26/04/2024 - Edição 540

Brasil

Da morte de Marielle a um monstro como Dr.Jairinho, o submundo das milícias

Publicado em 15/04/2021 12:00 -

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Como foi possível a sociedade carioca produzir um monstro com os requintes de crueldade do médico e vereador Jairo Souza Santos Junior (Solidariedade), o agora tristemente famoso Dr. Jairinho, acusado pela polícia de torturar até a morte o enteado Henry Borel, de 4 anos, sob os olhares cúmplices da mãe, a professora Monique Medeiros da Costa e Silva?

É o mesmo caldo de cultura do submundo das milícias, com suas ramificações na polícia, na política e no judiciário, que assegura a impunidade aos mandantes da morte da vereadora Marielle Franco (PSOL), executada dentro do carro com três tiros na cabeça e no pescoço, ao lado do seu motorista Anderson Gomes.

Em março, o crime completou dois anos sem solução. Até agora, só os dois executores, um policial militar reformado e um ex-militar, estão presos. Quem mandou matar continua solto. A motivação para o crime ainda é desconhecida.

Marielle era uma vereadora combativa, que defendia os direitos humanos e denunciava a violência doméstica contra as mulheres e a das polícias contra inocentes, e combatia a intervenção militar no Rio de Janeiro, comandada na época pelo general Braga Netto, hoje ministro da Defesa.

Filho de um coronel aposentado da PM que se elegeu deputado estadual, Dr. Jairinho faz parte de um poder paralelo no Rio, que confunde imunidade parlamentar com impunidade para arrecadar "rachadinhas" dos funcionários de gabinete, ameaçar, intimidar, agredir e matar desafetos. Nem crianças escapam, vê-se agora.

Na tentativa de acobertar o crime, o padrasto de Henry ligou para várias autoridades, até para o governador do Estado, mas o delegado Henrique Damasceno, após um mês de investigações, em que ouviu 18 testemunhas, encontrou "provas contundentes que revelam fundadas razões de crime hediondo", e não de um acidente doméstico, como Dr. Jairinho tentou alegar.

Marielle e Henry são vítimas da impunidade do crime organizado, que controla há anos vastas áreas do Rio de Janeiro, em que a população é refém da violência e da extorsão, sem que a polícia jamais alcance os cabeças nos podres poderes constituídos em todos os níveis.

O caso Henry pode ser considerado um ponto fora da curva pela rapidez com o que o delegado Damasceno esclareceu o crime, com profusão de testemunhos e provas periciais, que atestaram a violência contra o menino, vítima de lesões na cabeça, no pulmão e no fígado, resultantes da prática de tortura.

Dr. Jairinho e a mãe do menino agora estão em prisão provisória por 30 dias e espera-se que a Justiça também cumpra o seu papel, não cedendo a chicanas de caros advogados para libertar o casal assassino.

Para quem tem filhos e netos, é impossível ficar indiferente ao que está acontecendo no Rio de Janeiro, desde a morte de Marielle, numa escalada de violência e corrupção nunca vista antes.

A política da morte não pode se sobrepor ao direito à vida.

Em uma década, 2 mil mortes

A morte de Henry Borel por espancamento não é um caso isolado de violência doméstica. Segundo levantamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), ao menos 2.083 crianças até essa idade foram mortas por agressão no Brasil, de janeiro de 2010 a agosto de 2020. Para cada caso de óbito registrado dessa forma, especialistas estimam haver outros 20 subnotificados. 

Os dados de mortalidade de 2020 ainda são preliminares e não foram consolidados até o fim do ano. Mas os especialistas acreditam que o isolamento social adotado na pandemia expôs as crianças a mais violência doméstica. Em consequência, dizem, aumentaram os casos letais. O problema deve se repetir neste ano. Segundo a SBP, os autores de 80% das agressões são os pais ou responsáveis, e elas acontecem dentro de casa.

“O caso do menino Henry não pode ser ignorado e deve ser apurado com todo o rigor que a lei exige”, defende a presidente da SBP, Luciana Rodrigues Silva. “Tal barbárie deve alertar, ainda, para a existência de outras crianças e famílias que vivem dramas semelhantes que não chegam à mídia.”

As agressões estão agrupadas no Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde, conforme a Classificação Internacional de Doenças (CID-10). Estão entre os motivos mais comuns de morte de menores no Brasil. Somadas aos acidentes, as agressões são a principal causa de morte de crianças e adolescentes de 1 a 19 anos.

Em 2019, foram 188 óbitos por agressão na faixa etária até 4 anos – o patamar ficou próximo a 200 nos anos anteriores. No ano passado, até agosto, foram registrados 71 casos, mas os dados são preliminares. 

O problema não é exclusivo do Brasil, mas global. Apareceu em levantamento da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 2016. O estudo estimou que em todo o mundo 1 bilhão de crianças e adolescentes tinham sofrido violência psicológica, física ou sexual no ano anterior à coleta dos dados.

As medidas de distanciamento social, incluindo o fechamento de escolas, foram adotadas por mais de 170 países e afetaram quase 80% de toda população estudantil mundial. Fizeram a maior parte das crianças permanecer praticamente todo o tempo em suas casas. Sabe-se, por exemplo, que só em março de 2020 o Brasil apresentou aumento de 17% no número de ligações notificando a violência contra mulheres. “De maneira similar, trabalhos nacionais e internacionais destacam que, diante de um cenário de risco e vulnerabilidade social, o isolamento domiciliar expõe crianças e adolescentes a maiores conflitos e tensões e à piora da violência intrafamiliar, sem que tenham condições de denunciar esta violência ou de ela ser percebida em outros locais que a criança estaria frequentando, como a escola”, explica o presidente do Departamento Científico de Segurança da SBP, Marco Gama.

Até agosto de 2020, dados preliminares apontam 4.142 mortes de crianças e adolescentes de 1 a 19 anos – menos da metade da média dos anos anteriores. “Mas sabemos que o número de casos aumentou muito porque tivemos que pedir várias intervenções da Justiça para proteger crianças ao longo de 2020”, diz a pediatra Luci Pfeiffer, do Departamento Científico de Segurança da SBP, coordenadora do programa Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Dedica).

Desde o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, a tendência tem sido de aumento dos registros de violência contra crianças (com exceção do ano passado). “A violência sempre existiu, mas era muito encoberta”, explica Luci Pfeiffer. “As notificações só começaram a partir do ECA. Até então não se sabia nem identificar os casos.”

Ciclo de violência

Segundo especialistas, pais agressores, em geral, foram vítimas de agressão na infância. “A violência contra as crianças acontece em todas as classes sociais, em todas as culturas”, afirma Luci. “Não depende de escolaridade, religião ou etnia, é uma doença que vai passando de pai para filho. É preciso interromper essa cascata. Existe tratamento para essas famílias.”

O caso dos supostos agressores de Henry – a mãe do menino, Monique Medeiros, e seu namorado, o vereador Jairo Santos Júnior, o Dr. Jairinho – é visto como diferente. “Esse perfil é de pessoas extremamente covardes e cruéis, que sentem prazer na agressão”, diz Luci.

As agressões que resultam em morte da vítima raramente são o primeiro episódio de violência. Em geral, os maus-tratos se agravam com o tempo. “Quando uma criança é agredida nesse nível do Henry, todos à volta costumam saber”, afirma a especialista. “Não denunciam por conivência ou indiferença.”

Um dos aspectos mais chocantes do crime é que Henry teria falado sobre as agressões para a babá e a própria mãe. A avó materna e uma tia também teriam sabido da violência.

“É como se todas as esferas de proteção não funcionassem”, afirma a juíza Andrea Pachá, da 4.ª Vara de Órfãos e Sucessões do Tribunal de Justiça do Rio. “Quando a tragédia acontece e a criança aparece morta, fica tudo tão óbvio: como ninguém deu atenção às reclamações dessa criança? Vivemos numa sociedade em que os adultos não se sentem responsáveis pelas crianças. É dever do Estado, das famílias, das comunidades, de todo mundo, cuidar das crianças”, afirma ela. “Quando percebemos que o pedido de socorro circulou por essas esferas e não foi ouvido, me pergunto que sociedade é essa. Se ele não tivesse morrido, a violência ia continuar. É uma normalização da violência, como se fosse mais conveniente não acreditar, se omitir.”

Coordenador da Infância e Juventude da Defensoria do Rio, Rodrigo Pacheco concorda. “Todos têm de estar imbuídos desse espírito de proteger as crianças e, sempre que tiver notícia de alguma violência, ouvir e acreditar nas crianças”, diz. “Se alguém tivesse tentado intervir antes, a violência maior não teria acontecido’, completa ele. “Ninguém precisa sentir dor para aprender”, diz Luci.

Para entender – Lei da Palmada criou polêmica

A Lei 13.010, a Lei da Palmada, entrou em vigor em 2014 e estabelece que “crianças e adolescentes têm o direito de serem educados e cuidados sem uso de castigos físicos ou tratamento cruel ou degradante”. Ela causou polêmica porque grupos mais conservadores a viam como uma interferência do Estado na família. O presidente Jair Bolsonaro já manifestou seu apoio a castigos para crianças. “Em casa, não era bronca não, o ‘pau cantava’”, disse durante vídeo nas redes sociais em dezembro. “Saudade daquela época em que você tinha muito mais deveres que direitos.”

Como ajudar

– Sinais físicos

Hematomas frequentes e dores pelo corpo podem indicar agressão. Outros sinais de estresse e ansiedade devem ser observados, como náuseas, tonturas, vômito, taquicardia. Vale atenção a mudanças de apetite ou de sono.

– Sinais emocionais

Se uma criança se recusa a ver certa pessoa, dá as costas para ela, desvia o olhar, é preciso estar atento. O que é interpretado como birra pode ser medo. Agressividade em excesso com colegas é outro sinal. Problemas de autoestima devem ser levados a sério: podem indicar a internalização de impressões negativas passadas por adultos. 

– Sinais cognitivos

Problemas de aprendizado e de rendimento escolar são frequentes em crianças agredidas. 

– Escuta e denúncia

Segundo os especialistas, é preciso ouvir as crianças e levar a sério o que elas dizem. Qualquer problema ou mesmo suspeita deve ser denunciado à polícia, ao Ministério Público ou a autoridades competentes. Denúncias podem ser feitas até mesmo de forma anônima, pelo Disque 100.


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