26/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Identitarismo, lacração, justiceiros sociais e cultura Woke: como estas práticas estão desvirtuando o debate racional da esquerda

Publicado em 28/04/2021 12:00 -

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Identitarismo, lacração, justiceiros sociais, lugar de fala, apropriação cultural, cultura Woke. O que tudo isso tem a ver com os muitos impasses que a esquerda brasileira vive na atualidade? Para o jornalista e doutor em Direitos Humanos Raphael Tsavkko Garcia, muito. Segundo ele, é preciso “retomar a militância de volta das mãos dos radicais”, criando pontes e diálogo entre diferentes setores sem cancelamento, intimidação e sem medo dos lacradores. “Acima de tudo é preciso diálogo e compreensão, estar aberto a ouvir, aprender e permitir a existência de espaço para discordâncias. E isso só virá quando aqueles que defendem pautas progressistas começarem a isolar os fanáticos e intolerantes”, avisa.

Raphael Tsavkko Garcia é jornalista publicado pela Al Jazeera, Foreign Policy, Undark, DW, The Washington Post, dentre outros. É doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Deusto.

Confira a entrevista.

 

Identitarismo, lacração, justiceiros sociais e cultura Woke. Como estas práticas estão desvirtuando o debate racional da esquerda?

Antes de mais nada, a gente precisa entender de onde isso veio e porquê. Antes de 2013 era raríssimo escutar certos termos e conceitos que são populares entre os chamados identitários. Eles simplesmente não eram relevantes. Não é que não existissem, mas não passavam de fração ínfima dos movimentos sociais – que, então, buscavam compor pautas e frentes amplas, dialogar com outros movimentos, enfim, tinham o objetivo real de fazer avançar políticas públicas voltadas a minorias. 

Veja que eu mesmo militava junto a grupos LGBT's, ajudei a organizar protestos, beijaços… Mas tudo mudou no pós-2013. Eu mesmo fui convidado a me retirar de um grupo por um cara que eu tinha convidado a participar do grupo, porque eu era hétero e, como tal, não tinha "lugar de fala" e ousei discordar de uma opinião dele, que é gay. 

E essa mudança se deu pela perda de poder do PT junto aos movimentos sociais e a esquerda, partido que hegemonizava incontáveis movimentos sociais e amplos setores intelectuais, e que se viu nas cordas. Em 2013, parte considerável da esquerda estava nas ruas exigindo mudanças, e sem ter no PT uma liderança (tampouco alvo, é bom lembrar). 2013 aconteceu de forma autônoma e diversos movimentos e coletivos foram se somando à revelia do PT, que governava o país e há anos exercia pressão para desmobilizar e adestrar movimentos sociais e sindicatos.

No pós-2013 o partido precisava de uma forma de recuperar o controle, e os identitários foram uma saída – promoviam imensa desmobilização de movimentos ao causar rupturas e silenciamentos, ao criar um ambiente de medo em que nada podia ser contestado. Não surpreende que praticamente todas as autointituladas lideranças desse movimento da lacração sejam filiadas ou próximas ao PT (ou membros de algum partido satélite, como o PSOL) e que tenham defendido com unhas e dentes a inocência de Dilma, o Lula Livre, etc.

Ainda naquela época eu já alertava que o objetivo do PT era imobilizar os movimentos sociais. Tê-los na coleira para serem usados quando necessário, mas nunca contra o próprio governo que os alimentava. 2013 quebrou essa lógica. Era preciso recuperar a hegemonia.

Mas a origem dos identitários não é o PT.

Não. Eles foram usados e multiplicados com ajuda do partido, mas sua origem está nos EUA, no movimento Woke, que foi importado sem qualquer tradução para o Brasil. É engraçado que os que importaram este movimento costumam se colocar como anti-imperialistas, contra imposições e ideias forçadas de fora, mas esse é outro assunto.

O grande problema dessa ideologia Woke, dos chamados justiceiros sociais que a propagam, da lacração, que é seu método, é que ele impede o diálogo. Impede a discordância, a troca saudável de ideias, transformando tudo em dogma e religião. Não existe espaço para discordar, para dialogar – mesmo que você seja de dita minoria, acaba sendo "capitão do mato" ou algo do tipo. Se você é branco, homem ou hétero é imediatamente tratado como inimigo, sem qualquer espaço para abrir a boca. Isso cria um clima de medo externo e interno, além de simplesmente afastar qualquer pessoa simpática a diversas causas sociais importantes e alienar a maior parte da população. 

