19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Brasil não adere a ato de 60 democracias na ONU pela defesa das mulheres

Publicado em 12/03/2021 12:00 -

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O governo de Jair Bolsonaro não aderiu a uma declaração do Conselho de Direitos Humanos da ONU, e endossada por mais de 60 países, para marcar o dia internacional das mulheres e assumir compromissos no que se refere à saúde feminina.

O ato foi organizado por praticamente todas as principais democracias do mundo, incluindo Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Austrália, Israel e Japão, além dos países escandinavos.

Na América Latina, aderiram à declaração conjunta os governos da Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, México, Peru, Panamá e Uruguai. Ficaram de fora governos liderados por líderes ultraconservadores, como Polônia e Hungria, além de países com um histórico de denúncias de violações de direitos humanos, como Arábia Saudita, Egito, Rússia ou China.

O Itamaraty explicou que sua ausência na declaração conjunta ocorria por conta de referências aos direitos sexuais.

"Acerca da intervenção conjunta, de iniciativa de Finlândia e México, proferida hoje, 8/3, durante a 46ª sessão do Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher, o governo brasileiro, não obstante a elevada importância que atribui à promoção dos direitos humanos das mulheres – especialmente no atual quadro de agravamento das situações de vulnerabilidade -, encontrou elementos ambíguos no texto proposto", explicou o governo.

"O governo brasileiro salienta a importância do reconhecimento, na declaração, de pautas salutares em defesa da mulher, em especial por ocasião da referida data, como o reconhecimento do trabalho não remunerado e a necessidade de se combater a violência contra a mulher, em especial no período pandêmico. Entretanto, não apoia referências a termos e expressões ambíguas, tais como direitos sexuais e reprodutivos", indicou.

"O governo brasileiro tem buscado reforçar, no âmbito internacional, a importância da promoção da igualdade entre homens e mulheres e da implementação de políticas públicas para efetivar os direitos das mulheres, sobretudo aquelas em situação de maior vulnerabilidade", garantiu o Itamaraty.

Falando em nome do grupo de democracias, o governo do México afirmou que "um dos maiores desafios em matéria de direitos humanos é alcançar a igualdade substantiva de gênero". "Mulheres e meninas frequentemente enfrentam múltiplas e intersetoriais formas de discriminação e têm sido desproporcionalmente afetadas pela pandemia", alertou o grupo.

Um dos pontos principais se referia ao papel das mulheres durante a crise sanitária global. "As mulheres desempenham um papel fundamental na resposta à pandemia, fornecendo cuidados médicos essenciais e outros serviços, e mantendo as comunidades em movimento enquanto os bloqueios são aplicados", disseram.

"As mulheres representam 70% da força de trabalho do setor social e de saúde em todo o mundo. Embora elas tenham recebido principalmente reconhecimento simbólico, este reconhecimento também deve se refletir na redução da diferença salarial entre os sexos", defendem.

"Temos que garantir que os encargos adicionais que as mulheres e meninas carregam durante esta pandemia não resultem em maior exposição à violência e discriminação na vida pública e privada, e no aumento desproporcional dos cuidados não remunerados e da escolaridade domiciliar", apelaram os governos.

Saúde reprodutiva e defesa de movimento feminista

Um dos pontos mais delicados da declaração, porém, se referia ao acesso das mulheres a determinados direitos questionados por Damares Alves, a ministra da Família, Mulheres e Direitos Humanos.

"As mulheres e meninas têm enfrentado um retrocesso nos direitos humanos em geral e na saúde sexual e reprodutiva e direitos em particular", apontou a declaração conjunta dos governos. "Em meio à crise, os serviços de saúde sexual e reprodutiva continuam sendo essenciais e devem fazer parte dos planos nacionais que lidam com a pandemia", disseram.

Outro aspecto levantado pelo grupo foi o papel de "movimentos e organizações feministas" e sua luta para "permaneceram ativos e vocais, online e offline, desmantelando sistemas patriarcais e suas manifestações, tais como a violência e a discriminação baseada no gênero".

"Hoje saudamos e respeitamos todos os corajosos movimentos feministas, organizações e defensoras dos direitos humanos feministas em todo o mundo. Nós o vemos e estamos ao seu lado", conclamaram os governos.

Denúncias contra o Brasil

O grupo de democracias também usou a tribuna da ONU para defender que "a participação e liderança significativa das mulheres e meninas na resposta à pandemia". "Esta crise é uma oportunidade para abordar as desigualdades históricas e estruturais e as deficiências que continuam a reter as mulheres e meninas, e para reimaginar e transformar as sociedades", completaram os governos.

"O Conselho de Direitos Humanos deve ser um espaço onde todas as vozes feministas possam mobilizar ação e vontade política para alcançar a igualdade de gênero irreversível", defenderam.

Momentos depois, na mesma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, a tribuna foi ocupada por representantes da sociedade civil que denunciaram a situação das mulheres no Brasil.

Uma denúncia foi apresentada sobre a "violência sistemática contra mulheres que defendem direitos humanos, em especial as que ocupam cargos eletivos". A iniciativa foi conduzida pelas entidades Terra de Direitos, Instituto Marielle Franco, Justiça Global e Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos.

Por meio de vídeo, a defensora de direitos humanos e vereadora de Joinville (SC) Ana Lúcia Martins (PT) sublinhou as tentativas de silenciamento e desestímulo ao exercício de cargos públicos por mulheres defensoras de direitos humanos.

"O racismo e o machismo alimentam uma rotina diária de violência de vários tipos que enfrentamos antes, durante e depois das eleições. Quanto mais avançamos na conquista de espaços de defesa de direitos, a violência aumenta e se torna cada vez mais grave", afirmou Ana Lúcia.

Logo após ser eleita na última votação, Ana Lúcia – a primeira mulher negra eleita para o cargo – recebeu ameaças de caráter racista e contra a sua vida. Em uma das mensagens, uma pessoa afirmou: "Agora só falta a gente matar ela e entrar o suplente que é branco (sic)"

Mais conservadores, mais violência

Municípios brasileiros de eleitorado mais conservador tendem a adotar menos políticas públicas de combate à violência contra mulher que as demais cidades do país, aponta ampla pesquisa realizada por dois acadêmicos brasileiros que atuam em universidades europeias — Malu Gatto (professora da University College London) e Victor Araújo (pesquisador da Universidade de Zurich).

Segundo o estudo, eleitores conservadores costumam considerar menos urgentes e prioritárias medidas governamentais para reduzir a agressão contra mulheres, o que acaba tendo o efeito prático de limitar a adoção dessas ações onde esse segmento têm mais peso político.

Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram a aplicação da Lei Maria da Penha em todos os 5.570 municípios brasileiros, a partir de dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais de 2018 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Essa legislação, aprovada em 2006, prevê uma série de medidas a serem adotadas pelas prefeituras para aumentar a proteção às mulheres e a punição aos agressores, como centros de abrigo para as vítimas, serviços de saúde voltados para casos de agressão doméstica e sexual, delegacias e juizados especializadas em violência de gênero, entre outros. Sua implementação, porém, ainda é bastante desigual no país.

Com objetivo de identificar se há uma relação entre a adoção dessas políticas e o perfil dos eleitores, Gatto e Araújo cruzaram as informações do IBGE sobre aplicação da Lei Maria da Penha com um mapeamento ideológico do eleitorado em cada município brasileiro desenvolvido pelos pesquisadores Timothy J. Power (Universidade de Oxford, no Reino Unido) e Rodrigo Rodrigues-Silveira (Universidade de Salamanca, na Espanha).

Além disso, o estudo utilizou dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha sobre o posicionamento do brasileiro em vários temas, incluindo questões sobre violência de gênero, para identificar como o eleitor conservador vê a necessidade de políticas públicas nessa área.

No ano passado, 105 mil denúncias de violência contra a mulher foram registradas por meio de canais do governo federal como Ligue 180 (central de atendimento à mulher) e Disque 100 (direitos humanos), divulgou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) no domingo (07/03), véspera do Dia Internacional da Mulher, celebrado nesta segunda-feira (08/03).

