23/04/2024 - Edição 540

Mundo

Vivendo o totalitarismo

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

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A his­to­ri­a­dora e an­tro­pó­loga Mi­riam Ce­laya é uma das ve­te­ranas do ce­nário blogger cu­bano. Seu blog, si­nE­VA­sión, está no ar há pouco mais de quatro anos e possui um dos con­teúdos mais ins­ti­gantes entre os diá­rios vir­tuais que com­põem o portal Des­de­cuba. Jun­ta­mente com Re­gina Coyula, Re­beca Monzó e Fer­nando Dá­maso, Mi­riam con­versou com a Se­mana On em uma tarde morna em Ha­vana.

 

Por Victor Barone

É comum entre se­tores da es­querda bra­si­leira se re­ferir aos blo­gueiros cu­banos como agentes da CIA, mer­ce­ná­rios e contra-re­vo­lu­ci­o­ná­rios. O que você diria a estas pes­soas?

Penso que estas pes­soas de­ve­riam co­nhecer de perto o nosso dia a dia para per­ceber que não somos pagos para es­crever nossos blogs. Even­tu­al­mente não temos o que comer em casa. A mai­oria de nós está no que seria a ­classe média cu­bana, que é algo muito pre­cário. Nossa única sa­tis­fação é a de poder ex­pressar nosso pen­sa­mento. A mim me pa­rece des­res­pei­toso o que esta gente diz. Amigos de Cuba, não queiram para nós o que não de­sejam para vocês.

A que você atribui esta opi­nião?

Muitos são alheios à re­a­li­dade. São de es­querda porque não so­freram a es­querda. Sim­pa­tizam com Cuba porque não vivem em Cuba e não tem as li­mi­ta­ções que temos aqui. Vivem com li­ber­dade para ex­pressar-se, com di­reito a lutar pelo go­verno que têm em seu país. Podem sair e falar o que qui­serem. Têm sa­lá­rios justos e em­pregos dignos e, se não os têm, podem fi­liar-se a um sin­di­cato e lutar por isso. Aqui não temos di­reito a nada disso.

Há os que vi­sitam Cuba e voltam ma­ra­vi­lhados…

Temos o Ins­ti­tuto Cu­bano de Ami­zade com os Povos que or­ga­niza vi­a­gens de so­li­da­ri­e­dade. Esta gente, quando faz a tour por Ha­vana vê uma ci­dade que os deixa ma­ra­vi­lhados, porque os levam a uma fazenda modelo, lhes mostram projetos especiais com crianças e no outro dia essa pessoa diz: “O que há? Em Cuba se pode fazer um transplante de coração gratuito!”. Mas é o mesmo país onde estou há dois meses sem tomar os comprimidos que necessito por estar operada. Onde se adoece de hepatite a cada cirurgia, onde a comida é racionada ao limite, onde não se pode expressar seu pensamento. São estas as disparidades.

Acredito que um dia a ditadura vai acabar pela morte ideológica e de seus líderes, que estão muito velhos e doentes, e pelo esgotamento deste país.

Qual sua fonte de renda?

Sou licenciada em História, mas tenho formação antropológica. Dediquei mais de 20 anos à pesquisa na Academia de Ciência, especialista em Arte e Origem. Em 2005 abandonei o trabalho estatal para trabalhar e pesquisar por conta própria, me dedicando ao jornalismo cidadão. Hoje, em meu blog, sem remuneração, escrevo sobre temas de opinião, sociedade, pensamento e análise política de Cuba. Profissionalmente escrevo para jornais como o Diário de Cuba. Se eu publico em um periódico e recebo, este é meu trabalho. No blog ninguém me paga. Não condiciono minha palavra a ninguém.

Escrever o blog é como uma catarse cidadã?

Neste momento permanecer calado é ser cumplice da ditadura. Falar é um direito cívico e uma responsabilidade. Há um grupo que já superou esta etapa de catarse, de experimentação ou lamento. Os problemas estão ditos. Temos de empurrar o muro que nos contêm e que por muito tempo ignoramos.

Durante minha estadia em Cuba tive a nítida impressão de que o cubano, assim como o brasileiro, não se interessa por política.

O cubano tem muitas coisas imediatas para ocupar-se antes de querer informar-se. A formação da nação cubana – e a própria idiossincrasia do povo cubano, se é que há um arquétipo ou estereótipo de cubano – é marcada pela imediatez, pela saída rápida, por um abandono da responsabilidade cívica. Tenho muitos amigos que me perguntam: “Por que estás metida em política? Tens um bom apartamento, teu marido tem um bom salário (meu esposo é cubano, mas tem a cidadania espanhola e é marinheiro), não passas fome!”. Exatamente por ter superado estas necessidades mais prementes é que posso parar e pensar, ser cidadã.

Há partidos políticos ilegais em Cuba. Eles são uma opção para o contraditório?

Partidos de oposição querem uma cadeira no poder e, por vezes, têm seus próprios caudilhos contra a democracia. Sou um ente político como cidadã, não é necessário estar em um partido para exercer esta cidadania.

Quais suas perspectivas de futuro para Cuba?

Acredito que um dia a ditadura vai acabar pela morte ideológica e de seus líderes, que estão muito velhos e doentes, e pelo esgotamento deste país. Há um esvaziamento de lideranças. A nação está em um beco sem saída. O sistema fracassou, o povo está exausto, a imigração um caos, o governo não tem programa. Os jovens querem ir embora. Tudo está esgotado. O sistema conseguiu implantar e generalizar uma onda de retrocesso moral em que todos dizem uma coisa, mas pensam de outra forma. Há um mascaramento público de opiniões e posturas. Quando isso tudo terminar vai ser muito difícil. Não tenho ilusões. Cuba está em um período de transição, mas para onde?

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