Há quem defenda, com base em teorias pós-coloniais, que absurdos como a mutilação genital feminina deve ser observada sob a ótica da cultura de certos povos africanos, e não sob o ponto de vista dos direitos humanos. Afinal, direitos humanos é coisa de branco, europeu, colonizador?

Pois é, esse movimento identitário acabou dando voz a pessoas que eu considero, francamente, malucas. E não digo isso de forma leviana. Uma das bases desse movimento Woke é a tese de que uma ofensa é intolerável, de que sentimentos estão acima da razão, e de que se alguém teve seu sentimento ferido, ou seja, foi ofendido, então essa pessoa é uma vítima e quem a ofendeu é um agressor. E não importa se existiu agressão ou não, não importa se a suposta ofensa não exista, ou seja risível – como por exemplo pessoas que se recusam a ler determinados livros na graduação porque os ofende, seja a linguagem, o tema ou qualquer outra desculpa esfarrapada. 

O movimento Woke é movido pela noção fictícia de que tudo é ofensivo fora de seu "safe space". Daí a necessidade de gatilhos (trigger) em obras, a franca e aberta censura a livros, filmes e arte em geral e a total incapacidade de lidar com o mundo da forma como ele é, mas através de uma visão idealizada e fanatizada, que dá vazão a cancelamentos – quem ofende não pode ter espaço na sociedade, deve ser cancelado, isolado e eliminado (não fisicamente, ao menos não ainda).

E desse raciocínio vem a ideia de que toda cultura é pura e deve ser respeitada em sua totalidade, sem espaço para argumentos. Disso vem a defesa de práticas como mutilação genital feminina, ou mesmo a defesa de terrorismo islâmico ou estupros cometidos por minorias – porque estas, por serem minorias, supostamente oprimidas, estariam apenas reagindo, e com razão.

Em uma completa subversão da tese da Spivak sobre se o subalterno pode falar, esse pessoal adotou a tese de que o subalterno pode tudo, até mutilar. Direitos humanos seriam uma imposição do branco ocidental, logo, inaceitável. Escapa aos identitários que são exatamente os direitos humanos que lhes garante o direito de falar tantas barbaridades impunemente. 

A ironia é que muitas vezes os maiores defensores das barbaridades Woke são brancos americanos (e em menor medida europeus) de elite, que se colocam na posição de "white saviour". E, claro, também se apegam à ideia de culturas imutáveis e puras, com repúdio ao que chamam de "apropriação cultural" que pode ser algo tão banal quanto usar uma roupa de oncinha ou tocar uma música de uma cultura que não é a sua, quando na verdade toda cultura é fruto de encontro de ideias e de outras culturas. 

Tratar culturas como imutáveis, estáticas, acaba sendo uma forma de preconceito, tratam aqueles que não são americanos ou europeus como bárbaros cujas culturas estão para sempre estáticas, quase passando a mão na cabeça deles, como se fossem animais irracionais. É condescendência pura.

A ideologia Woke, no fim, não passa de uma forma de condescendência, onde brancos podem achar que estão fazendo o bem para aqueles "seres inferiores," enquanto para aqueles que são membros de grupos minoritários, muitas vezes, é a chance de, através de vitimização, conseguir espaço na mídia, vaga de emprego, colunas em revista e, acima de tudo, sentir um gostinho do que é ser opressor (Paulo Freire em seu eterno retorno).

Em um texto recente, você diz que estas práticas operam por meio do pânico. 'Cria-se um pânico, algo completamente fora do controle que supostamente explica todas as mazelas sociais (machismo, homofobia, racismo… satanismo) e através de argumentos estapafúrdios, sem qualquer base ou noção, se espalha através da mídia (hoje redes sociais também) ao ponto em que você não tem como escapar – ou você também acusa o colega de ser racista e machista, ou você vai ser a próxima vítima e será acusado e cancelado.' É uma prática totalitária?

Sem dúvida alguma. Cria-se um clima em que qualquer tipo de discordância coloca o grupo em risco. Em uma emergência você segue as ordens, não desvia, apenas segue e repete.

