16/04/2024 - Edição 540

Brasil

9% das mulheres brasileiras sofreram violência sexual alguma vez na vida, diz pesquisa de IBGE e Ministério da Saúde

Publicado em 13/05/2021 12:00 -

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Pelo menos 8,9% das mulheres brasileiras já sofreram algum tipo de violência sexual na vida, segundo dados da Pesquisa Nacional da Saúde (PNS), divulgada no último dia 7 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em parceria com o Ministério da Saúde. As entrevistas foram feitas em 2019 por meio de visitas a mais de 100 mil domicílios selecionados por amostragem em todo o país.

Como a pesquisa questionou se a pessoa sofreu violência sexual alguma vez na vida, e não apenas no período imediatamente anterior à entrevista, foram contabilizadas histórias como a da gerente de operações Juliana*, de 30 anos, que foi vítima de uma agressão sexual na área comum do prédio onde morava quando tinha 14 anos.

“Esses três meninos vieram na minha direção, e um deles puxou meu braço para trás, o outro amarrou um moletom nos meus olhos, e outro sentou no meu colo e começou a se mover. Os três passaram a mão no meu peito, colocaram a mão por dentro da minha calcinha, me apalparam. E eu gritava e chorava, mas ninguém veio na minha direção. Eu não sei quanto tempo durou, mas para mim parece que durou uma eternidade”, conta.

Um dos trunfos da pesquisa, segundo especialistas em violência contra a mulher ouvidas pelo G1, foi utilizar duas perguntas distintas para identificar os diferentes casos de violência sexual. Isso faz com que os dados obtidos incluam desde casos de estupro até situações como a vivida por Juliana, que seria enquadrada no crime de importunação sexual.

Uma das perguntas do questionário é se a pessoa entrevistada “foi tocada, manipulada, beijada ou teve partes do corpo expostas contra a vontade”. Essa questão foi respondida positivamente por 79,7% das vítimas de violência sexual, sendo 76,1% das mulheres e 89,3% dos homens.

A segunda pergunta sobre o tema avalia se a pessoa “foi ameaçada ou forçada a ter relações sexuais ou quaisquer atos sexuais, contra a vontade”. Neste caso, 50,3% das vítimas disseram ter vivido a situação, sendo 57,1% das mulheres e 32,2% dos homens.

Com base nessas respostas, o estudo estima que 9,4 milhões de pessoas de 18 anos ou mais de idade foram vítimas de algum episódio de violência sexual em algum momento da vida.

O número corresponde a 5,9% da população, mas o percentual de vítimas é muito maior entre as mulheres: 2,5% dos homens sofreram agressões sexuais na vida, contra 8,9% das mulheres brasileiras. Só nos 12 meses que antecederam as entrevistas, 1,2 milhão de pessoas foram vítimas de violência sexual, dentre as quais 72,7% eram mulheres (885 mil).

A maior parte das agressões sexuais contra mulheres foi perpetrada por companheiros, namorados, cônjuges ou ex-parceiros, citados em 53,3% das respostas. A violência sexual ocorreu, em 61,6% dos casos, na residência das próprias vítimas.

Para Silvia Chakian, promotora de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica do Ministério Público de São Paulo, os dados comprovam que a violência sexual é resultado de um cenário de desigualdade de gênero porque ela afeta de maneira muito mais profunda a vida de meninas e mulheres.

“A violência sexual, além de ser uma das mais graves violações de direitos humanos, é também a que mais escancara a desigualdade [de gênero], porque as vítimas são meninas e mulheres, na sua imensa maioria”, afirma Chakian.

“Estamos falando de uma violência de gênero, que é fruto de uma relação de poder e submissão que foi criada e reforçada historicamente pela sociedade. É essa relação de poder que acarreta tanto desequilíbrio, e que ainda induz a muita violência sexual”, completa.

Consequências da violência sexual

A pesquisa também mostrou que a violência sexual gera consequências psicológicas: 60,2% das vítimas declarou que a agressão provocou “medo, tristeza, desânimo, dificuldades para dormir, ansiedade, depressão ou outras consequências psicológicas”.

Consequências físicas como hematomas, cortes, fraturas, queimaduras ou outras lesões físicas ou ferimentos foram citadas por 19% das vítimas.