O número representa doze denúncias recebidas por hora. Do total, 72% (75.753 denúncias) são referentes à violência doméstica e familiar contra a mulher

Políticas refletem preferência do eleitor

O artigo com as conclusões dos pesquisadores sobre o impacto do conservadorismo nas políticas de proteção à mulher foi aceito para publicação na revista científica Comparative Political Studies. Malu Gatto disse que pesquisa inova ao olhar para a influência do eleitorado na implementação dessas políticas.

Segundo a professora, diversos estudos apontam que o perfil ideológico de parlamentares tem pouca influência na aprovação de leis de proteção às mulheres — ou seja, políticos conservadores não são menos propensos que os progressistas a votar a favor dessas legislações.

Isso ocorre por ser um tema que gera pouca divergência entre os políticos, nota ela: "Assim como nenhum político diz que é a favor da corrupção, nenhum se apresenta publicamente contra a proteção da mulher. É um assunto em que existe consenso".

Por outro lado, ressalta a professora, a implementação de políticas públicas já é mais sensível às preferências ideológicas do eleitorado, já que os recursos públicos são limitados, exigindo que as autoridades definam prioridades.

"O político vai priorizar áreas que o seu eleitorado quer priorizar, e o eleitor conservador não prioriza tanto a violência contra a mulher ou não considera que a violência contra a mulher seja tão séria quanto o eleitor progressista. Isso repercute na maneira como os políticos locais respondem à priorização ou, no caso, à falta de priorização do eleitorado com relação a essas políticas", afirma Gatto.

Na avaliação dos autores, a pesquisa indica que o momento de avanço de governadores conservadores no mundo representa uma ameaça à segurança das mulheres.

Pesquisa fez amplo cruzamento de dados

Para identificar as preferências do eleitorado nos municípios brasileiros, os pesquisadores Timothy J. Power e Rodrigo Rodrigues-Silveira classificaram os partidos brasileiro numa escala gradativa entre direita e esquerda, a partir de questionários respondidos ao longo de anos por membros do Congresso Nacional. Depois, analisaram os votos recebidos em cada município por 2,275 milhões de candidatos de 42 partidos nas treze eleições realizadas de 1994 a 2018.

Usando esse mapeamento ideológico e as informações do IBGE sobre aplicação da Lei Maria da Penha, Malu Gatto e Victor Araújo conseguiram calcular o quanto o conservadorismo do eleitor influencia na adoção de políticas de combate à violência contra mulher.

Para fazer esse cálculo, os pesquisadores desenvolveram equações matemáticas (técnica conhecida como econometria) que permitiram também isolar outros fatores que poderiam influenciar na adoção dessas políticas, para assim evitar que a análise sobre o impacto do perfil ideológico do eleitorado pudesse estar contaminada por outros elementos.

Como resultado, o estudo encontrou que "um aumento de um ponto na escala do conservadorismo eleitoral (onde valores mais altos correspondem a preferências mais conservadoras) está associado a uma média de 0,45 a menos de instrumentos de política no nível municipal".

"Em outras palavras, eleitores mais conservadores tendem a adotar menos políticas para combater a violência contra a mulher", diz ainda o artigo.

Ao isolar outros fatores que poderiam influenciar o resultado da análise, o estudo testou variáveis como taxa de feminicídio (proporção de mulheres mortas por razões de gênero no município), número de mulheres eleitas na cidade, força do voto evangélico, qualificação da burocracia (quantidade de servidores com educação terciária), entre outras.

Os resultados foram diversos. Por exemplo, cidades com taxas mais altas de assassinatos de mulheres por questões de gênero não necessariamente são aqueles que mais adotam ações para conter essa violência. Mas prefeituras com um corpo de servidores mais qualificado tendem a ter mais políticas do tipo.

Ainda assim, quando os pesquisadores anularam na equação o impacto de outros fatores que também influenciam na implementação da Lei Maria da Penha, o resultado continuou apontando para uma correlação importante entre o perfil do eleitorado mais conservador e a menor adoção de políticas para conter a violência.

"Conservadores costumam ver violência doméstica como assunto privado"

Gatto e Araújo também testaram a hipótese de o eleitor conservador influenciar na menor adoção de políticas de proteção a mulheres não por ser contra essas ações, mas por defenderem um Estado pequeno.