Além disso, eu trato a questão como pânico, porque cria-se a ideia de que estamos diante de uma campanha de extermínio, de uma guerra entre diferentes raças, ideologias, credos que simplesmente não encontra eco na realidade.

Sem dúvida o racismo é algo extremamente real, assim como a homofobia, o machismo e tantos "ismos" por aí, mas a forma pela qual certos movimentos colocam a questão dá a entender que, ou seguimos seus desígnios, ou haverá um genocídio, uma solução final. 

E isso chega ao ponto do ridículo quando você discorda de uma pessoa de alguma minoria em rede social, por qualquer razão, e logo surgem os gritos revoltados de que você não pode discordar de uma pessoa negra/mulher/LGBT pelo mero fato dela ser ou ter determinadas características e não com base nos argumentos colocados.

Isso cria um clima em que você corre para tentar se salvar atacando – "antes de ser acusado de racismo, vou coletar qualquer comentário inocente na internet e dizer que é racista pra cair nas graças dos lacradores e não ser eu mesmo acusado."

Você cria um quase Estado-policial Woke. Você começa a policiar todas as suas falas, sempre com medo de errar uma vírgula e ser cancelado, ao passo que monitora as redes atrás de qualquer erro ou suposto erro dos outros para poder denunciar. E, uma vez denunciado, não existe espaço para defesa – você está condenado. E isso vale pra gente como o Woody Allen ou para um zé ninguém que deu azar de se relacionar com a pessoa errada.

O Tribunal da Santa Lacração, como você definiu recentemente, faz vítimas reais, por meio de denúncias falsas ou manipuladas, que criam uma "verdade" que serve de base pra linchamento e processo sem direito à defesa em que a sentença já foi decidida de antemão.

Exato. Eu lembro de um caso folclórico, de uns 2-3 anos atrás, em que um rapaz de Minas Gerais foi acusado de estupro por uma garota com quem ele mantinha uma relação sexual, porque disse ela, em dado momento, que ele pediu uma massagem e ela fez, usando um óleo de massagem que, pasme, ela disse que a dopou e a fez realizar sexo oral nele. A história ficou conhecida como a do "óleo de chupar pau" e é tão ridícula que não é possível que alguém tenha acreditado.

Mas acreditaram, porque se ela é mulher e diz que foi estuprada, então é verdade. A vítima sempre tem razão, dizem – mesmo que a vítima tenha sido o músico que perdeu contratos e teve a vida arruinada. Em momento algum ele teve direito a se explicar, ele foi condenado no chamado Tribunal da Lacração, e ponto.

Eu tenho amigos e conhecidos que foram condenados nesse tribunal. Alguns se recuperaram, outros ainda lutam pra conseguir suas vidas de volta. As pessoas acham que é brincadeira, que "cancelamento" não é algo real, mas é, e as consequências são reais. Pessoas perdem emprego, contratos, amizades por causa de denúncias falsas ou exageradas nas redes – e mesmo que vençam na justiça, seguem acusados e ostracizados porque, claro, a justiça não é um campo legítimo, apenas o Tribunal da Santa Lacração. 

Isso cria um medo constante de que você pode ser acusado, até por pessoas que nunca viu na vida, porque nesse tribunal a verdade não importa, ela sequer está presente. O que importa é se a acusação foi feita por alguém que seja considerado parte de um grupo minoritário, logo, marginalizado, oprimido. Eu já vi casos de pessoas sendo acusadas no Twitter de algum comportamento criticável ou condenável por parte desses grupos e que, no fim, nem era a pessoa correta ou na verdade foi mal interpretada. Não importa, ao menos uma série de xingamentos e denúncias para que a conta seja suspensa serão feitas. 

E um ponto importante sobre cancelamento é que é verdade que muita gente dá a volta por cima, mas isso não significa que não exista cultura de cancelamento, apenas que não é preciso que a vida da pessoa seja destruída de forma definitiva, e sim que um grupo efetivamente se organize para TENTAR destruir a vida dessa pessoa. O sucesso ou não independe. O ato de cancelar prescinde do sucesso do cancelamento efetivo. 

Cancelamento é coisa de fascista?

