25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Chacina do Jacarezinho reforça imagem do Brasil como cemitério do mundo

Publicado em 07/05/2021 12:00 -

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Uma operação que termina com 24 civis e um policial mortos, trata uma comunidade com milhares de moradores como um campo de guerra inimigo e atinge até passageiros do metrô é um fracasso retumbante. Demonstra falta de inteligência do Estado, em todos os sentidos.

Por isso, a Chacina do Jacarezinho, perpetrada, no último dia 6, pelo governo do Rio de Janeiro, rapidamente tornou-se assunto na mídia internacional como mais um símbolo de nossa necropolítica. O Brasil é visto como o cemitério do mundo, em muitas dimensões diferentes.

Jair Bolsonaro é causa de muitas tragédias, como a sabotagem ao combate à covid-19 que causou centenas de milhares de mortes, mas também é consequência de uma sociedade que nunca colocou a dignidade dos mais vulneráveis como prioridade. O Brasil já executava sumariamente negros e pobres nas periferias e massacrava indígenas e camponeses na Amazônia antes deste governo e continuará depois que ele passar.

Não que sua passagem pelo comando do país não tenha empoderado determinados discursos policiais que, antes, eram mais envergonhados, o que ajuda a normalizar a violência e a morte como métodos. A coletiva à imprensa após o morticínio foi um exemplo disso, agindo como uma segunda etapa da tragédia. Se a primeira passou por cima da comunidade, a segunda atropelou a Constituição Federal.

"Não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante", afirmou o delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada (DGPE) ao falar que os 24 civis foram mortos em troca de tiros com agentes de segurança.

Sob essa visão, a Justiça é desnecessária. Por que a própria polícia, cuja função é investigar e prender quem comete crimes, também assume o papel de acusar, julgar e executar. Reforça a ideia de que o Brasil tem pena de morte sim, só não está detalhada no Código Penal.

"Eu queria deixar muito claro que o sangue desse policial que faleceu hoje em prol da sociedade de alguma forma está na mão dessas pessoas, dessas entidades ", afirmou o delegado Rodrigo Oliveira, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Polícia Civil, criticando o que chamou de "ativismo judicial" de ativistas e defensores de direitos civis.

Por conta da quantidade de mortes em comunidades pobres do Rio em operações policiais durante a pandemia, o Supremo Tribunal Federal limitou essas ações a situações excepcionais em junho do ano passado. O Ministério Público, que precisa ser avisado com antecedência, só foi informado da operação no Jacarezinho depois de seu início.

"Parte desse ativismo que de alguma forma orienta a sociedade numa determinada direção definitivamente não está do lado da Polícia Civil e da sociedade de bem. Os interesses deles são diversos, são outros", afirmou Oliveira.

Ele adota duas estratégias comuns ao bolsonarismo: a de afirmar que quem concorda com ele faz parte da "sociedade de bem", em detrimento ao inimigo, o mal, que é quem discorda dele. E a outra é acusar antes de ser acusado. Coloca o sangue do policial nas mãos dos críticos da ação antes que a sociedade coloque o sangue dos 25 nas mãos do poder público.

Tudo isso é um espetáculo violento, que afronta a lei e excita uma parcela da sociedade, que vai consumi-lo com gosto.

O policial André Frias poderia estar vivo, bem como os outros 24, caso as forças policiais no Brasil investissem no trabalho de inteligência. Isso poderia levar criminosos à Justiça e não ao cemitério, como reza a Constituição.

Como não temos um trabalho de inteligência eficaz, com integração das bases das polícias e cruzamento de dados de segurança pública, que torne possível cortar o fornecimento de armas ilegais, bloquear a movimentação financeira dos envolvidos, atingir os financiadores do crime organizado (que, não raro, moram em bairros de ricos) e localizar e isolar criminosos, a alternativa adotada é ir para a porrada, matando e morrendo.

Enquanto isso, o governo Bolsonaro atua para sabotar o trabalho dos mesmos policiais, aumentando a quantidade de armas em circulação, incluindo fuzis. Armamento do mercado legal, em algum momento, abastece o ilegal, como apontam especialistas. O que anima traficantes e milicianos.

Ações como a desta quinta atingem a vida de comunidades pobres e de policiais para passar uma sensação de segurança a parcelas das classes média e alta, mostrando que o governo está fazendo algo. Mesmo que esse algo seja inútil.

