23/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Há risco de erosão das liberdades civis’, diz relator de Comissão da OEA

Publicado em 03/05/2021 12:00 -

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Democracias estão sob forte tensão e existe um risco real de erosão das liberdades civis. O alerta é de Pedro Vaca, relator especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O órgão ligado à Organização dos Estados Americanos vem recebendo uma série de denúncias por parte da sociedade civil sobre a situação no Brasil e, em diversos momentos, já expressou sua preocupação com os acontecimentos no país.

Em entrevista ao jornalista Jamil Chade, do UOL, para marcar o dia internacional da liberdade de imprensa, o advogado colombiano ainda alerta que o contraditório não pode ser nem discriminado e nem estigmatizado e aponta como, numa democracia, autoridades precisam ter elevada tolerância às críticas.

Eis os principais trechos da entrevista:

 

Hoje, no Brasil, comediantes, ativistas, jornalistas ou acadêmicos estão sob pressão por causa da questão da liberdade de expressão. Como você vê a situação no país hoje?

Uma deliberação democrática vibrante é caracterizada por uma ampla margem de participação do povo governado e uma alta tolerância das autoridades às críticas, sendo desejável que, diante das reclamações, haja respostas oportunas daqueles que ocupam cargos de responsabilidade pública. Neste ideal democrático, a pressão é virtuosa porque vem da sociedade para o Estado; porque as autoridades reconhecem sua posição de poder sobre os governados e porque há disponibilidade pública para canalizar controvérsias.

Hoje vemos uma tendência regional que não escapa à situação do Brasil, que poderia ser resumida da seguinte forma: à medida que aumenta o número de vozes questionando o funcionamento do Estado, as autoridades se tornam menos tolerantes às críticas. Isto faz com que o debate democrático se deteriore porque a pressão muda de direção e passa de virtuosa a arriscada. Não é mais a cidadania com amplas margens de manobra a criticar suas autoridades, mas as próprias autoridades que geram condições de pressão sobre as vozes dos cidadãos que são desconfortáveis.

Esta situação, insisto, não é exclusiva do Brasil e é preexistente para a pandemia. Tem muito a ver com a feroz disputa pelo domínio do debate público e não é ajudado pelo déficit de espaços e lideranças que lidam com as controvérsias sociais através da deliberação entre pessoas com pensamentos diferentes. Certamente, a pandemia e a desinformação colocam essas tensões no limite.

Felipe Neto, um nome importante no debate atual, foi o tema de uma ação policial por dizer que Bolsonaro é um genocida. Uma declaração como esta deve ser motivo de uma ação policial?

O melhor lugar para defender uma administração pública das críticas das autoridades é no próprio debate público. Acredito firmemente que quando as autoridades recorrem ao direito penal para processar uma expressão, ela perde o debate público porque não é desenvolvida, ela é processada com o cenário mais drástico que o Estado tem: o direito penal. Por mais ácidas e chocantes que sejam as críticas, é plausível que as autoridades participem e eventualmente ganhem as controvérsias sobre sua gestão com argumentos dentro do debate público, por outro lado, invocar a prisão tem pelo menos duas conseqüências que são difíceis de caber em termos de vida democrática. A primeira é que o questionamento que está por trás das críticas fica em segundo plano.

A crítica tem origem em um sentimento sobre algo que está acontecendo, que um cidadão considera sério e sobre o qual ele ou ela quer fazer uma reclamação, a judicialização não processa essa controvérsia. A segunda é que a possibilidade de prisão é algo que outras pessoas estão observando e elas podem acabar se autocensurando por medo de que o poder do Estado lhes aplique a mesma severidade.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos possui jurisprudência que está disponível precisamente para que disputas judiciais deste tipo possam ser alinhadas com os padrões de direitos humanos interamericanos.