Se a gente for tomar a ciência política como base, não, mas na prática a teoria é outra. Acho que é um termo que serve como propaganda e para reforçar um ponto. Existe a coisa do grupo coeso, organizado, com um objetivo comum (de cancelar), autoritário e que pretende impor uma versão de um Estado policial ou totalitário, mas o "engraçado" é que o lacrador, o cancelador, é antes de tudo de esquerda. Ou seja, de certa forma tem paralelos com o fascismo, mas é um método adotado pela esquerda. Não é que a direita também não tente cancelar, também não tenha suas regras de linguagem e comportamento, mas o fato é que hoje – especialmente no mainstream, na mídia, na academia – a esquerda é quem dita as ondas do cancelamento.

Militância se tornou sinônimo de intolerância, segregação e autoritarismo, prejudicando lutas sociais importantes. Como escapar desta armadilha?

Retomar a militância de volta das mãos dos radicais. Buscar criar pontes e diálogo entre diferentes setores sem cancelamento, intimidação e acima de tudo sem medo dos lacradores. Isolar esses radicais, ridicularizá-los (como foi o caso com Karol Conká no BBB, por exemplo). Enfim, não dar espaço para suas loucuras. Na academia é preciso também elevar a qualidade do peer review, é preciso resgatar a ciência e a pesquisa séria que cedeu lugar para autoetnografias sobre nada e pregações ideológicas que não são científicas – vide louvação da obesidade ou outros absurdos à revelia da biologia e de outras ciências. 

Acima de tudo é preciso diálogo e compreensão, estar aberto a ouvir, aprender e permitir a existência de espaço para discordâncias. E isso só virá quando aqueles que defendem pautas progressistas começarem a isolar os fanáticos e intolerantes. 

Até que ponto o conceito de "representatividade" está matando a atuação.

Por enquanto a situação ainda não é tão ruim, mas sem dúvida existe espaço para que o cinema e até a literatura sejam enormemente prejudicadas. Peças canceladas, livros cancelados, atores sendo perseguidos por interpretar papéis… Vide o caso da peça Hedwig and the Angry Inch (que, aliás, é meu filme favorito) que foi cancelada na Austrália porque ativistas (sic) se revoltaram pelo fato do papel principal, Hedwig, ser interpretado por um ator cis, ou seja, que não é trans. O detalhe é que os autores da obra, assim como o autor que interpretou Hedwig no cinema (além de ter dirigido a obra e de ser o co-autor) também é um homem cis – e o próprio personagem não é necessariamente trans, mas algo "in between" e muito mais complexo do que consegue entender a militância.

Ou seja, temos exemplos hoje de tentativas de cancelamento (vale lembrar os radicais contra Woody Allen, JK Rowling, etc), alguns casos de sucesso nas empreitadas, mas a situação pode piorar muito caso atores, diretores, produtores, editores, enfim, todos aqueles envolvidos com a arte se curvarem aos fanáticos identitários.  

E veja que eu não descarto ou desprezo o conceito de representatividade, mas ele não tem lugar na arte (ao menos não sempre). Não faz muito sentido quando falamos de interpretação. Sem falar que representatividade é, em si, um significante vazio quando não vem acompanhado de qualidade, propósito. De que adianta você encher um parlamento de mulheres que se opõe a diversos direitos que são considerados básicos pelas feministas? Será que as feministas ficarão satisfeitas e considerarão que esse parlamento realmente é representativo?

Representatividade, junto com uma série de conceitos tais como "lugar de fala" ou "protagonismo", são conceitos que não podem ser desprezados, mas tampouco podem ser tomados como absolutos. 

Lugar de fala, por exemplo, é apenas uma forma de você entender quem está falando e de onde vem essa pessoa ou um determinado discurso. Em tese uma pessoa de uma determinada classe social tem mais propriedade para falar sobre sua própria condição do que alguém que não tenha passado pelo mesmo que essa pessoa. O problema é que este não é um conceito absoluto, ele não pode servir como cala boca. Não é porque você possui determinadas características ou tem determinada origem que sua percepção do mundo está correta. 

Lugar de fala é, ou deveria ser, apenas uma perspectiva privilegiada. E faz par com "vivência", como se as experiências individuais (tornadas coletivas) fossem sempre iguais e motivo para que todos abaixem a cabeça e digam "amém". Não é assim que a vida real funciona. 

Discursos, ações e pautas com base na identidade (mulher negra, LGBT, etc) são importantes, e vão além do uso feito delas por parte da esquerda (lacração, pauta vazia e que acaba em si mesma, etc). É preciso qualificar e politizar este debate? Como?