Foi o mesmo que aconteceu com a intervenção do Exército na segurança pública do Rio, durante o governo Michel Temer – comandada, aliás, pelo atual ministro da Defesa, general Braga Netto. Depois com o, agora, ex-governador do Rio, Wilson Witzel, que chegou a pregar a execução sumária de suspeitos. Agora, o governador Cláudio Castro (PSC), tentando se firmar como candidato bolsonarista à eleição de 2022, aprofunda a mesma estratégia.

O mais triste é que, se continuar assim, fará sucesso entre um naco daqueles que vivem na parte cartão-postal da cidade.

ONU pede investigação imparcial e diz que país precisa repensar segurança

O Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos criticou a violência da operação policial no Rio de Janeiro e pediu que investigações imparciais sejam abertas. "Estamos profundamente perturbados pelas mortes de 25 pessoas numa operação policial", disse Ruppert Colville, porta-voz da ONU, numa coletiva de imprensa em Genebra nesta sexta-feira.

Segundo ele, tal caso confirma a tendência de uso excessivo de força por parte dos agentes policiais, cita "problemas sistêmicos" e diz que algo "claramente está errado". Para o porta-voz, o modelo de policiamento de favelas precisa ser repensado pelo país e um debate deve ser aberto.

A ONU admite a existência de ações criminosas nas favelas. "Mas a forma de lidar com isso é com responsabilidade por parte das autoridades para garantir que a população civil, mulheres e crianças não sejam afetados", disse o porta-voz.

"O governo tem a responsabilidade de equilibrar o policiamento necessário no caso de atividades criminosas com sua responsabilidade até maior de proteger a população civil de mortes e ferimentos, além de crimes", afirmou.

Colville, porém, indicou que o número de pessoas feridas ainda é desconhecido. "Esse parece ser a operação mais letal em mais de uma década no Rio e confirma uma tendência de uso da força desnecessária e desproporcional por parte da polícia nas regiões pobres, marginalizadas e predominantemente com uma população afro-brasileira, conhecidas como favelas ", disse.

De acordo com a ONU, é "especialmente perturbador" que a operação tenha ocorrido depois que que o Supremo Tribunal Federal, em 2020, determinou limites para ações policiais nas favelas durante a pandemia da covid-19.

"Relembramos às autoridades brasileiras que o uso da violência deve ser usado apenas quando estritamente necessário e que deve sempre respeitar o princípio da legalidade, precaução e proporcionalidade", disse.

"A força letal é apenas para ser usada como último recurso e apenas quando há uma ameaça à vida ou dano sério", insistiu.

Chamando os eventos de "trágicos", a ONU ainda criticou o fato de que, depois da operação, a polícia não teria atuado para preservar evidências nos locais dos crimes, o que poderia minar as investigações.

Colville indicou que cabe às autoridades locais abrir uma apuração. "Pedimos que o Ministério Público realize uma investigação imparcial, completa e independente sobre o caso, seguindo os padrões internacionais", disse.

Entre os parâmetros dessa apuração, a ONU pede que as autoridades garantam a segurança das testemunhas e que as protejam de intimidações e retaliações. "A principal responsabilidade está com as autoridades e o Brasil tem um sistema bastante desenvolvido e tem como lidar com uma investigação", disse.

Problema é "sistêmico" e "algo claramente está errado"

Colville também qualificou a situação como um exemplo de um problema "sistêmico" no país. "Também pedimos que haja uma discussão ampla e inclusiva no Brasil sobre o modelo atual de policiamento das favelas, que estão presas num ciclo vicioso de violência letal com dramático impacto em uma situação já difícil para a população", afirmou.

Segundo Colville, há uma responsabilidade "compartilhada e generalizada" entre autoridades do país, citando ainda o Judiciário e instituições que controlam essas operações.

"Parece que, de forma coletiva, eles não estão tendo sucesso em parar esse tipo de operações", disse. "Algo claramente está errado e precisa haver uma revisão coletiva e ampla do que está ocorrendo de errado e como arrumar", afirmou o porta-voz da ONU.

Na avaliação de Colville, retórica por parte de políticos que estimule a violência "é problemática". Para ele, políticos precisam agir de forma responsável e lembra que as favelas brasileiras enfrentam essa situação "há gerações".

Violência policial no Brasil é alvo de denúncias frequentes da ONU

Não é a primeira vez que a ONU denuncia a violência policial no Brasil. Já em 2019, a alta comissária das Nações Unidas para Direitos Humanos, Michelle Bachelet, criticou a situação do país, o que levou o presidente Jair Bolsonaro a atacar a chilena. Diversos informes ainda de outros órgãos da ONU, OEA e da Comissão Interamericana de Direitos Humanos apontaram para o mesmo fenômeno.

