25/04/2024 - Edição 540

Mundo

Imprensa Agrilhoada

Publicado em 19/12/2014 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Quando a pro­fes­sora Re­beca Monzo re­tornou de Paris – onde per­ma­neceu por quatro anos como in­te­grante do corpo di­plo­má­tico cu­bano – foi con­vi­dada para tra­ba­lhar no órgão ofi­cial do co­mitê cen­tral do Par­tido Co­mu­nista Cu­bano, o  Granma. Ci­ente de que o jor­na­lismo pra­ti­cado em seu país não se co­a­du­nava com as fun­ções bá­sicas da pro­fissão, Re­be­ca re­cusou a pro­posta. “Me dei conta de que em Cuba não se podia exercer o jor­na­lismo, não o jor­na­lismo que eu con­si­de­rava que de­veria exercer”, ex­plica. 

Re­beca tra­ba­lhava no Mi­nis­tério do Co­mercio Ex­te­rior, onde foi in­tro­du­zida na ju­ven­tude co­mu­nista de­vido seu ren­di­mento e pon­tu­a­li­dade no tra­balho. Houve uma con­vo­cação feita pela União dos Jo­vens Co­mu­nistas para quem qui­sesse es­tudar Jor­na­lismo e ela se apre­sentou. 

“Fre­quentei o curso na Es­cola Su­pe­rior do Par­tido com o pro­grama e pro­fes­sores  da Uni­ver­si­dade de Ha­vana. Entre 1964 e 1967. Então no­me­aram meu es­poso como Con­se­lheiro Co­mer­cial de Cuba na França e eu o acom­pa­nhei como sua se­cre­tária. Ao re­gressar a Cuba em 1971, o então di­retor do Granma me disse que as portas do jornal es­tavam abertas para mim. Mas não aceitei. Segui no Co­mércio Ex­te­rior pois já não pen­sava como eles. Em 1989 tra­ba­lhei com rádio jor­na­lismo até 1992, quando aban­donei de vez a área de­vido ao ex­cesso de cen­sura”.

O tempo passou, Re­beca tocou sua vida em frente, tra­ba­lhou como ven­de­dora, ar­tista plás­tica e até na Unesco. Desde 1986, no en­tanto, atua ex­clu­si­va­mente como ar­tesã (veja seus pat­chworks aqui). “Rompi meus vín­culos com o Es­tado, até certo ponto, pois não há como romper to­tal­mente. Hoje sou o que chamam de ar­tista in­de­pen­dente, em­bora de fato não se­jamos in­de­pen­dentes, pois para poder co­mer­ci­a­lizar nossos pro­dutos temos que per­tencer a uma or­ga­ni­zação li­gada ao Es­tado”.

Germe jornalístico

 Em meio a labuta diária para ganhar a vida, o germe jornalístico ficou encubado até que Rebeca descobriu a possibilidade de se expressar livremente por meio de um blog. Assim como Regina Coyula e Fernando Dámaso – que protagonizaram os dois últimos artigos deste Especial Cuba – ela também foi “infectada” pelo vírus da liberdade de expressão espalhado na ilha pela iniciativa de Yoani Sánchez.

“Meu blog se chama Por el Ojo de La Aguja. Tudo começou quando, há pouco mais de dois anos Regina me contou sobre um curso que daria Yoani Sánchez sobre blogs. Eu não sabia o que era isso. Não tinha a mínima ideia, mas me interessei. Fizemos este curso e ali mesmo decidi abrir meu blog. Faz dois anos que o  mantenho. Sigo escrevendo sobre comportamento, receitas de cozinha (de que gosto muito), mas, sobretudo, sobre temas sociais com uma carga política tremenda. Vivencias, anedotas reais sobre o nosso dia a dia”, explica.

Quando o assunto é jornalismo, Rebeca se arrepia. “Não há liberdade de imprensa neste país. Existe apenas uma escola de jornalismo e o acesso se dá com aval político. Quando estudei jornalismo no princípio da revolução eu era marxista-leninista, por isso me escolheram. O ensino era basicamente doutrinário. Me perguntava quando iríamos estudar jornalismo de fato. Quando voltei de Paris percebi o que era imprensa, o que era jornalismo de verdade. Não havia como aceitar fazer este tipo de jornalismo que em Cuba se impõe e que hoje ainda impera como modelo. Um jornalismo doutrinário que serve mais como porta voz do partido e do governo do que como elo de ligação entre a sociedade”.