Segundo a psicóloga Daniela Pedroso, que há 24 anos é especialista no atendimento a vítimas de violência sexual, as consequências da agressão podem ser imediatas, mas também podem perdurar por anos. Para Pedroso, ao perguntar se a violência ocorreu alguma vez na vida do entrevistado, a pesquisa do IBGE revela abusos que muitas vezes não são contabilizados.

A especialista afirma que é comum que, ao tratar as consequências psicológicas de uma agressão, a mulher revele que foi vítima de outros casos de violência sexual no passado.

“A gente entende a violência sexual como um fenômeno transgeracional, ou seja, que atravessa diferentes períodos da vida de uma mulher. É cada vez mais comum que, quando essa mulher vítima de uma agressão chega para o atendimento, ela traga também o relato daquele abuso que ela sofreu lá atrás na infância, que ela nunca contou pra ninguém, que nunca foi tratado”, explica.

Anos antes do assédio que viveu aos 14, a gerente de operações Juliana* já havia sido vítima de outro episódio de violência sexual. Aos 12 anos, durante uma viagem no metrô em São Paulo, um homem se masturbou na sua frente e ejaculou sobre ela.

“Eu estava voltando do colégio de metrô, sentada, e um cara parou na minha frente. Eu estava lendo um livro e, quando tirei o olho da página, vi que ele estava se masturbando na minha frente. Eu era uma criança, nem sabia o que estava acontecendo, e foi pavoroso. Eu não assimilei o que tinha acontecido”, relembra.

A percepção da violência, para a psicóloga Daniela Pedroso, é prejudicada pela falta de discussão sobre o que caracteriza abuso sexual.

“Às vezes as próprias vítimas não se reconhecem como tal, porque a gente fala sobre violência sexual, mas não nomeia as coisas, e aí fica essa percepção incorreta de que estupro é quando existe a penetração, de que só isso é violência sexual”, afirma.

“Estamos falando de uma violência que pode deixar marcas profundas que podem se manifestar a curto ou a longo prazo. Então é preciso buscar ajuda e entender que a culpa nunca é da vítima”, avalia a promotora Silvia Chakian.

“Não é exigido que haja penetração ou um toque mais invasivo: todo esse comportamento que hoje chamamos de importunação sexual, tudo isso é violência sexual. Então é importante que essa gama mais extensa seja abordada nas pesquisas. Tudo isso é violência, tudo isso tem consequências, e tudo precisa ser notificado”, completa.

Violência física e psicológica

Além de questões sobre violência sexual, a pesquisa do IBGE também avaliou a incidência de violência física ou psicológica na população brasileira. Os dados mostram que a violência atinge mais as mulheres, os jovens e as pessoas pretas ou pardas.

De acordo com a pesquisa, nos 12 meses anteriores à entrevista, 19,4% das mulheres sofreram violência física, psicológica ou sexual, contra 17% entre os homens.

Entre jovens de 18 a 29 anos, o percentual chega a 27%, enquanto é de 20,4% na faixa de 30 a 39 anos; 16,5% entre os adultos de 40 a 59 anos e 10,1% entre os de 60 anos ou mais.

Além disso, as pessoas pretas (20,6%) e pardas (19,3%) sofreram mais com os diversos tipos de violência do que as pessoas brancas (16,6%).

A população com menor renda também teve maior incidência de casos, segundo a pesquisa. Apesar disso, não é possível relacionar a ocorrência da violência somente à renda, porque outros fatores, como o racismo e o machismo, também afetam os números, segundo os pesquisadores.

“Há uma incidência maior de violência entre pessoas com domicílios com menor rendimento. Mas não podemos fazer uma correlação entre pobreza e violência, pois há outras questões envolvidas como a cultural, o machismo e o racismo”, disse a analista da pesquisa, Flavia Vinhaes, à Agência IBGE.

