25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Por 9 a 2, STF opta pela Constituição em vez da bíblia na pandemia

Publicado em 09/04/2021 12:00 -

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Uma decisão monocrática processualmente controversa e juridicamente questionável bagunçou o coreto no Supremo Tribunal Federal (STF), monopolizando a pauta de julgamentos da semana e criando embates entre ministros

A liminar de Kassio Nunes Marques impedia quaisquer restrições a locais de culto, independentemente da situação da pandemia de covid-19, contrariando decisão prévia do próprio tribunal que dava este poder a prefeitos e governadores.

O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, deu decisão em sentido contrário em outra ação, criando uma quase inédita situação de duas decisões conflitantes e em vigência oriundas da mesma corte.

O tema foi resolvido. O plenário do STF decidiu (mais uma vez), e pelo placar de 9 votos a 2, que é possível a gestores locais manterem restrições ao funcionamento de igrejas, templos e outros locais de cultos durante as fases mais agudas da pandemia.

O julgamento pode ser analisado em três pontos: 1) a proporcionalidade das restrições à liberdade religiosa; 2) as exigências de saúde pública durante uma pandemia fora de controle; 3) a anunciação dos setores conservadores em disputa no Supremo Tribunal Federal.

A maioria dos ministros corroborou, mais uma vez, que nenhum direito fundamental é absoluto. Por mais que tenha havido a tentativa de alçar a liberdade religiosa a um status privilegiado frente aos demais direitos, o tribunal reconheceu que a liberdade religiosa – que inclui a liberdade de não crer em nenhum elemento místico – se comporta como os demais direitos, permitindo, portanto, restrições proporcionais.

O direito à liberdade religiosa não é um direito fundamental maior do que os outros e não pode sê-lo, na medida em que pessoas que não creem e não exercem qualquer prática religiosa não podem ser consideradas pessoas com menor dignidade. As crenças religiosas são assuntos privados, e nessa dimensão merecem respeito, mas não são razões suficientes para mobilizar ou orientar a elaboração de políticas públicas.

Por isso, o STF entendeu que a existência de uma pandemia mortal e absolutamente fora de controle no país justifica a restrição proporcional ao exercício da liberdade religiosa em cultos coletivos, em locais fechados e com aglomeração, cientificamente reconhecidos como propagadores do vírus.

Aqui, a saúde pública é razão jurídica suficiente para restringir temporariamente a fruição da liberdade religiosa em igrejas e templos. Afinal, durante uma pandemia, uma série de direitos foram acomodados para garantir a sobrevivência da espécie humana.

Não é lícito ao Estado, por qualquer de um dos seus Poderes, seja o Executivo ou Legislativo ou Judiciário, adotar medidas irracionais para combater a pandemia de covid-19. Optar por medidas que contrariam evidências científicas é cometer erro crasso, implicando responsabilização pelos danos decorrentes da implementação de uma política negacionista.

Ou seja, se as medidas sanitárias para combater a pandemia exigirem a restrição ao funcionamento de locais de culto, assim será feito, a partir de evidências científicas, de forma proporcional, pelos gestores locais, como tem reiteradamente decidido o STF.

Foi possível notar um desconforto dentre os ministros em revisitar decisões já tomadas para dizer o óbvio: o país ruma aos 400 mil mortos e nem o negacionismo, nem o direito à morte, têm amparo na Constituição Federal.

Da questão do uso da cloroquina à vacinação, do custeio federal de leitos de UTI ao endosso a medidas sanitárias, o Supremo tem afastado – com grande custo – a agenda negacionista de Bolsonaro.

Dessa vez, o negacionismo científico foi levado ao tribunal por setores conservadores religiosos que não disfarçaram suas intenções de capturar a razão pública a partir da lente religiosa. Acostumados aos bastidores, esses setores religiosos ocuparam a tribuna e usaram trechos da bíblia como argumento – e até como ameaça. A Constituição, que é bom, foi quase esquecida.

Para esses defensores da liberdade religiosa absoluta, a religião substitui o Estado. É o templo e a autoridade religiosa que decidirão aglomerar ou não fieis, independentemente das consequências sanitárias.

A sustentação-pregação de advogados particulares – e públicos, pasmem – sensibilizou o ministro Kassio Nunes Marques, que em seu voto chegou a delegar às religiões a missão de assistência social e promoção de saúde mental, como se essas não fossem direitos constitucionais garantidos através de políticas públicas.

O voto dele foi comemorado pelo presidente da República em redes sociais.

Felizmente, Nunes Marques ficou vencido, acompanhado apenas de Dias Toffoli. Em breve, terão companhia de outro ministro terrivelmente indicado por Jair Bolsonaro.

Excesso de morte parece ter anestesiado o país

A pandemia fez surgir no Brasil um sentimento novo. É uma espécie de esperança do caos. O debate que levou a Suprema Corte brasileira a desperdiçar duas sessões vespertinas para decidir que estados e municípios podem decretar o fechamento temporário de igrejas para inibir a propagação do coronavírus é mais uma evidência do apreço que o Brasil desenvolveu pela tragédia. O avanço da pandemia revela que a estima pelo pior vem sendo plenamente correspondida.

O país está a caminho de contabilizar 400 mil mortos por covid. Estima-se que até junho o número de cadáveres pode chegar a 500 mil. Há mais braços à espera de imunização do que doses de vacina. Há mais doentes graves do que leitos disponíveis em UTIs. Quem vence o suplício da fila arrisca-se a morrer sem sedativos e oxigênio. Nesse cenário fúnebre, cristalizou-se no planeta o diagnóstico médico-científico segundo o qual é necessário conter aglomerações de qualquer natureza —religiosas, recreativas, festivas, esportivas…

Embora muitos tentem virar a lógica de cabeça para baixo, não há restrição à liberdade religiosa, um direito inalienável, consagrado na constituição. O que há é a necessidade eventual de restringir temporariamente a realização de cultos e missas presenciais, sem prejuízo das celebrações por videoconferência. No caso de São Paulo, tratado especificamente no julgamento do Supremo, a restrição se estende a bares, restaurantes, shoppings, galerias…

O atraso no uso de máscaras, na defesa do distanciamento social e na aquisição de vacinas foi um erro consciente. Mas ainda há tempo para deter a anestesia coletiva que leva à esperança do caos, à opção preferencial pelo abismo, à torcida secreta pelo pior. No momento, a própria ideia de solução tornou-se subversiva. Quando a morte deixa de ser uma tragédia para virar uma estatística, o ser humano precisa de pouca coisa: só um do outro. Nessa hora, quem defende aglomeração não desmerece a ciência. Desrespeita o sentimento cristão mais sublime: o amor ao próximo.


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