Jornalismo Doutrinário

De fato, em Cuba não se pra­tica o jor­na­lismo nos moldes em que a pro­fissão se fundou. Ou seja, uma pro­fissão cuja fis­ca­li­zação do poder e a li­ber­dade de ex­pressão são ob­je­tivos pri­mor­diais. Todos os veí­culos de co­mu­ni­cação cu­banos são au­to­ri­zados e con­tro­lados pelo Es­tado através do Par­tido Co­mu­nista Cu­bano, que re­co­nhece a li­ber­dade de im­prensa apenas quando "em acordo com os ob­je­tivos da so­ci­e­dade so­ci­a­lista”. Qual­quer con­teúdo que ofenda esta pre­missa é pas­sível de cen­sura e, seu autor, de pro­cesso cri­minal.

Aos jor­na­listas in­de­pen­dentes e blo­gueiros sobra a blo­gos­fera man­tida em sites hos­pe­dados no ex­te­rior e atu­a­li­zados nas em­bai­xadas es­tran­geiras ou em ca­rís­simas co­ne­xões dos ho­téis (onde até há al­guns anos os cu­banos eram proi­bidos de en­trar). O go­verno cu­bano con­tinua per­se­guindo estes pro­fis­si­o­nais com de­ten­ções ar­bi­trá­rias, vi­gi­lância cons­tante, cam­pa­nhas di­fa­ma­tó­rias nos meios de co­mu­ni­cação ofi­ciais e até mesmo agres­sões fí­sicas efe­tu­adas por “mi­lí­cias po­pu­lares” a soldo do go­verno.

“O es­tado tem o mo­no­pólio da in­for­mação e é ele quem di­vulga os ín­dices de anal­fa­be­tismo e mor­ta­li­dade in­fantil que en­cantam o mundo. Mas não são dados con­fiá­veis”, afirma Re­beca. Da mesma forma, ela des­mente a ideia de que há li­ber­dade de ex­pressão na ilha. “O único canal aberto para a po­pu­lação no Granma e o es­paço Carta do Leitor que se pu­blica às sextas. Lá você não lê uma pa­lavra sobre o con­tra­di­tório po­lí­tico”.

Não é à toa que o pre­si­dente Raúl Castro se mantém na lista anual de "de­pre­da­dores" da li­ber­dade de im­prensa di­vul­gada re­cen­te­mente pela or­ga­ni­zação Re­pór­teres sem Fron­teiras (RSF), por oca­sião do Dia Mun­dial da Li­ber­dade de Im­prensa. "Os ata­ques contra a im­prensa in­de­pen­dente e os blo­gueiros não ces­saram até agora", des­tacou a RSF em seu re­la­tório, no qual ar­gu­mentou que Raúl "não se com­porta me­lhor que seu irmão mais velho", Fidel Castro, desde que as­sumiu ofi­ci­al­mente o poder em 2008. Se­gundo a en­ti­dade, Cuba con­tinua vi­vendo uma "bru­ta­li­dade po­li­cial" contra a li­ber­dade de im­prensa.

Confira os demais artigos do Especial Cuba

Um olhar crítico e amoroso sobre a ilha dos Castro

Túlio: O Empreendedor – Quando a vontade de crescer esbarra na ideologia

Orcília: A Pedinte – A homogeneização da pobreza na Cuba igualitária

Danilo: o Músico – A alma de Cuba ainda repousa na boa música que embala a ilha

Graziela e Abdel: a Camareira e o Garçom – É possível viver sem papel higiênico e lagostas. E sem liberdade?

Leandro e seu Coco Taxi – O embargo como causador de todos os males

Mensagem na Garrafa – A blogueira Regina Coyula explica o fenômeno dos blogs cubanos

Números no Lugar – O blogueiro Fernando Dámaso fala sobre saúde e educação em Cuba

Vivendo o totalitarismo – A historiadora e antropóloga Miriam Celaya fala sobre a vida cotidiana em Cuba


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *