19/04/2024 - Edição 540

Poder

Governo Bolsonaro isola Ernesto Araújo em negociação com chineses por insumos de vacina

Publicado em 22/01/2021 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O chanceler Ernesto Araújo foi excluído das negociações com a China para a compra de vacinas e insumos contra a covid-19. Depois que o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), conversou na quarta-feira, 20, com o embaixador chinês Yang Wanming para tratar do assunto, o governo Jair Bolsonaro divulgou nota para afirmar que é “o único interlocutor oficial com a China” nas negociações.

Maia, porém, disse ter ouvido de representantes chineses que ninguém do governo federal havia procurado a embaixada até então. “Agora, nesse momento, não podemos olhar para conflitos políticos e todos que têm relação com a China podem ajudar”, acrescentou o presidente da Câmara. Quase ao mesmo tempo, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), deu entrevista na qual anunciou que o escritório de São Paulo em Xangai também está atuando nas negociações.

O Instituto Butantan afirmou que praticamente esgotou a quantidade de insumos para fabricar a Coronavac no Brasil. O órgão ligado ao governo paulista já distribuiu o 1º lote, com seis milhões de doses, para começar a imunização no País. Além disso, tem condições de entregar só mais 4,8 milhões de unidades. Depois, depende da matéria-prima chinesa para garantir novas remessas. Doria tem feito apelos para que o Ministério das Relações Exteriores articule uma solução diplomática para desfazer o problema.

O presidente Jair Bolsonaro reuniu com ministros, no Palácio do Planalto, e pediu que todos saíssem em defesa do governo na guerra das vacinas. Apesar de gostar de Ernesto Araújo, um integrante da ala ideológica do governo Bolsonaro avalia que ele não deve conduzir qualquer tratativa com a China sobre as vacinas. Mesmo escanteado, porém, o chanceler disse que divergências políticas não foram o motivo do atraso na entrega de insumos para a produção do imunizante.

“Temos relação madura, construtiva, muito correta, tranquila com a China”, afirmou o ministro, ao participar de uma reunião fechada com deputados, por videoconferência.

Mais tarde, foi divulgada uma nota preparada pelo Ministério das Comunicações, comandado por Fábio Faria, dizendo que “outros ministros do Governo Federal têm conversado com o Embaixador Yang Wanming”. O texto menciona que o próprio Faria e os ministros da Saúde, Eduardo Pazuello, e da Agricultura, Tereza Cristina, haviam participado de “conferência telefônica” com o embaixador.

“O Ministério das Relações Exteriores, por meio da embaixada do Brasil em Pequim, tem mantido negociações com o Governo da China”, destaca a nota. Amigo do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho “zero três” do presidente, Araújo já se referiu à covid-19 como “comunavírus” e se envolveu em polêmica com Wanming, no ano passado. 

Em novembro, por exemplo, o chanceler saiu em defesa de Eduardo, que, nas redes sociais, havia associado o governo chinês à “espionagem” por meio da tecnologia 5G. Na ocasião, o presidente chegou a elogiar Araújo pela iniciativa.

Agora, no entanto, o Palácio do Planalto considera que, diante dos problemas entre o chanceler e Wanming, outros ministros podem ficar à frente das tratativas com a embaixada. Na outra ponta, Bolsonaro escalou o titular das Comunicações para “ajudar Pazuello”. A tarefa de Faria, na presente situação, é preparar um plano na tentativa de vencer a batalha da comunicação envolvendo os episódios relativos ao coronavírus.

Apesar das pressões para demitir Pazuello, o presidente não pretende tirá-lo do cargo agora. O grupo de partidos reunidos no Centrão quer a cadeira do ministro e já chegou a apresentar até mesmo o nome de Ricardo Barros (Progressistas -PR), líder do governo na Câmara, para seu lugar. Barros já foi ministro da Saúde na gestão Temer. Mas Bolsonaro acha que remover Pazuello agora seria o mesmo que assinar um atestado de incompetência, além de dar o braço a torcer a Doria.

Entre auxiliares do governador de São Paulo, a expectativa é que Pazuello seja mesmo mantido no cargo.  Entre tucanos paulistas, o ministro é considerado “confuso” e de uma “lealdade ao presidente que beirar as raias da submissão”, mas há um temor de que seu cargo seja dado para alguém indicado pelo PP, um partido do Centrão que controlou a área da saúde por vários anos e ainda pode usar o cargo para ajudar a eleger Arthur Lira (PP-AL) presidente da Câmara. Nesse sentido, políticos apostam no ruim com ele, pior sem ele. Pazuello, ao menos, diz um tucano, é honesto, previsível, fala o que pensa e é patriota.

Os erros do Itamaraty

A dificuldade do Brasil em obter acesso às vacinas ou insumos para sua produção não é um acidente. Mas resultado de escolhas políticas e estratégicas que, hoje, cobram seu preço. E no caso da pandemia da covid-19, um preço em forma de vidas.

Ao longo dos últimos dois anos, o Itamaraty e o Palácio do Planalto desmontaram décadas de uma tradição de construir pontes e de manter relações com todos, independente de suas vertentes ideológicas. FHC recebia Chávez e jantava com banqueiros e monarcas. Lula visitava Bush, ganhava prêmio em Davos e era herói em Porto Alegre, então sede do Fórum Social Mundial.