A cada 100 minutos, Brasil registrou pelo menos um caso de estupro coletivo

Em maio de 2019, a maquiadora Andreza Nascimento, 23, postou no Facebook que ela e um amigo haviam sido sequestrados na porta de sua casa, em Cabo Frio (RJ), por três homens. Enquanto o amigo teria sido trancado no porta-malas, ela afirma que era estuprada pelo trio dentro do carro em movimento, com uma arma apontada para sua cabeça. "No meu corpo, tudo que vocês possam imaginar." O suplício, escreveu, levou quatro horas. Ao final, diz que ela e o amigo foram trancados no porta-malas e que os criminosos, antes de fugir, ameaçaram atear fogo nos dois.

Por meio da Lei de Acesso à Informação, a reportagem obteve dados do Ministério da Saúde sobre a ocorrência de estupros coletivos no país desde 2011. Naquele ano de 2019, a pasta registrou 5.372 casos: 14 por dia, ou cerca de um a cada cem minutos. Essa informação foi coletada de vítimas que buscaram um hospital para atendimento, como foi o caso de Andreza.

Desde 2011, as notificações de violência doméstica, sexual e outras violências tornaram-se compulsórias para todos os serviços de saúde, públicos ou privados. Elas são enviadas para o Sistema de Vigilância de Violência Interpessoal e Autoprovocada, ligado ao Sistema de Informações de Agravos e Informações, do Ministério da Saúde.

Os dados obtidos mostram que num período de oito anos, entre 2011 e 2019, o Ministério da Saúde registrou um total de 29.951 estupros com dois ou mais envolvidos em casos de violência interpessoal de natureza sexual. A soma é de casos suspeitos, apenas com a declaração da vítima no hospital, como o de Andreza, e dos que foram confirmados pela polícia.

"Tenho traumas até hoje, crises de choro. Há dias que não consigo fazer nada. Mudei de casa, saí do emprego que eu tinha, deixei de fazer coisas que eu amava, não saio mais sozinha, sempre ando desconfiada de tudo. Ainda preciso muito de ajuda para superar isso, mas também consigo ter momentos felizes e, aos poucos, construo tudo de novo, tijolo por tijolo", diz Andreza.

Como indica o gráfico publicado acima, o único período em que houve uma queda (3%) nos casos de estupro coletivo foi entre 2014 e 2015. Já entre 2018 e 2019, último ano com dados compilados pelo Ministério da Saúde, houve um aumento de 13% desse tipo de violência sexual.

São Paulo, Pernambuco, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro foram os estados que registraram, respectivamente, o maior número de estupros coletivos em 2019.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019 o Brasil somou ao menos um estupro a cada oito minutos. Foram 66.123 boletins de ocorrência registrados naquele ano de estupro e de estupro de vulnerável.

Números podem ser maiores

Os números podem ser maiores, já que muitas vítimas preferem esquecer tudo que passaram a procurar uma delegacia ou hospital. Além de buscar essas instituições, Andreza escolheu expor o que aconteceu em uma rede social para tentar encorajar outras mulheres a pedirem ajuda.

Decidi contar porque eu vi que era importante achar as pessoas que fizeram isso comigo. Não queria deixar eles saírem como se nada tivesse acontecido. E também para ajudar outras meninas. Fiquei imaginando todas as que passaram por isso e as que morreram também, inclusive sem poder contar para ninguém. Por eu ter contado, acharam os meninos. Então fiquei aliviada

Delegado perguntou se garota estuprada por 33 homens praticava sexo grupal

Este mês faz cinco anos que uma garota de 16 anos foi estuprada por 33 homens, em uma comunidade da zona oeste do Rio de Janeiro. Ela contou à polícia que tinha ido até a casa de uma pessoa com quem se relacionava, mas acordou no dia seguinte, em outro local, na mesma comunidade, com esses homens em cima dela, armados com fuzis e pistolas.

A imagem dessa adolescente, nua, inconsciente e tentando se desvencilhar dos criminosos, foi compartilhada à exaustão nas redes. A vítima parecia drogada e ela confirmou em entrevista que achava ter sido dopada mesmo. E foi por causa do compartilhamento dessas imagens que um grupo de mulheres acionou a advogada Eloisa Samy para ajudar a jovem a denunciar o crime.