O dilema não é uma questão de semântica ou do significado das palavras; não se trata de pegar um dicionário e proibir a atribuição de adjetivos perturbadores a pessoas poderosas. A questão é uma das regras do Estado de direito, deve apontar o lugar da liberdade de expressão na relação entre os cidadãos e o Estado e sua resposta deve levar em consideração o contrapeso entre o poder público que é exercido e a liberdade de expressão do cidadão como o principal recurso para expressar uma opinião sobre esse poder.

As autoridades tomam uma série de decisões que impactam a vida comunitária, e a mera existência desse poder oferece garantias especiais de que os governados têm amplas margens para questioná-lo quando o consideram necessário.

Temos visto um forte avanço de ataques também contra os acadêmicos. Como isto pode ter um impacto mais amplo na sociedade?

Timothy Garton Ash formulou há alguns anos um princípio que eu acho que é chamado a ser um mantra de qualquer sociedade democrática e pluralista: "Não permitimos tabus contra o conhecimento e aproveitamos todas as oportunidades para difundi-lo".

O papel que a academia e a ciência têm desempenhado na história da humanidade e seu desenvolvimento é inquestionavelmente positivo. O conhecimento é construído, não decretado. Traçar limites entre conhecimento permitido e proibido parte de uma premissa absurda na qual se acredita que é possível que uma sociedade funcione de forma homogênea de acordo com os critérios daqueles que se consideram com absoluta sabedoria para censurar e autorizar o pensamento a seu critério.

É também um insulto à inteligência de cada pessoa porque assume uma certa incapacidade do cidadão de discernir por si mesmo sobre o conteúdo ao qual tem acesso. E é sem dúvida um freio ao progresso da humanidade porque pelo menos eu não conheço um único avanço significativo de nossa espécie que não tenha passado pela margem de liberdade para construir conhecimento.

Certamente os períodos de maior estagnação da humanidade foram marcados por sistemas que tentaram decretar o que poderia ser pensado e o que não poderia, todos esses sistemas que tentaram moldar o conhecimento falharam, mas a um custo muito alto de repressão e violações dos direitos humanos.

Até que ponto a democracia no Brasil está em perigo com base no que está acontecendo em termos de liberdade de expressão no país?

Os sistemas democráticos de todos os nossos países sem exceção estão enfrentando um enorme desafio, o risco de erosão das liberdades civis é certo e se manifesta em diferentes formas e intensidades em cada estado, mesmo dentro dos mesmos estados a qualidade da democracia varia muito se compararmos centros urbanos com áreas rurais, ou direitos mais bem garantidos de acordo com a raça, gênero, orientação sexual, status de migrante ou deficiência. As normas interamericanas de direitos humanos estão disponíveis e as desenvolvemos para serem úteis aos processos de melhoria que desejamos ver nos Estados.

O resultado da equação não é claro para mim neste momento, mas alguns fatores para análise: a democracia requer uma imprensa livre e, em processos de profissionalização constantes e acelerados, precisa de autoridades que acolham as críticas e respondam a elas, espera-se, a ponto de assumir as controvérsias como desafios positivos para oferecer uma melhor argumentação sobre o que fazem ou não fazem.

Devemos banir a discriminação e a estigmatização dos contraditórios. Quem apresenta o contraditório deve primeiro ser reconhecido, e depois há espaço para responder a ele ou ignorá-lo, mas invalidar o contraditor ou usar o Estado para tornar sua expressão descartável é um caminho institucionalmente arriscado que visa minar o pluralismo como um pilar essencial da democracia deliberativa.

Acesso à informação e transparência, aquele Estado que se permite ser visto e que não teme nada a ser visto. Parlamentos e juízes conscientes de seu papel de freio e contrapeso aos sistemas democráticos e, sobretudo, uma cidadania que reconhece os direitos de seus concidadãos com a mesma convicção com que reivindica e defende seus próprios direitos. Para que tudo isso aconteça, são necessárias garantias poderosas para exercer o direito à liberdade de expressão.


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