Sob a gestão de Jair Bolsonaro e Ernesto Araújo, a ideologia tomou conta das escolhas diplomáticas. Se os sinais de isolamento ficavam cada vez mais claros nos últimos meses, a vacina contra a covid-19 escancarou que, em algum momento, a conta chega. E chegou.

Por meses, a chefia do Itamaraty atacou a China, insinuou que o governo de Pequim estaria usando a pandemia para ganhar força internacional, criticou seu embaixador em Brasília, denunciou o "comunavírus" e abriu um fosso inédito entre os dois países.

Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, revelou à coluna que diversas vezes foi sabotado pelo Itamaraty ao tentar uma aproximação com o embaixador da China em Brasília.

Agora, ao precisar que as autoridades chinesas liberem a exportação de insumos ou a entrega de mais doses da vacina, se encontram diante de uma muralha. A busca do Itamaraty, neste momento, é por encontrar um interlocutor que seja aceito pelos chineses para que uma negociação possa ocorrer.

Nas reuniões da Fiocruz e do Instituto Butantan, parte dos diretores acredita que Pequim não vai deixar de cumprir seus contratos comerciais com o Brasil, mas já admite que os chineses vão usar a dependência do país no tema sanitário para garantir que haja uma mudança na natureza da relação. E que, claro, o pacote chinês para a tecnologia 5G volte a ser considerado pelo governo federal.

No caso indiano, o uso do imunizante como instrumento de influência e poder é evidente. Maior produtor de vacinas do mundo, Nova Déli passou a usar sua fabricação como forma de costurar ou reforçar alianças em sua região contra a crescente hegemonia chinesa. Não por acaso, manda como "presente" milhões de doses para vizinhos em Bangladesh, Butão e outros.

O Brasil, enquanto isso, optou por aliar-se aos países ocidentais e romper com uma tradição de décadas na luta por acesso a remédios. Nos últimos três meses, o Itamaraty vem criticando abertamente a proposta da índia na OMC (Organização Mundial do Comércio) de suspender todas as patentes de vacinas, enquanto a pandemia durar. A meta dos indianos seria permitir que essas vacinas fossem fabricadas por empresas de genéricos, ampliando o abastecimento global.

Quando precisou da Índia, o Itamaraty foi obrigado a determinar a seus diplomatas que ficassem em silêncio na reunião em Genebra (Suíça), onde fica a sede da OMC, para não aprofundar a crise e enterrar de vez o país no final da fila entre aqueles que poderiam receber a vacina.

No campo comercial, o Brasil também optou por um afastamento dos países emergentes e da aliança que mantinha com a Índia na OMC. Em um acordo com Trump, o governo Bolsonaro aceitou que deixaria de ser tratado como um país em desenvolvimento nas negociações comerciais.

O gesto foi recebido com desprezo por parte dos demais países em desenvolvimento, irritados com a "traição" do Brasil.

Meses depois, a Índia deu o troco e vetou o nome de um dos diplomatas mais capacitados do Itamaraty para assumir o comando das negociações sobre o futuro do setor da pesca no mundo. O motivo: o temor de que a presidência brasileira significasse um posicionamento pró-países ricos.

Na OMS (Organização Mundial da Saúde), as escolhas feitas também terão consequências. Por semanas, o Brasil ficou distante da ideia de se criar uma aliança global para garantir a distribuição de vacinas aos países mais pobres. Naquele momento, em abril de 2020, o Ministério da Saúde informou à coluna que tinha "outras alianças" sendo consideradas. Porém jamais explicou quais eram.

Pressionado inclusive por senadores, o Itamaraty acabou cedendo e aderiu ao projeto Covax. Mas optou por pedir o menor número de doses possíveis, capaz de atender apenas a 10% da população. O sistema permitiria que o Brasil solicitasse uma cobertura de até 50%.

Um dos motivos para se recusar a buscar um maior engajamento não tinha nenhuma relação com os interesses nacionais. Mas sim evitar transformar a OMS no epicentro da resposta global contra a pandemia. Pela ideologia da nova diplomacia brasileira, tais instituições fazem parte de um "complô globalista", infiltrados por comunistas, e que tem como meta supostamente acabar com as soberanias nacionais.

Agora, se a OMS conseguir tirar o projeto do papel e começar a distribuir vacinas, o Brasil receberá um volume reduzido de doses.

Com o setor privado, a aposta em apenas poucos fornecedores também ficou evidenciada. Não foram poucas as empresas que indicaram surpresa com a frieza que foram tratadas no Planalto.

Dentro do Itamaraty, circula o pensamento de que a crise revelou os limites da estratégia do governo de privilegiar apenas alguns parceiros. Para opositores do chanceler, internamente no ministério, o caso enfraquece sua posição. Uma eventual incapacidade de resolver esse gargalo lhe poderia custar o cargo.

Vacina, segundo esses negociadores, é geopolítica. "Basta ver o nome que os russos escolhem para a sua", ironizou um diplomata brasileiro, numa referência à Sputnik — nome originalmente dado ao satélite soviético que marcou um dos momentos mais críticos da Guerra Fria.

Sem base científica e sem certificado médico, essas doses de ideologia encurralam o Brasil no tabuleiro dessa geopolítica, enfraquecem o país numa eventual reconstrução do sistema internacional no período pós-pandemia e, acima de tudo, matam.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *