tráfico de armas, a devastação ambiental, a garimpagem — sempre elementos de caráter muito negativo, que se tornam mais negativos ainda quando eles encontram a ideia de “edenização” do espaço. A Amazônia vista como se fosse uma grande Éden, com problemas e pessoas destruindo esse Éden, que todo mundo gosta de passar uns dias, mas ninguém quer ficar. As pessoas que resolvem passar suas vidas aqui sofrem muito com as condições que hoje a Amazônia oferece, como, por exemplo, em termos de conectividade, de integração com o restante do território nacional, entre outros elementos que trazem muitas dificuldades no cotidiano.

A invisibilidade então reforça esse problema?

A invisibilidade reforça muitos estereótipos. Os estereótipos daqui não são invisíveis. A perspectiva do que é o cotidiano, do que é a vida real, essa sim é invisibilizada, o que acaba afetando a oferta de serviços. Nós temos índices ruins em relação a qualidade de ensino, nós temos uma qualidade de saúde também inferior em comparação a outras regiões, a nossa dinâmica de obtenção de renda também é mais baixa, fora a permanência de uma gritante desigualdade social, maior do que em outras regiões do Brasil. Esse cotidiano é pouco conhecido. O que são conhecidos são os estereótipos. Os estereótipos do não lugar, da violência e, também, do lugar das belezas naturais, da floresta.

Você fala de uma visão securitária do território, que por um lado estabelece a sua posse e por outro legitima uma visão romantizada como algo que se usufrui somente visualmente (ou virtualmente). Existe alguma relação disso com o tratamento que se dá aos refugiados que procuram acolhida na região?

Tem muito. Como é o não lugar, o não espaço, há uma ideia de concorrência desses refugiados ou migrantes em relação aos serviços que já não têm a qualidade adequada. A população local os vê como concorrentes, que disputam esse espaço com quem mora aqui, que já estão estabelecidos aqui e não vislumbram a possibilidade de buscar outras localidades. Isso gera antipatia e preconceito. Trabalha-se muito hoje a ideia de xenofobia, mas a xenofobia tem relação com quem está vindo de fora. A partir do momento em que ele [o migrante] já está estabelecido, não dá para se falar em xenofobia, já não é de fora, ele faz parte dessa sociedade. Isso marca muito essa relação, como marcou também o que aconteceu no Acre, entre 2010 e 2015, que foi o preconceito.

Explique melhor…

No caso do Acre, havia também a ideia do preconceito racial contra o haitiano, de um impacto fenotípico no espaço amazônico, onde o preto não é tão presente em algumas localidades, como nas fronteiras do Brasil com outros países, já que seu processo de exploração se deu mais tardiamente. Nesses locais tem muito a figura do caboclo, do indígena, então isso tem um impacto. No caso dos venezuelanos, há mais um elemento. A filósofa espanhola Adela Cortina desenvolveu um conceito, a aporofobia, que é a fobia ao pobre. Em tese, esse pobre chegaria aqui para demandar do poder público. E nós também necessitamos do poder público, não é? A gente tem que pensar que nessas regiões de fronteira o grande investidor, o grande empregador é o poder público, mesmo entregando serviços ruins. E aí você tem mais gente disputando espaço, o que gera esse tipo de relação extrema de afetação, que em alguns casos, parte de uma xenofobia institucional, responsabilizando os migrantes por tudo. Cria-se uma narrativa de que aqui era um lugar perfeito, de que as coisas funcionavam até eles chegarem. É uma narrativa muito útil, principalmente para a classe política, que invisibiliza problemas estruturais que acontecem aqui desde a colônia e que até hoje não foram resolvidos.

Os meios de comunicação legitimam este contexto?

Não posso cometer o erro de estigmatizar a mídia. Eu vi muitas coisas de qualidade sendo produzidas nos últimos tempos em relação ao que acontece na região. Pela experiência de quem chegou aqui em 2013, vejo que nunca se falou tanto de Roraima quanto nos últimos três anos, isso é fato. Lógico que é um tema meio único, que é a questão migratória, mas falou-se de Roraima. E muitas vezes vi muita qualidade na informação, um cuidado, uma tentativa de construir uma argumentação mais coerente. Mas há algo que acho que até valeria um estudo sociológico, que seria analisar, a partir dos anos 90, os vários programas policiais, coisas caricatas que, em minha opinião, reforçam a aceitação de violência em níveis extremados hoje, ainda mais quando exibidas na TV aberta na parte da tarde. Esse tipo de programação tem um papel muito significativo na construção de estereótipos, na construção da aporofobia, do preconceito, da não integração dessas pessoas. A gente também tem que pensar que dentro das localidades menores muitas vezes há segmentos de imprensa que atendem a grupos políticos.