Em 2020, o Comitê da ONU sobre Desaparecimentos Forçados cobrou do governo de Jair Bolsonaro explicações sobre violência policial, sobre o desmonte dos mecanismos de monitoramento e prevenção da tortura. Num documento enviado ao Itamaraty no dia 19 de maio, o organismo pediu esclarecimentos ainda sobre as investigações que tenham sido realizadas no país sobre milícias.

Também no ano passado, deputados brasileiros apresentaram às Nações Unidas 69 casos de suspeita de execuções sumárias no país e pediu que a entidade abrisse investigações. A queixa foi apresentada pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, liderada por Helder Salomão (PT-ES) e apoiada pela Rede Nacional de Mães e Familiares de Vítimas de Terrorismo do Estado, pela Coalizão Negra Por Direitos, Justiça Global, Rede Justiça Criminal, Movimento Independente Mães de Maio, Educafro e Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.

A lista foi elaborada depois de um longo trabalho de coleta de dados e com o consentimento das próprias famílias das vítimas. De acordo com eles, são histórias de um Brasil invisível para uma parcela da sociedade.

Governador do Rio injetou escárnio na chacina

Em qualquer lugar do planeta, uma operação destinada a executar 21 mandados de prisão que termina com três detidos e 25 mortos, entre eles um policial, resultaria na queda da cúpula da polícia. No Rio de Janeiro, a chacina é tratada pelo governador Cláudio Castro em nota oficial como uma ação normal, "pautada e orientada por um longo e detalhado trabalho de inteligência e investigação, que demorou dez meses para ser concluído". A manifestação do governador é burra, ofensiva e trágica. O texto injeta escárnio na tragédia da favela do Jacarezinho.

A burrice do governador poderia ser evitada com uma máquina de calcular. Se a polícia civil do Rio precisava prender 21 pessoas e levou para a cadeia apenas três, a taxa de sucesso da incursão feita no Jacarezinho seria de apenas 14,2%. Considerando-se que o número de pessoas que foram passadas nas armas (25) é superior à quantidade de ordens de prisão, pode-se afirmar que o índice de insucesso da operação foi de mais de 100%.

A nota oficial do governador evolui da desinteligência para a ofensa no trecho em que está escrito que é "lastimável que um território tão vasto seja dominado por uma facção criminosa que usa armas de guerra". Nesse ponto, Cláudio Castro insulta a inteligência alheia porque passa a impressão de que endossa a tese segundo a qual todo cidadão morto em ação policial é suspeito de alguma coisa. A morte de um policial passa por efeito colateral. Quanto aos outros 24 cadáveres, ainda que fossem todos culpados, não há pena de morte no Brasil. De resto, convém não esquecer que guarda-chuva e furadeira já foram peças suspeitas nas mãos de pessoas executadas por policiais no Rio.

A posição do governador é trágica porque revela que nada mudou no Rio de Janeiro. Herdeiro da poltrona do governador deposto Wilson Witzel, cuja política de segurança pública se resumia à tática de "mirar na cabecinha e… afogo!", o doutor Castro leva à boca do palco uma fria e indecorosa manifestação por escrito. Uma nota tão profunda quanto uma poça d'água —do tipo que uma formiguinha conseguiria atravessar com água pelas canelas.

O hipotético governador do Rio ainda não notou. Mas o banho de sangue do Jacarezinho não é a única anormalidade observada ao seu redor. Chefe do Departamento de Homicídios da polícia civil fluminense, o delegado Roberto Cardoso conduzirá uma investigação sobre o morticínio. Ainda não realizou nenhuma diligência. Mas já dispõe de uma conclusão: "Não houve execução."

O doutor Cardoso soa categórico: "A prova cabal de que a Polícia Civil não entra para executar e é necessário que haja um revide é o falecimento do nosso policial. […] No início da incursão, o nosso policial foi alvejado e foi morto. Isso é a prova cabal de que não houve execução e houve, sim, uma necessidade real de um revide a uma injusta agressão." Hummmmmm.

Repetindo: o delegado Cardoso, responsável por investigar as mortes, reconhece que 24 cadáveres surgiram na favela do Jacarezinho como decorrência da "necessidade real de um revide". Uma reação inevitável diante do fato de que "o nosso policial foi alvejado e foi morto". Quando uma autoridade policial pronuncia algo tão parecido com uma confissão de que o Estado matou por vingança e continua à frente das investigações, é sinal de que o governador não governa a polícia. É governado por ela.


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