Nesse sentido, eles também cruzaram dados do IBGE sobre políticas de emprego, renda, crédito e desenvolvimento rural e urbano com o mapeamento ideológico dos municípios. No entanto, os resultados indicaram que "o conservadorismo eleitoral não parece afetar a adoção de políticas em nenhuma dessas áreas", reforçando as conclusões sobre o impacto negativo nas políticas de proteção de mulheres.

"Em suma, a menor aceitação de instrumentos de política de combate à violência contra mulheres em municípios eleitoralmente conservadores parece, de fato, ser um produto das preferências dos eleitores nesta área política específica", diz o artigo.

Especialista em questões de gênero na política, Malu Gatto considera que o menor apoio do eleitorado conservador a essas políticas pode estar relacionado a forma como esse grupo vê conflitos familiares como uma questão privada, em que o Estado não deve interferir.

"O estudo não permite concluir o que leva o eleitor conservador a não priorizar essas políticas. A literatura (outros estudos sobre o tema) indica que pessoas conservadoras tendem a apoiar mais políticas de proteção à mulher que visam a reconciliação familiar e não tenham potencial de, alguma forma, acabar com aquela unidade familiar", analisa Gatto.

"A Lei Maria da Penha, de certa forma, deu um basta nisso. Antes dessa lei, a norma no Brasil era a reconciliação familiar: mais de 80% dos casos de violência doméstica, quando levados à Justiça, tinham como primeira audiência uma tentativa de reconciliação e (o caso) acabava ali", acrescenta.

Análise da preferência dos conservadores a partir do Datafolha

Após os resultados indicando que municípios com eleitores mais conservadores tendem a implementar menos a Lei Maria da Penha, o estudo teve ainda uma segunda etapa para investigar melhor se o eleitor conservador realmente vê menos necessidade de medidas de combate à violência de gênero.

Para isso, Gatto e Araújo utilizaram dados de uma pesquisa do Instituto Datafolha realizada em abril de 2019 que entrevistou 2.086 pessoas em 130 municípios sobre o posicionamento do brasileiro em vários temas, incluindo questões sobre violência de gênero.

Na análise, os pesquisadores usaram três perguntas para identificar os respondentes de perfil mais conservador.

Foram considerados nesse grupo, aqueles que se posicionaram contra o Brasil receber mais imigrantes da Venezuela e que apoiaram a ideia de que a sociedade está mais segura quando mais pessoas são encarceradas. Além disso, também foram considerados mais conservadores os que responderam não apoiar o feminismo.

Depois, os pesquisadores analisaram como esse grupo respondia a três questões sobre violência de gênero: "As leis existentes no Brasil são adequadas para proteger as mulheres? No último ano, a violência contra mulher cresceu no Brasil? A mídia exagera na cobertura de casos de violência?"

O resultado da análise indicou que os respondentes que estavam associados a posições conservadoras tendiam mais a considerar que as leis brasileiras já são suficientes para proteger as mulheres.

"Seguindo nossas expectativas, indivíduos que pontuam valores mais altos em nossa medida de conservadorismo têm maior probabilidade de concordar com a afirmação de que 'as leis existentes no Brasil são adequadas para proteger as mulheres'. Em outras palavras, os eleitores conservadores têm menos probabilidade do que outros de ver a necessidade de adoção de novas políticas para combater a violência contra mulher", diz o estudo.

Esse grupo também tendeu mais do que a média dos respondentes a considerar que a mídia exagera sobre tema.

"Além disso, nossos resultados indicam que embora os conservadores não sejam diferentes dos progressistas em sua avaliação sobre se a violência contra mulher aumentou, eles são consideravelmente mais propensos a acreditar que 'a mídia exagera em sua cobertura de casos de violência contra as mulheres'", continua o artigo.

Na avaliação de Gatto e Araújo, esses resultados são consistentes com outros estudos que apontam que "a identificação de algo como uma urgência é crucial para sua priorização na agenda de políticas".

Para os pesquisadores, a análise dos dados do Datafolha reforça as conclusões da primeira parte da pesquisa e sugere "que, de fato, a menor prevalência de instrumentos de combate à violência contra a mulher em municípios de eleitorado mais conservador é produto dos níveis mais baixos de apoio dos eleitores conservadores à necessidade dessas políticas".


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