A adolescente, que naquela época já tinha um filho de três anos, fruto também de um estupro cometido por um traficante, viria a ser alvo de outras violências. O primeiro delegado que cuidou do caso, Alessandro Thiers, chegou a perguntar, durante o depoimento da adolescente na Delegacia de Repressão aos Crimes de Informática (DRCI) se ela tinha costume de fazer sexo grupal e se gostava daquilo. Fora os ataques nas redes, de pessoas acusando-a de estar mentindo. Ele foi afastado imediatamente do posto. A reportagem procurou Thiers, mas até a publicação não obteve retorno.

"O que aconteceu com aquela garota ainda se repete; estou enxugando gelo"

A advogada Eloisa diz que o aniversário de cinco anos daquele caso de estupro coletivo não lhe traz nenhum alento. "O que aconteceu com aquela moça ainda se repete. Depois desse caso, atendi mais de cem mulheres. A percepção que tenho muito clara dessa questão de enfrentamento à violência contra a mulher é a de que estou enxugando gelo, porque ela não para e não se tem apoio para as vítimas como não tem políticas públicas voltadas para a educação dos homens. Se eles são problema, eles também fazem parte da solução. Viajei o Brasil falando de violência doméstica e só tinha mulher ouvindo", desabafa.

A jovem foi colocada num programa de proteção a crianças e adolescentes ameaçados de morte e a última informação é a de que ela mudou de identidade e escolheu viver em outro estado. A polícia indiciou sete homens no total, incluindo um menor de idade. Cinco adultos estão presos, condenados a 15 anos de prisão. Os outros dois, incluindo o menor de idade, foram mortos.

"Maioria dos estupros é coletivo, pois homem sente mais poder em grupo"

Delegada há 13 anos e hoje na Subsecretaria de Políticas para as Mulheres do Estado do Rio, Cristiana Bento afirma que o caso do estupro coletivo dessa então adolescente, em 2016, foi um marco para que se desse mais atenção às vítimas de violência de gênero e fez com que se investisse mais em cursos de capacitação de policiais e também nos têm apoio psicológico e assistência social e jurídica à disposição.

No âmbito nacional, ela destaca, o caso ajudou a criar a lei de 2018, que aumenta a pena de estupro de 1/3 a 2/3 (a mínima é 6 anos e a máxima é 30) se o crime é praticado por duas ou mais pessoas ou se for corretivo, e ainda tipifica os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro. "Foi uma conquista legislativa em razão desses fatos".

Falta também melhorar o sistema das polícias para se coletar mais dados sobre o estupro coletivo. Tecnicamente falando, o termo "estupro coletivo" não é um crime específico, então não é registrado como um código como fazem com feminicídio. Foi em razão disso, inclusive, que a reportagem não conseguiu coletar números da polícia sobre o tema.

"Tem que mudar o sistema, porque a maioria dos estupros é coletivo, porque o homem sente que tem mais poder em grupo", atenta Cristiana.

Como denunciar violência contra a mulher

A defensora pública Flávia Brasil Barbosa do Nascimento, do Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher do Rio de Janeiro (Nudem), lembra também que entre essas medidas para se combater a violência de gênero o país vem criando leis que protegem essas mulheres dentro das instituições para que elas não passem pelo constrangimento que a jovem da Zona Oeste do Rio passou. Como exemplo, cita o PL 5096/2020, conhecido como "Lei Mari Ferrer" que obriga o juiz a zelar pela integridade da vítima em audiências de instrução e julgamento sobre crimes contra a dignidade sexual. O texto espera apreciação no Senado.

"Com o caso Mariana Ferrer ficou muito evidente que as vítimas de violência sofrem violência institucional também", Flávia observa. "Mas não acredito muito na punição como forma de correção de problemas institucionais. Temos que ter muitas capacitações para evitar essas violações. E isso de maneira geral. Se não mudar, não adianta estimular a vítima a denunciar".

Para quem não se sente segura em procurar uma delegacia, a defensora ensina que os Nudens do país estão atendendo remotamente, incluindo por WhatsApp (21 972268267). No ano passado, somente seu núcleo atendeu a 4.773 casos de violência de gênero em todo o estado do Rio.

Em casos flagrantes de violência sexual, o 190, da Polícia Militar, está disponível 24h. E o Ligue 180 recebe denúncias, além de orientar e encaminhar o melhor serviço de acolhimento na cidade da vítima. O serviço também pode ser acionado pelo WhatsApp (61) 99656-5008.


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