Qual a diferença na atuação da imprensa local?

Quando eu leio o jornal O Estado de São Paulo, eu sei qual o grupo econômico que ele está interessado, mas eu também entendo que há um compromisso com o jornalismo, com a apuração dos fatos, com o contraditório. A gente tem que lembrar que muitos grupos, que a gente poderia chamar de grupos midiáticos, nos espaços menores de fronteiras, são vinculados a certas lideranças políticas, seus donos são grupos políticos, então eles atendem aos anseios dessas pessoas. Ainda há um interesse de determinados setores em apontar os imigrantes como culpados dos problemas.

Como isso se estrutura?

Trabalha-se na construção de três ameaças: a ameaça da violência, a tentativa de associar grupos de imigrantes refugiados a grupos de violência ou ao aumento da criminalidade. Boa Vista é uma cidade que cresceu de tamanho e é normal, em processos de crescimento urbano, haver aumento de criminalidade. Houve erros estratégicos, por exemplo, sobre como coibir ou lidar com facções criminosas. Mas aí aponta-se que o problema foi a migração. A outra ameaça é de saúde. Aqui teve a questão do sarampo, da difteria e agora da covid-19. Ainda hoje, permanece o discurso de que a migração seria responsável pelo aumento do número de casos, pelo estrangulamento do sistema de saúde, o que desde o início da pandemia se mostra falso. Se você olhar, todo o entorno tem tido resultados melhores em termos da prevenção da doença, mesmo em países muito mais pobres do que o nosso. E a terceira ameaça é a da ameaça do emprego, da disputa por emprego, que acaba reforçando a noção que essas pessoas não pertencem a esse espaço e que devem ir embora. Isso se reforça com o fato de a presença dos agentes públicos estatais, do serviço, ser sempre temporária. Então, a ideia de que esses caras não pertencem a esses espaços também se reproduz quando se olha para o imigrante, para o refugiado, visto como um ser temporário. A própria resposta que se dá ao problema, que é a interiorização, parte do princípio de que eles têm que sair daqui. Eles dizem: “Roraima não tem condições de integrar essas pessoas”. Eu concordo. Mas não se investe em melhorar as possibilidades de integração, prefere-se investir na retirada dessas pessoas, reforçando o não pertencimento ao local.

É quase o mesmo que acontece, metaforicamente comparando, com Roraima em relação ao país? Ou seja: um território que você não possibilita a integração?

Exato. Você não integra de fato, seja em termos estruturais, seja na ideia de conhecimento ou de vinculação. É algo que parece muito distante do restante do país. Tanto que, historicamente, na região de fronteira, a gente desenvolveu aquilo que a gente chama de espaços transfronteiriços, porque do lado de lá, nos outros países, também há uma distância bastante grande em relação aos seus centros, às suas capitais. A gente teve que criar uma dinâmica de circulação muito intensa dessas pessoas, desses pequenos grupos que vivem nesse espaço para atender às demandas, seja de serviços, seja de produtos. Para se ter uma ideia da realidade, a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista, primeiro foi asfaltada na direção à Venezuela, porque as pessoas iam para lá para fazer compras. Os espaços transfronteiriços criam isso. É tão isolado, você é tão não integrado ao restante do território que você fica buscando alternativas do que está mais à mão. Mas, ao mesmo tempo, mesmo com esses espaços transnacionais, a presença estatal dominada por uma visão securitária, de distinção, reforçou a ideia de uma nacionalidade excludente, a partir da qual você se define como diferente do outro. Em momentos de crise, isso tende a se exacerbar e a criar focos de tensão. Nas áreas de fronteiras é muito nítida essa noção de não integração, de não pertencimento em relação ao território, que é reforçada pela invisibilidade do cotidiano. A gente só aparece no extraordinário, o nosso ordinário nunca aparece.

O que mais é invisível nestes espaços transfronteiriços?

Eu estive em diversas fronteiras, e chama atenção alguns aspectos relacionados à circulação das pessoas. Quando a Venezuela tinha uma condição de país mais adequada, havia uma lógica bem interessante nos atendimentos de referência, por exemplo. Algumas demandas eram enviadas para cá, mas nós também utilizávamos a Venezuela como referência, por exemplo, em termos de atendimento cardiológico. Acho que é um ponto interessante a destacar, porque às vezes as pessoas esquecem, que foi por muito tempo uma via de mão dupla. Elas, às vezes, atentam mais para isso em termos da energia, para criticar o fato de a Venezuela não fornecer mais energia, mas não pensam que por muito tempo o país foi uma referência no atendimento à saúde e também exportava energia para Roraima.

Você consegue definir qual é a identidade roraimense?

Há aspectos interessantes e bastante ricos. Na música há o movimento Roraimeira, a produção de poesia, a construção de uma literatura que trabalha a noção do viver em um espaço da natureza, de vinculação com os povos indígenas. Eu vejo muito um tipo de construção que diz: “nós chegamos aqui primeiro, nós desbravamos isso, nós sofremos toda a falta de estrutura. Agora que isso tem melhorado, isso nos pertence” e que também se apropia de uma “noção” de “roraimense raiz”, que reforça uma identidade perante os grupos não desejados, como os imigrantes, fortalecendo a aporofobia e o preconceito, embora as pessoas que são brancas, oriundas do Sul ou Sudeste do Brasil, sejam, via de regra, bem recebidas.

São duas formas de aceitação.

Infelizmente, isso é muito forte aqui. Por exemplo: a presença de pessoas da Região Sul, principalmente do Rio Grande do Sul, é valorizada a ponto de haver centros de tradição, pessoas torcendo pelo Internacional e pelo Grêmio, tomando Chimarrão. Você tem esse elemento, que é aceito porque vislumbra-se nele primeiro os traços de racialidade, de domínio — e eles acabam dominando parte do setor agrícola e parte desse setor de desenvolvimento, em comparação a outros grupos, como os venezuelanos. Do ponto de vista da base da pirâmide social tradicional, a branquitude sempre teve espaço privilegiado. Antigamente, quem era mal visto aqui era o imigrante do Maranhão, porque era pobre. Com a chegada dos venezuelanos, e dos guianenses nos anos 90, reforçou-se a ideia do “agora vamos nos unir contra esse inimigo comum”.

É possível projetar sobre como essa identidade multifacetada vai evoluir?

Como alguém da história, prefiro falar do passado, receio fazer projeções. Acredito que depende de como vão se construir políticas públicas, de como se vislumbram as possibilidades trazidas com essa maior exposição da região e do crescimento populacional com a imigração. De uma perspectiva mercadológica, com a presença grande de venezuelanos, a extensão de um maior e melhor conhecimento do idioma espanhol pode ser vista como uma vantagem. Caso se trabalhe no sentido de incentivar e perceber estes potenciais, é possível até pensar nos venezuelanos como integrantes dessa dinâmica, já que hoje, do ponto de vista populacional, eles se tornaram um grupo bastante significativo, bastante representativo. Mas tudo depende da forma como se trabalha, de não insistir, como alguns grupos daqui insistem, na dinâmica de xenofobia institucional. Eu já escutei a ex-prefeita de Boa Vista falar que daqui a dez anos a cidade será uma cidade bilíngue. Mas em termos de execução de ações, pensando na integração e no potencial de desenvolvimento que a migração pode trazer, é muito pouco o que tem sido feito. A gente discute migração em aspectos muito imediatistas, como da disputa em termos de acesso a políticas públicas, a direitos. Em termos demográficos, existe a projeção de que haverá crescimento da nossa população até 2038, quando então teremos um processo de estabilização, acompanhada de envelhecimento da população. Obviamente que eram projeções anteriores à pandemia. Uma das formas de você lidar com a perspectiva demográfica de envelhecimento é a imigração. Portugal fez isso. Mas aqui parece esse discurso está a anos-luz do que a gente pode pensar em termos de ação, ficamos nesse embate sobre uma disputa pelo imediato, sem desenvolvermos ações para o futuro.


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