28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Instrução do governo abre espaço para fazendeiros em terras indígenas

Publicado em 25/02/2021 12:00 -

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Uma instrução normativa conjunta entre Ibama e Funai publicada no último dia 24 no Diário Oficial abre espaço para autorizar "parcerias" de agricultores não indígenas com indígenas, permitindo na prática a atividade de fazendeiros em terras indígenas. É o que concluem especialistas consultados pela coluna.

Embora a instrução normativa vede textualmente, no parágrafo 1º do artigo 1º, o arrendamento de terras indígenas, ao mesmo tempo ela disciplina, no próprio artigo, o licenciamento ambiental para empreendimentos desenvolvidos no interior das terras indígenas realizados "por meio de associações, organizações de composição mista de indígenas e não indígenas, cooperativas ou diretamente via comunidade indígena".

No entender dos especialistas, a permissão de "composição mista" abre espaço para fazendeiros vizinhos das terras indígenas, com maior poder aquisitivo e influência política, se infiltrarem nas comunidades indígenas e passarem e estimular a divisão interna, ampliando a substituição das áreas de mata por agricultura de forte impacto ambiental, como a soja, em especial em terras indígenas no Centro-Oeste.

A instrução normativa conjunta nº 1/2021, assinada pelos presidentes da Funai, o delegado da PF Marcelo Xavier, e do Ibama, Eduardo Bim, diz que as organizações de "composição mista" devem ter "o domínio majoritário indígena", uma ressalva considerada pelos especialistas como insuficiente e precária.

Para Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama, a instrução normativa "fere a Constituição e o Estatuto do Índio".

"O Estatuto veda a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa em terras indígenas. Com esta instrução normativa, os indígenas serão usados para viabilizar a instalação de empreendimentos de terceiros, chancelados pela Funai."

Suely disse que "agricultura mecanizada de grande porte, instalações industriais, tudo cabe dentro da instrução normativa". Ela apontou ainda que "a nova norma também deixa brecha para simplificação do licenciamento de empreendimentos, sem detalhar como isso será operacionalizado".

"Nesse aspecto, não cumpre aquilo que deveria fazer, disciplinar o processo administrativo. É realmente muito preocupante a edição desta normativa no governo Bolsonaro, que declaradamente quer abrir as terras indígenas para exploração em larga escala. Mais uma vez, estão passando a boiada no campo socioambiental."

O assessor jurídico da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), principal organização indígena do país, o advogado terena Luiz Eloy, disse que a normativa "foi feita de forma tão corrida que o art. 3 e o art. 4, possuem o mesmo texto". De fato, a redação dos dois artigos é idêntica.

O advogado disse que a instrução "viola o usufruto exclusivo dos indígenas", previsto no artigo 231 da Constituição; "traz hipótese de dispensabilidade do licenciamento ambiental em terra indígena para não indígenas"; "viola a autonomia e autodeterminação das comunidades, pois prevê que a Funai se manifestará de forma conclusiva em relação aos impactos socioambientais relativos aos indígenas (estudos e plano básico ambiental)"; "institui procedimentos simplificados para as atividades e empreendimentos de pequeno potencial de impacto ambiental, ensejando na manifestação simplificada da Funai nas etapas de licenciamento ambiental".

Por fim, segundo Eloy, "cria a hipótese de processo único de licenciamento ambiental para pequenos empreendimentos e atividades similares e vizinhos ou para aqueles integrantes de planos de desenvolvimento aprovados previamente, pelo órgão governamental competente, desde que definida a responsabilidade legal pelo conjunto de empreendimentos ou atividades".

Outros especialistas consultados pela coluna, que pediram para não ter os nomes publicados, concordaram que a permissão das "composições mistas" abre espaço para atividades de agricultores não indígenas dentro das terras indígenas protegidas pela União.

Nas justificativas da instrução normativa, a Funai e o Ibama citam, entre outros pontos, "a competência da União, prevista na Lei Complementar nº 140/2011, para promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades localizados ou desenvolvidos em terras indígenas"; "a necessidade de construção de um normativo específico para estabelecer um rito específico entre Ibama e Funai para o licenciamento ambiental das atividades desenvolvidas pelos próprios indígenas, de forma isolada ou associativa"; e que "as regras gerais previstas no ordenamento jurídico devem ser aplicadas às Terras Indígenas, devidamente contemporizadas com as normas próprias dirigidas às comunidades indígenas".