Com toda certeza. Em muitos aspectos é preciso retornar ao período pré-2013, em que movimentos sociais se comportavam como…. movimentos sociais. Quando ainda não tínhamos sido tomados de assalto por grupelhos e indivíduos que conseguem, ao gritar alto, calar qualquer discordância. É preciso perder o medo de desagradar os gritadores – e cabe à mídia e às instituições resistirem. 

É preciso perder o medo de debater temas controversos e de colocar na mesa discordâncias, dúvidas e posições políticas de forma clara. Enfim, reconquistar o espaço público com coerência, com argumentos, com vontade de criar algo novo e não destruir. Faz falta, no Brasil, sites como o Quillette e o Areo (tive o prazer de publicar em ambos), que por vezes são chamados até de nazistas, mas que meramente colocam debates e temas desconfortáveis para serem debatidos sem medo de cancelamentos ou de tentativas de intimidação por parte de fanáticos.

É preciso criar espaços onde seja possível dialogar e desafiar o status quo lacrador. 

Até que ponto, "Representatividade" é um conceito vazio sem que ele seja qualificado (tipo: "Vote em mim porque sou mulher, vote em mim porque sou negro, vote em mim porque sou mãe, vote em mim porque sou LGBT")?

Como comentei mais acima, representatividade e outros conceitos carecem de qualificação, de um qualificador. Não importa se você elege um político LGBT se ele, por exemplo, se opõe à pautas LGBT's. A mera presença não é suficiente para justificar a causa da "representatividade". Sem dúvida é importante que as pessoas se enxerguem em seus representantes, na mídia, etc. É compreensível (na verdade necessário) que pessoas negras, LGBT's, indígenas e etc se vejam representados, que sintam-se representados e tenham modelos, exemplos. O problema é que o conceito é usado de forma completamente aleatória. 

Será que o Sérgio Camargo é um modelo e um exemplo de representatividade negra? 

Pois é. Eu pessoalmente fujo de qualquer político que espera que eu vote nele com base em características físicas, fenotípicas, orientação sexual… Se suas pautas se relacionarem a essas características, aí sim há espaço para pensar e desenvolver algo interessante. 

Não é só a esquerda que adota esse tipo de discurso vazio, a direita também aprendeu a usar identitarismo vazio como forma de atrair votos?

Desde sempre. Votar em militar, votar em "defensor da família", votar em nome de deus, no pastor, no apóstolo, bispo, profeta…Identitarismo sempre esteve presente. O problema para a esquerda hoje é que ele substituiu a luta por pautas sérias, que foram esvaziadas e transformadas em um pastiche. Você não vota em A ou B porque ele(a) tem pautas interessantes em relação à questão LGBT ou negra, você vota porque essa pessoa É negra, É LGBT – mesmo que suas propostas sejam risíveis, não façam sentido ou no fundo sejam apenas uma forma de chantagear e conseguir voto. Oras, se você não votar você é racista, machista, homofóbico… 

É o mesmo que a direita sempre fez: se você não votar em A ou B você não defende a família, defende bandido, não se preocupa com deus… A esquerda passou por um processo de imbecilização que a colocou lado a lado com a direita mais torpe. O problema é que essa esquerda tem espaço amplo na mídia, no entretenimento, então consegue impor suas pautas vazias com mais facilidade sobre um determinado grupo (ou, eu até diria, uma determinada classe) enquanto se fecha completamente ao diálogo com o resto da população e com o que eu gosto de chamar de mundo real.

As pautas identitárias fazem sucesso no Twitter, em sites descolados, em shows de artistas, mas não tem eco na realidade. E perde-se uma chance tremenda de, com toda tecnologia que temos, avançar pautas importantes. Mas no fim ficamos apenas no cancelamento (em geral da esquerda contra a esquerda que não é vista como esquerda o suficiente), nos fanfics, nas denúncias falsas, nas tentativas de criar novilingua e moldar o pensamento, os gostos e desejos das pessoas, ou melhor, de uma pequena classe com amplo acesso à internet, que está na academia e que consome esse conteúdo.

