29/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Ninguém acredita em Bolsonaro’, diz líder parlamentar europeu

Publicado em 30/04/2021 12:00 -

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Miguel Urbán Crespo chacoalhou o Parlamento Europeu quando, no início do mês, subiu à tribuna e declarou: Jair Bolsonaro está cometendo um crime de lesa-humanidade no Brasil diante de sua gestão da pandemia da covid-19.

Agora, em entrevista à coluna, o eurodeputado e um dos fundadores do partido espanhol Podemos, de esquerda, deixa claro que o presidente brasileiro não tem qualquer credibilidade entre a liderança política europeia. Mesmo aqueles que mantêm relações com o Brasil, segundo ele, "fingem acreditar" em Bolsonaro para manter seus bons negócios no país.

"Ninguém acredita em Bolsonaro", sentenciou. O presidente brasileiro seria, segundo o deputado, um "problema para o mundo".

Para ele, na gestão da pandemia ou na questão climática, existe uma diferença entre o presidente brasileiro e líderes de outras partes do mundo. "Na política, se cometem erros. Mas precisamos diferenciar erros e crimes. Quando se toma decisões conscientes, sabendo de suas consequências, não são erros. E essa é a diferença de Bolsonaro e de outros líderes", disse.

Questionado quanto tempo o Brasil levaria para recuperar sua credibilidade internacional, o deputado foi claro: "só quando Bolsonaro sair".

Filho de uma vítima de torturas do regime de Franco, o parlamentar foi o porta-voz de seu partido no Parlamento Europeu, é membro da executiva nacional do Podemos e publicou obras sobre o fascismo e a extrema-direita.

Eis os principais trechos da entrevista do deputado, membro da delegação do Parlamento para o Mercosul e da comissão de Direitos Humanos:

 

Como é a imagem do Brasil na Europa neste momento?

A imagem é de um país que é o epicentro da pandemia na América Latina. A região é o epicentro de mortes e muita da culpa tem o Brasil. Tudo isso está vinculado às declarações do governo e do presidente Jair Bolsonaro. A imagem de um europeu médio é de hospitais saturados, milhares de mortes.

Na Europa também tivemos muitas mortes e não podemos nos esquecer. Mas o que contrasta é que, na Europa, há um esforço de passar uma imagem de que vamos tentar acabar com essa pandemia, vamos tentar buscar soluções. Já Bolsonaro nega a pandemia, de colocar os interesses da economia por cima do seu povo.

Havia uma concorrência dura entre Trump e Bolsonaro sobre quem dizia a maior barbaridade sobre o covid-19. Sem Trump, Bolsonaro é o protagonista das barbaridades e choca. Mesmo o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, uma vez contaminado, mudou de tom sobre a doença e o Reino Unido mudou de postura.

Quais são essas imagens que chocam?

Vemos ele abrindo as igrejas, zombando das pessoas que usam máscaras, vendendo remédios pseudocientíficos. Um Bolsonaro que nega a vacinação, que abre a possibilidade para que empresas privadas possam comprar doses.

Quais consequências isso pode ter para o país no mundo?

A primeira consequência terrível é a taxa de mortalidade no Brasil. Falamos no Parlamento Europeu de necropolítica e de crimes de lesa-humanidade. Não acredito que seja apenas Bolsonaro. Temos também de ver as responsabilidades de autoridades europeias que se negam a liberar a patente de vacinas, em um momento de emergência total. Prevalecem os interesses de uma minoria perigosa, do lobby farmacêutico. É um autêntico crime.

No caso de Bolsonaro, ele foi além. Minou as medidas que poderiam ter sido tomadas e promoveu um boicote à resposta de saúde pública. O que ocorre é que o sistema de saúde no Brasil está resistindo, apesar de Bolsonaro.

O Brasil se converte em epicentro de mutações. Um problema que poderíamos considerar como um problema das brasileiras e brasileiros hoje se converte em um risco para o mundo.

Que resposta o mundo precisa dar a Bolsonaro?

Bolsonaro é hoje um problema para o mundo e, por isso, a imagem que existe internacional é de que deve haver uma reação global que evite que possamos entrar em uma recaída na pandemia.

Para isso, precisamos acabar com o capitalismo que favorece as multinacionais. Mas também os negacionistas. Não vemos apenas a negação da ciência e da vida. Mas o uso dessa situação para fazer avançar uma política neoliberal.

A resposta do mundo precisa ser contundente. Em primeiro lugar, precisa haver uma ruptura de qualquer negociação comercial ou política com Bolsonaro, até que ele aceite não ir aos interesses de seu povo e dos interesses do mundo. Mas temos de reconhecer que crimes de lesa-humanidade não são cometidos apenas por ele.

Quem mais teria de ser examinado?

Aqueles que detêm o antídoto e que não o colocam sobre a mesa. Apenas onze países controlam 97% das doses. É uma autêntica vergonha.

Há poucos dias, o presidente americano Joe Biden organizou uma cúpula do Clima. Como foi recebido o discurso de Bolsonaro, acenando para medidas ambientais?

Não, a pergunta é outra: alguém acredita em Bolsonaro? Ninguém acredita em Bolsonaro. O que ocorre é que, para uma parcela, não se trata de acreditar nele. Mas precisam dizer que acreditam para continuar fazendo negócio no Brasil. Fingem.

O único que Bolsonaro fez na cúpula do Clima foi se reorientar para se adequar ao final do governo Trump. Mas o que ele declarou não tem relação com suas políticas ambientais.

E o que gerou essa falta de credibilidade?

Olha, o Brasil tinha Ernesto Araújo (ex-chanceler), um dos líderes negacionistas não apenas da pandemia. Mas das questões climáticas. E agora o governo vem falar de meio ambiente. Sério? Ninguém acredita. Agora, como temos de fazer negócios com o Brasil, vamos dizer que acreditamos. Trata-se de uma necessidade hipócrita de dizer que ele moderou seu discurso.

Bolsonaro está apoiado pelos interesses da bancada do Boi, da Bala e da Bíblia. Você vai me dizer que esse apoio agora vai mudar?

Nesse cenário, há alguma previsão de ratificar o tratado comercial entre Mercosul e UE?

A pandemia atrasou tudo. Falar em ratificar neste ano seria prematuro. Mas também há uma recusa muito importante na Europa contra o Mercosul. A Áustria já disse que não apoia. Parlamentos regionais já deram um não. França passará por eleições em março de 2022 e já deixou claro seu desacordo.

Não há capacidade política para ratificar o acordo. Mas, dentro da UE, há também quem defenda um acordo, pelo impacto que ele tem para certas indústrias europeias. Uma das possibilidades seria dividir o acordo em partes, numa manobra da UE. Assim, não seria necessário um processo de ratificação. Há muito interesse da Comissão Europeia em fazer isso avançar.

O sr. fala em crimes contra a humanidade no Brasil. Mas existe algum espaço real para que o tema ganhe força no Tribunal Penal Internacional?

Seria algo novo, de fato. Mas o Tribunal precisa se adaptar às novas realidades. Quando temos um chefe de estado que conhece perfeitamente as condições do que ocorre, que as consequências diretas de suas políticas negacionistas foi a morte, que fez isso de forma consciente e que diz que era mais importante manter a economia, temos uma política criminosa consciente contra a maioria da população.

Isso precisa ser investigado e avaliado. Mas mesmo antes de um tribunal, esse tema precisa percorrer a Justiça no Brasil mesmo. Bolsonaro precisa ser indiciado por suas políticas.

Todos enfrentamos uma pandemia que ninguém esperava e é normal que tenhamos cometido erros. Na política, cometem-se erros. Mas precisamos diferenciar erros e crimes. Quando se toma decisões conscientes, sabendo de suas consequências, não são erros. E essa é a diferença de Bolsonaro e de outros líderes.

Quanto tempo o Brasil vai precisar para resgatar uma imagem de credibilidade?

Só quando Bolsonaro sair. Até que isso não ocorra, essa credibilidade não será recuperada. A questão é que sua base eleitoral é muito clara e, num período de eleição em 2022, não vejo ele rompendo seu posicionamento com essa base. Ou seja, sua capacidade de dizer coisas certas, mesmo que ninguém acredite, é limitada.


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