Partido protocola projeto legislativo para sustar efeitos da instrução

No dia 25, a bancada do PSOL na Câmara dos Deputados deverá protocolar na Casa um PDL (Projeto de Decreto Legislativo) com o objetivo de sustar os efeitos da instrução normativa. Por meio da sua assessoria, a líder da sigla, Talíria Petrone (PSOL-RJ), disse que "o governo Bolsonaro, que é inimigo dos povos indígenas e do meio ambiente, quer passar a boiada mais uma vez".

"Essa Instrução Normativa conjunta entre Ibama e Funai abre espaço para exploração de terras indígenas em larga escala. Um absurdo que Bolsonaro, desde o início de seu mandato, tem editado ações que desrespeitam os direitos assegurados pela Constituição Federal e esses povos.

Na justificativa do PDL, o PSOL aponta que a instrução "representa claro desrespeito à ordem constitucional (caracterizando, portanto, clara 'exorbitância do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa', conforme art. 49, V da Carta Magna)", e por isso "cabe ao Congresso Nacional, com fundamento na Constituição Federal, sustar a referida normativa".

Procurada pela coluna, a Funai não respondeu à pergunta sobre as composições mistas. Encaminhou uma nota, divulgada em seu site na internet, segundo a qual "a medida busca trazer mais agilidade e transparência aos processos".

De acordo com a nota, o presidente da Funai, Marcelo Xavier, disse que "a medida é um grande avanço para o protagonismo dos povos indígenas. Segundo ele, o incentivo a atividades produtivas nas Terras Indígenas está entre as prioridades da atual gestão da Funai". O Ibama, também procurado, não havia se manifestado até o fechamento deste texto.

Mineração na Amazônia

Ricardo Salles tem oscilado entre altos e baixos no Governo Jair Bolsonaro. Apontado por ambientalistas como um representante de ruralistas no Ministério do Meio Ambiente e visto por alguns diplomatas como um extremista, Salles tenta buscar uma sobrevida para sua permanência na pasta. Para isso, tenta se apoiar no novo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) para emplacar projetos caros ao bolsonarismo, que têm potencial para dizimar regiões florestais e que podem prejudicar a sobrevivência de populações tradicionais. Entre essas propostas estão a regularização fundiária de regiões florestais e a que autoriza a mineração em terras indígenas. Ambas têm tudo para avançar sob a gestão Lira.

A primeira sinalização que o ministro fez para a base de apoio bolsonarista foi a de reclamar que, durante a gestão Rodrigo Maia (DEM-RJ), encerrada no início deste mês, pautas governamentais pouco avançaram. Agora, ele diz estar confiante de que a situação será mais favorável ao Governo. “O que nós vimos ao longo desse período que acabou é que nem sequer as discussões podiam ser feitas. Você mandava um projeto de lei ou até uma medida provisória que caducaram no Congresso, e as discussões não aconteciam”, disse Salles em entrevista ao programa Poder em Foco, do SBT, da qual o EL PAÍS participou como convidado.

Sobre seu apoio ao polêmico projeto de mineração em terras indígenas, o ministro diz que gostaria que houvesse regras claras sobre o tema. “A mineração na Amazônia, seja em terra indígena ou fora da terra indígena, qual é a regra que vai ser imposta? Nós estamos desde a Constituição de 1988 aguardando a solução de uma norma que já previa uma regulamentação e esse assunto vai sendo jogado pra baixo do tapete ano após ano. Então é preciso discutir e encontrar um caminho, a solução não é não ter solução”.

Nesta montanha-russa da política, Salles esteve fortalecido com o presidente mesmo após seguidas altas dos índices de desmatamento e de queimadas na floresta amazônica e no Pantanal ao longo de 2019 e 2020. O prestígio decaiu depois que, em março do ano passado, foi filmado em reunião ministerial dizendo que o Governo deveria aproveitar a pandemia para “passar a boiada” no afrouxamento de regras ambientais. Ficou um tempo fora das manchetes jornalísticas depois desse episódio. Mais recentemente, voltou a ter seu nome em destaque quando Joe Biden venceu Donald Trump na disputa presidencial dos Estados Unidos e vários analistas apostaram que ele seria demitido.