Voltando ao ponto central da questão, a eleição de Bolsonaro e de muitos políticos do PSL (e digo "políticos" para evitar um processo pelo que realmente deveria chamá-los) mostra como a pauta identitária pode ser usada pela direita (e sempre foi). Não votar neles é apoiar o PT, o comunismo, a ideologia de gênero, a destruição da família, enfim… Estamos, como coloca o Pablo Ortellado, em meio a uma imensa guerra cultural. 

O problema, como vimos na eleição, é que a esquerda pode ter a academia e amplos setores da mídia, mas a direita tem o povo. 

Gênero, raça, orientação sexual, posicionamento político livra alguém de ser desprezível?

Jamais. O caráter da pessoa não está atrelado a nada disso. Existem pessoas que preencherem todos os requisitos da esquerda lacradora para ser a melhor das pessoas e, no fim, não passa(m) de ser(es) desprezíveis. E vice-versa, existem liberais com pensamento muito mais aberto e progressista que muito identitário que passa o dia exigindo a morte de liberais no Twitter, porque estes seriam a encarnação do mal e a razão pela qual Bolsonaro foi eleito (quando tivemos até lideranças do PT defendendo Bolsonaro em busca de um "segundo turno ideal").

O problema é que para certos setores da esquerda, notadamente os identitários, uma mera discordância é suficiente para te colocar no hall dos genocidas sem direito ao retorno. Ser liberal, não votar no Lula, etc. 

Qual a diferença entre a defesa feita pela esquerda entre os anos 60-2000 e as pautas ligadas à minorias e a defesa do identitarismo?

A esquerda passou por grandes mudanças. A esquerda da época da ditadura e posterior, especialmente aquela marxista, sempre foi a de que racismo, machismo e homofobia, se existiam, seriam resolvidos após a revolução. Daí nasce uma outra esquerda que está efetivamente preocupada com mudanças sociais – mas detalhe, não apenas a esquerda, como também muitos liberais – que começou a disputar espaços, a liderar movimentos sociais, a organizar pautas, a se organizar politicamente.

Na virada dos anos 2010, particularmente de 2013 em diante, começamos um processo de importação de toda e qualquer ideologia vinda dos EUA – seja na questão do racismo, do feminismo, etc – sem qualquer tradução, e os movimentos sociais começaram a se tornar meras ferramentas de reprodução de "grievances" de uma ala jovem incapaz de enxergar e lidar com a realidade e que quer que o mundo se molde a eles na marra – o resto tem que ser censurado, cancelado, eliminado. 

Identidade não é o mesmo que identitarismo, é importante deixar claro. Movimentos sociais sempre operaram com base na ideia de identidade – negros, mulheres, LGBT's, deficientes físicos, etc -, mas hoje operam na base do "se você não concorda 100% comigo, você é inimigo", e a construção da identidade ou das identidades das pessoas deixou de ser um processo para ser uma linha reta. Ironicamente, identitários odeiam estereótipos, mas são exatamente um poço de estereótipos reforçados a todo momento. 

A ideia de classe foi deixada em segundo plano por uma luta identitária fratricida em que não se luta pelo reconhecimento da especificidade de grupos, mas do cancelamento, censura, apagamento de pessoas e grupos entendidos como "opressores" na base do "estou ofendido". Neste sentido, a opressão não é econômica, ela é identitária. "Um negro rico é, na visão desse pessoal, muito mais oprimido que um branco pobre", você disse certa vez. É uma retórica autofágica?

É uma retórica acima de tudo burra porque é primitiva. Passa pela ideia de solidariedade com base em identidade que simplesmente não existe. Como se, por exemplo, se você criar uma elite negra, essa elite vai automaticamente ajudar os demais negros a entrarem para a elite – observe os EUA e você verá que não é assim que a banda toca.

Eu nem concordo 100% com a tese marxista de que tudo é classe, tudo é uma relação entre opressores e oprimidos, mas sem dúvida é uma lógica que funciona muito mais (a de classe) que uma suposta solidariedade universal com base em identitarismo. 

Um negro rico sofre mais que um pobre? Depende. Pode sofrer racismo, mas não vai sofrer das mazelas econômicas. Ele pode ser xingado na rua, mas não vai morrer de fome caso perca o (sub)emprego. Ou seja, essa ideia de que a sua identidade (sua característica fenotípica, etc) defina seu lugar na sociedade e ponto não faz qualquer sentido prático. 

Já a ideia de "estou ofendido" opera pela lógica (sic) de que qualquer opinião contrária a sua é, em si, uma ofensa. E isso vale para livros, cinema ou para um debate entre iguais. Porque sua opinião bate de frente com o que alguém enxerga como sua identidade. E isso pode se manifestar em um branco cantando hip hop, em um asiático usando uma camisa de oncinha, etc. Coisas absolutamente insignificantes, mas que, como nos exemplos acima, são considerados ofensa à própria identidade do indivíduo (no caso, negro). 

E aqui entramos na questão da "apropriação cultural", que talvez seja o conceito mais patético que os identitários adotaram. Não pelo conceito em si, mas seu uso – como se culturas fossem estáticas, nunca tivessem contato ou que toda "cultura negra" fosse pura, enquanto as demais estariam se apropriando, logo, roubando os negros. 

Os 'stalinistas' adotaram o identitarismo de ocasião como bandeira. Defendem Gulag, extermínio, brutalidade, se opõem a quaisquer luta por democracia (vide Hong Kong ou Belarus) mas se são criticados apelam as pautas identitárias para silenciar as críticas: "racista, homofóbico etc. O identitarismo se tornou a arma dos espertos para impedir críticas, reservar vagas e ganhar espaço na marra?

Sem dúvida. Como comentei antes, os comunistas acreditavam que a revolução resolveria questões "burguesas", "menores" como machismo e homofobia. Mas como identitarismo hoje vende, os stalinistas millennials resolveram adotar o discurso para crescer – e tem tido algum sucesso. 

Na verdade isso mostra o completo fracasso da esquerda em conter, isolar e eliminar o stalinismo de suas fileiras – uma corrupção ideológica perigosa – que, como parasita, se apropriou daquilo que a "nova" esquerda tem de pior para seguir se reproduzindo, que é o identitarismo. Eu costumo chamar esses stalinistas identitários de Stalinnials, como forma de brincar com o termo "millennial", a geração que mais fortemente abraçou o identitarismo. 

Mas na verdade esses stalinnials adotam o identitarismo apenas como discurso, mas encontraram campo fértil para pregar a eliminação dos "adversários". Existem muitas semelhanças entre identitários e stalinistas, em particular na questão do cancelamento. É um casamento de ocasião que funciona. Se você aponta uma figura que defende gulag, genocídio, qualquer ditador que considere de esquerda, mas essa pessoa é negra, toda crítica que você fizer será encarada como racismo.

O identitarismo é simplesmente o escudo perfeito para o canalha. 

Parte da esquerda professa ou defende uma suposta superioridade moral. A ideia de que ser de esquerda te coloca num patamar moral acima dos demais de que está sempre à frente de seu tempo. O que parece vanguarda pode ser apenas reprodução de modelos ultrapassados ou autoritários?

Não creio que isso seja uma característica exclusiva da esquerda, mas talvez seja a mais em voga hoje em dia. Todo grupo político tem suas bases morais e se considera correto – no máximo mais correto em sua defesa de suas bandeiras. E isso, claro, pode levar a autoritarismo. Mas de qualquer lado. Bolsonaristas tem um discurso moral ou mesmo moralista, creem que defendem a verdade, que seus valores são os que devem ser impostos à sociedade. A esquerda identitária pensa o mesmo, pese ter valores diferentes e mesmo os liberais, que muitas vezes gostam de se colocar acima, tem seus valores e muitos buscam impô-los – não foram poucos os que apoiaram Bolsonaro. 


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Uma resposta para “Identitarismo, lacração, justiceiros sociais e cultura Woke: como estas práticas estão desvirtuando o debate racional da esquerda”

  1. fernando carvalho disse:

    Comunismo é uma palavra polissêmica, possui vários sentidos e significados. O anarquismo é primo do comunismo. Enquanto o anarquismo se define em relação ao poder, o comunismo se define em relação à propriedade privada. E o poder praticamente depende da propriedade privada. Seria inconcebível um Estado numa sociedade de povos caçadores e coletores ou de índios como os brasileiros, por exemplo. Um índio não rouba a flecha do outro, não há necessidade de um Código Penal. Foi o anarquista Graco Babeuff que popularizou a célebre fórmula comunista que Karl Marx reproduziu no seu Programa de Gotha: “De cada um, segundo sua capacidade; a cada um, segundo suas necessidades”. E essa ideia vem de mais longe, está nos Atos dos Apóstolos: “Se distribua a qualquer um à medida de sua necessidade” (Atos 4:32-35). O cristianismo primitivo era comunista.
    Do século XX em diante a palavra ficou associada ao regime econômico que vigorou na União Soviética e nos regimes comunistas em todo o mundo. Tal regime interessava ao capital internacional na medida em que o “socialismo realmente existente”, por ser oriundo de revoluções armadas, resultou em sociedades prejudicadas pela falta de democracia. Gorbachev tentou democratizar o comunismo, mas fracassou. Diante dessa realidade a burguesia empunhava a bandeira da democracia no chamado mundo livre. Acontece que desde o começo do século XX, por causa do avanço do comunismo: na Alemanha havia o movimento espartaquista de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. E justamente na Alemanha floresceu o movimento que caracteriza o capitalismo quando teme perder o poder. Me refiro ao nazismo que é a versão alemã do fascismo. Se o nazismo fosse apenas uma proposta de regime caracterizado pelo antibolchevismo, a história teria seguido seu rumo natural e a Segunda Guerra Mundial teria ocorrido tendo por um lado o nazifascismo aliado às potências capitalistas e do outro a União Soviética. O socialismo realmente existente teria sido afogado em sangue. Mas por ironia da história o doidinho de cabelo na testa e bigode que parece mosca começou a fritar os judeus. Ele não sabia que a alma do capitalismo é judaica. E o impensável aconteceu, o capitalismo se aliou ao comunismo contra o Eixo nazifascista. A guerra ainda não havia terminado quando os americanos jogaram duas bombas atômicas sobre o Japão. Historiadores viram nesse fato o começo da guerra fria, um recado dos americanos aos soviéticos que ainda não tinham sua bomba atômica. Com a guerra fria a história voltou ao seu leito normal com o mundo dividido em capitalismo versus comunismo. O capitalismo é um regime muito versátil e já explorou o trabalho escravo dos negros africanos por quase quatro séculos. Durante o século XX teve que conviver com o proletariado já dotado de consciência de classe. A simples existência da União Soviética obrigava o capitalismo a dançar conforme a música e na Europa foi criada a socialdemocracia dos países nórdicos, o “capitalismo com rosto humano”. Mas o curto século XX assistiu a União Soviética fraquejar na guerra fria. Enquanto isso, o capitalismo botou as mangas de fora com Margareth Thatcher primeiro e Reagan depois. O neoliberalismo ganhou força. E o muro de Berlim foi derrubado. Francis Fukuyama chegou a decretar o fim da história com a vitória final do capitalismo e do liberalismo com o que o mundo teria que se conformar.
    Na realidade o neoliberalismo continua longe de resolver os problemas que sempre atormentaram a raça humana: a desigualdade, a poluição, o racismo, o machismo,etc.
    E a tecnologia da informação democratizou em nível internacional a cultura. O mundo está internacionalizado. Uma ideia em pouco tempo pode viralizar e mobilizar milhões de pessoas num espaço de tempo reduzido. Isso torna possível se pensar numa volta da democracia direta como foi na Grécia Antiga. Um cidadão pode votar em casa usando seu celular. O parlamentar característico da democracia representativa está perdendo o sentido. Por outro lado, o capitalismo que sempre agitou a bandeira da democracia e do liberalismo, na verdade é incompatível com democracia direta. E o capitalismo já usou todos os expedientes possíveis, já foi liberal, neoliberal e socialdemocrata, já usou o New Deal , o Keinesianismo e líderes como Margareth Tatcher e Ronald Reagan. Como vimos o capitalismo quando se sente ameaçado apela para o fascismo. E diante de uma humanidade de oito bilhões de pessoas com todo o tipo de necessidade o capitalismo é impotente para atender essa demanda. E em todo o mundo se movimenta na direção do populismo, do autoritarismo, do neofascismo. Donald Trump, Viktor Orban e Jair Bolsonaro são os homens com os quais conta o capitalismo do século XXI. E o povo de todo o mundo conta com a democracia. E a consolidação e aperfeiçoamento da democracia é o caminho que resta. Hoje quem se entende como sendo de esquerda, quem é socialista, anarquista ou comunista se resume em ser democrata. A democracia quanto mais democrática ela for mais avançará na direção do socialismo, do comunismo e do anarquismo.

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