Manteve-se no cargo porque Bolsonaro estava irritado com seu vice, Hamilton Mourão, que comanda o agora esvaziado Conselho Nacional da Amazônia. O presidente queria ter alguém para se contrapor ao general. Mourão é visto por alguns bolsonaristas como uma ameaça a Bolsonaro, que já acumula mais de 60 pedidos de impeachment. Essa queda de braço tem sido vencida pelo ministro, por enquanto, já que os militares subordinados indiretamente ao conselho deixarão de atuar na fiscalização da região amazônica nos próximos dois meses.

O curioso é que o mesmo Centrão que pode dar sobrevida a Salles com o prestígio junto a Lira é o grupo que pode derrubá-lo, em busca de nacos de poder na Esplanada dos Ministério. O nome de Salles juntamente com o do chanceler Ernesto Araújo, volta a ser apontado como um dos próximos a ser demitido numa iminente reforma ministerial realizada para acomodar políticos do fisiológico Centrão. “O cargo é do presidente (…) Eu não estou preocupado se vai ter reforma, se não vai ter reforma”, disse no programa do SBT.

Primeira reunião com representante de Biden

Ao mesmo tempo em que tenta, mais uma vez, se equilibrar no cargo, Salles busca demonstrar institucionalidade e proatividade. No último dia 18, Salles e Ernesto Araújo se reuniram pela primeira vez, por videoconferência, com o secretário de Estado americano, John Kerry. Na ocasião, levaram uma proposta ao homem forte da área ambiental de Biden na qual pediam mais dinheiro para a proteção ambiental. Segundo interlocutores, o Governo americano não discordou da proposta. Apenas sinalizou que alguma compensação financeira poderia ser apresentada nos próximos meses. A proximidade entre Bolsonaro e Trump, e as declarações de apoio feitas pelo brasileiro antigo presidente americano por ora, tem criado barreiras entre a cúpula dos dois Governos.

A busca de Salles por mais recursos tem várias razões. Uma delas: em 2021, o Ministério do Meio Ambiente se deparará com um de seus menores Orçamentos das últimas décadas. O resultado prático disso será a redução de fiscalização, que está cada vez menor, e o enxugamento administrativo. Ainda assim, mesmo com menos recursos, desde que Bolsonaro chegou ao poder o país abriu mão de receber doações da Noruega e da Alemanha por meio do Fundo Amazônia. Atualmente, há 40 projetos de proteção ambiental com 1,4 bilhão de reais parados nas contas porque Bolsonaro e Salles decidiram alterar as regras de gestão desses recursos. A razão é ideológica. “Ao invés de mandar o dinheiro para projetos e ideias que não necessariamente o governo concorde, dissemos que queríamos ter maior participação nisso e os doadores, Noruega e Alemanha, não concordaram”, justificou-se o ministro.

Como alternativa para suprir esses recursos, Salles disse que o Brasil busca convencer os países ricos a doarem mais para a proteção ambiental. A contrapartida brasileira seria antecipar de 2060 para 2050 o prazo em que se zeraria as emissões de gás carbônico no país. A conta sairia cara para os países ricos, entre eles, os Estados Unidos: 10 bilhões de dólares por ano (algo em torno 53 bilhões de reais). “Pedimos cem Fundos Amazônia por ano”, afirmou na entrevista, gravada no último dia 10.

Militares já ocupam quase 60% das coordenações regionais da Funai na Amazônia

Das 24 coordenações regionais da Funai na Amazônia Legal, 14 são lideradas por militares. Os cargos são ocupados por quatro capitães, quatro tenentes, um tenente-coronel, um paraquedista e quatro fuzileiros navais – um deles da reserva.

A proporção de militares na chefia das coordenações é de 58,3% nos nove estados da Amazônia Legal. Nas demais regiões do país, a incidência é de 26,7%.

“Além de ser estratégica no sentido militar, porque tem muitos interesses internacionais, a Amazônia Legal também é atrativa para exploração dos recursos de forma indevida, em conluio com as grandes corporações, principalmente na extração de madeira, na mineração e no agronegócio”, analisa Dinaman Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

O líder indígena explica qual seria, na avaliação da Apib, o perfil ideal para chefiar as 39 coordenações regionais da Funai. “É um cargo que atende na ponta, que tem relação direta com os indígenas. E o perfil mais adequado são agentes indigenistas, sociólogos, antropólogos, pessoas que conhecem a causa, têm sensibilidade e vão trabalhar para que se cumpra a missão institucional da Funai, que é proteção e promoção dos direitos dos povos indígenas”.

Secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira também vê com preocupação a presença crescente de militares no órgão.

“Os militares têm a concepção de que o indígena não contribui para a soberania do país. Eles são contra até a utilização do termo povos indígenas, e também são contra a autonomia dos povos sobre a gestão e demarcação dos seus territórios, buscando a ‘integração’ dos indígenas à sociedade nacional”, avalia.

A Instrução Normativa nº 9, de abril de 2020, traduz o olhar dos militares sobre o tema, segundo Oliveira, reduzindo a Funai a uma instância de certificação de imóveis para posseiros, grileiros e loteadores de terras indígenas.

Para Dinaman Tuxá, os desafios enfrentados sob o governo Bolsonaro remetem a um dos períodos mais desfavoráveis para a efetivação dos direitos indígenas no Brasil: a ditadura civil-militar (1964-1985). A Comissão Nacional da Verdade (CNV) aponta que ao menos 8,3 mil indígenas foram mortos por ações do regime, que também tinha a “integração” como uma de suas bandeiras.

“A militarização da estrutura da Funai que vemos hoje reaviva a ideologia da ditadura, que foi muito danosa e resultou na entrega das nossas terras ao latifúndio”, lembra. “Além disso, ela é prejudicial para o andamento dos processos de demarcação e implementação de políticas públicas, por que eles não são agentes indigenistas e desconhecem como funciona a organização das comunidades.”

Raio x

O primeiro levantamento sobre a presença de militares nas coordenadorias regionais da Funai sob governo Bolsonaro foi realizado em setembro de 2020 pelo portal Sul21. À época, eram 17 nos postos de comando.

De lá para cá, houve mudanças pontuais. A regional de Passo Fundo (RS), que estava sem coordenador em 2020, agora é chefiada pelo coronel da reserva Aécio Galiza Magalhães – que estava exonerado, mas foi reconduzido ao cargo.

Em Campo Grande (MS), o capitão reformado José Magalhães Filho, que ocupava a função à época do levantamento do Sul21, foi exonerado. A regional está sem coordenador no momento.

Outra atualização em relação ao balanço anterior é a presença do subtenente da reserva Roberto Cortez de Sousa na regional Litoral Sudeste, em Itanhaém (SP).

Azelene Inácio, da regional Interior Sul, em Chapecó (SC), é a única indígena a ocupar uma das 39 coordenações da Funai.

O secretário executivo do Cimi explica, na prática, o que muda com militares no controle das coordenações regionais na Amazônia Legal.

“Eles atuam para abrir as terras indígenas para o capital, para exploração desses territórios, e têm uma atuação decisiva no sentido de proteger as empresas mineradoras, o garimpo, fazendo lobby junto às comunidades indígenas para que haja essa permissão”, descreve.

Oliveira chama atenção para a ameaça crescente aos indígenas isolados do Vale do Javari (AM) e para o assédio de ruralistas aos povos Xavante e Parecí no Mato Grosso, para tentar expandir o cultivo de soja em terras indígenas.

“O que nos preocupa mais é a questão da Amazônia Legal mesmo, porque lá a presença de militares é maior e, com certeza, este ano eles vão intensificar esse projeto de liberação dos territórios, principalmente com a aprovação do PL [Projeto de Lei] 191”, completa.

O projeto a que ele se refere, é de autoria do Poder Executivo e visa flexibilizar as regras para mineração em terras indígenas.

Na interpretação do secretário executivo do Cimi, os militares brasileiros já demonstraram que não concordam com a Convenção nº 169 da Organização do Trabalho (OIT). Esse documento afirma que “os povos interessados deverão ser consultados sempre que for considerada sua capacidade para alienarem suas terras ou transmitirem de outra forma os seus direitos sobre essas terras para fora de sua comunidade.”

Questionada sobre os motivos da militarização das coordenações regionais na Amazônia Legal, a Funai não deu retorno até o fechamento deste texto.

Um dos argumentos mais frequentes é que as Forças Militares teriam mais condição de chegar a áreas de difícil acesso na floresta.

“Isso é um pretexto [tem que ser militares], porque os civis também têm condições de chegar aonde os militares chegam, desde que estejam preparados”, adverte o secretário executivo do Cimi. “Além disso, os povos isolados da Amazônia não precisam que os não indígenas cheguem lá. O que eles precisam é de proteção para que, justamente, não se chegue a esses territórios”, finaliza.


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