25/04/2024 - Edição 540

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Diplomacia de Biden desmonta agenda que uniu Bolsonaro e Trump

Publicado em 22/01/2021 12:00 -

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O governo de Joe Biden, novo presidente dos Estados Unidos (EUA), sinaliza que irá se afastar das alianças formais e informais que tinham sido criadas nos últimos anos entre Donald Trump, Jair Bolsonaro e outros líderes populistas na defesa de agendas religiosas, políticas ultraconservadoras, negacionismo ambiental, ataques às instituições multilaterais e de desmonte dos pactos de direitos humanos.

Uma primeira indicação dessa tendência foi dada por sua equipe durante a sabatina no Senado americano com o novo chefe da diplomacia dos EUA, Antony Blinken, na noite do último dia 19. Questionado por mais de quatro horas, o experiente negociador que irá assumir o Departamento de Estado norte-americano foi explícito em dizer que será uma de suas prioridades lidar com a ameaça do populismo.

Ao explicar seus planos, ele voltou a defender a ideia da realização no segundo semestre do ano de uma cúpula para a promoção da democracia, reunindo países aliados.

Para Blinken, existe um risco real por parte do "populismo emergente" no mundo. Sem citar nomes, ele ainda apontou como, ao longo dos últimos anos, os pilares da democracia foram abalados em alguns países. O evento também é visto como um instrumento para dar uma resposta ao movimento mundial de extrema-direita, assim como um marco de sua Presidência diante de ditaduras pelo mundo.

Diplomatas brasileiros interpretaram a referência ao projeto como um sinal claro de que o tema da "democracia" estará presente nas decisões de Biden e que isso, potencialmente, pode ser uma pressão sobre o governo Bolsonaro.

A perspectiva é de que a agenda da cúpula inclua a proteção do papel da sociedade civil, meio ambiente, fortalecimento das instituições democráticas, ataques contra a desinformação, além de combate contra a tortura. Alguns dos principais aliados dos EUA já estariam na lista, entre eles Canadá, França, Alemanha, Coreia do Sul, Austrália e Japão.

Biden coloca OMS como "líder" na resposta à pandemia e isola Brasil

Menos de 24 horas depois de assumir o poder nos Estados Unidos (EUA), o governo de Joe Biden faz um gesto poderoso de retorno à OMS (Organização Mundial da Saúde) e anuncia que irá integrar a aliança mundial de vacinas contra a covid-19, a Covax, para garantir que imunizantes cheguem aos países mais pobres.

Na manhã de quinta-feira (21), Anthony Fauci, participou por vídeo pela primeira vez do Comitê Executivo da agência internacional, declarando que a OMS é "líder" na luta global contra a pandemia. Chamando Tedros Ghebreyeus de "querido amigo", Fauci ainda anunciou que quer o fortalecimento e reforma da agência, e garante vai cumprir suas obrigações financeiras com a OMS.

Ao se unir à aliança de vacinas, a Casa Branca dá esperanças à direção da OMS de que o vácuo de imunizantes nos países em desenvolvimento comece a ser superado. Hoje, praticamente todas as doses aplicadas contra a covid-19 ocorreram em países ricos e alguns poucos emergentes.

Segundo Fauci, a operação para a distribuição de vacinas precisa ser "multllateral", um termo usado de forma insistente em seu discurso e numa sinalização de uma mudança radical na política externa de Washington.

Para o representante da Casa Branca, o novo governo americano irá trabalhar de forma "construtiva" para "reformar e fortalecer" a OMS. Mas também deixou claro que as investigações conduzidas pela entidade sobre a origem do vírus precisam ser "claras e robustas".

Nesta semana, uma equipe internacional está em Wuhan, depois de meses de negociações com o governo chinês.

"Esse é um dia bom para a saúde global e para a OMS. O papel dos EUA é crucial e mando meus agradecimentos ao presidente Biden", respondeu Tedros, diretor-geral da entidade. "Temos de trabalhar como uma família e damos as boas-vindas para o retorno dos EUA à família", insistiu.

Europa também comemorou. "É o momento de reforçar a aliança entre Europa e EUA para fortalecer e reformar as entidades internacionais", disse a delegação da Áustria, em nome do bloco.

O Reino Unido aplaudiu a decisão de dar apoio "financeiro, científico e político" ao processo de distribuição de vacinas. "Moralmente e cientificamente, não podemos apenas vacinar nossas populações", declarou Londres.

O governo chileno deu as boas-vindas à decisão de Biden e comemorou o compromisso da Casa Branca com o "multilateralismo". Em nome dos 47 países da África, o governo do Gabão declarou que a região felicita os americanos por sua atitude de retorno à entidade.

Já a embaixadora do Brasil na OMS, Maria Nazareth Farani Azevedo, tomou a palavra durante o debate para dizer que estava "feliz" ao ver a intervencão de Fauci. "O Brasil está pronto para cooperar com os EUA e com todos os membros da OMS no fortalecimento da OMS e liderar a reforma", disse.

Ruptura com Trump e afastamento de postura do Brasil

A postura de Fauci representa uma ruptura em relação ao posicionamento de seu antecessor, Donald Trump, mas também um sinal de afastamento da atitude do governo de Jair Bolsonaro. O Itamaraty, apesar de não ter saído da OMS, adotou ao longo dos meses um tom de recusa em reconhecer o papel central da agência num esforço global para lidar com o vírus.

O governo brasileiro ainda se aliou a Trump para apresentar uma proposta conjunta sobre como reformar a OMS. O projeto de Brasília e Washington havia sido considerado por muitos dentro da agência e entre diplomatas estrangeiros como uma maneira de garantir que governos nacionais tenham mais controle sobre a OMS. E não necessariamente uma ampliação dos poderes da agência.

Não há, hoje, uma definição se Biden vai querer manter a aliança com Bolsonaro na proposta de reforma da OMS ou se irá se unir a uma segunda opção, liderada pela Europa. Bruxelas defende também uma reforma da agência, mas para garantir maiores poderes ao multilateralismo.

No Itamaraty, uma das orientações desde o início da pandemia era o de evitar que a crise sanitária representasse uma maior transferência de poderes para a OMS. O termo "multilateralismo" também passou a ser evitado, com o próprio chanceler indicando que a palavra poderia ser uma ideologia. O argumento central é de que entidades "globalistas" seriam uma ameaça para a soberania nacional e que, eventualmente, fariam parte de um avanço infiltrado de comunistas.

Enquanto o vírus matava, Bolsonaro proliferou críticas contra a agência e seus aliados e blogueiros disseminaram desinformação sobre a atuação da entidade.

Nas primeiras reuniões ainda em 2020 na OMS, o governo evitou enviar delegações de ranking mais elevado e o chanceler Ernesto Araújo insistia a resposta à pandemia era "nacional". "Existe uma falácia que diz que problemas globais exigem soluções globais", disse o chanceler.

Em outra ocasião, ele atacou a "carência de base científica" da resposta da OMS, enquanto o governo insistia em defender o uso da cloroquina. "Aparentemente há falta de independência da OMS, falta de transparência e, sobretudo, coerência em orientações sobre aspectos essenciais. A origem do vírus, o compartilhamento de amostras, o contágio por humanos, os modos de prevenção, a quarentena, o uso da hidroxicloroquina, a indumentária de proteção e agora na transmissibilidade por assintomáticos", disse. "

Trump foi além da postura do Itamaraty e havia retirado os EUA da entidade e congelado o repasse de recursos, como retaliação diante das falhas da OMS diante da pandemia e de sua suposta aproximação ao governo de Pequim.

Ainda na quarta-feira, Biden escreveu ao secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, revertendo a decisão de seu predecessor e declarando que a OMS "tem um papel crucial na luta mundial contra a pandemia, assim como em outras ameaças para a saúde global".

Numa de suas primeiras ordens executivas assinadas também na quarta-feira, Biden declarou que um dos objetivos de sua administração é a de "fortalecer" a OMS.

Casa Branca agradece OMS por sua ação global

Fauci, diante dos demais países, fez ainda questão de dizer que a nova atitude dos EUA era também uma vontade de cientistas e trabalhadores do setor de saúde. Num discurso radicalmente diferente do que se ouvia da delegação americana desde o início da crise, o representante de Biden "agradeceu" a OMS por seu trabalho de "liderar a resposta global à pandemia".

"Essa entidade reuniu a comunidade cientifica para acelerar vacinas, terapias e diagnósticos, conduziu briefings, rastreou com autoridade o vírus, deu milhões de equipamentos para dezenas de países e trabalho com nações na luta contra a pandemia", afirmou.

Além de dinheiro, o governo Biden vai voltar a autorizar os funcionários americanos a colaborar com a OMS. Para a agência, tal gesto é considerado como "fundamental" para ampliar a capacidade técnica da organização.

Biden rompe com aliança mundial contra aborto, pauta do governo Bolsonaro

O governo de Joe Biden anunciou na OMS que está abandonando a postura da administração de Donald Trump de vetar termos como saúde reprodutiva e direitos sexuais em programas e resoluções internacionais. O gesto representa o fim de uma aliança e da promoção de uma agenda ultraconservadora no mundo, que contava com o Brasil como um dos principais pilares.

No Itamaraty e nas alas mais conservadoras de apoio do governo, a aproximação nesses temas com Trump era considerada como um dos principais movimentos da política externa do chanceler Ernesto Araújo.

Anthony Fauci deixou claro que a Casa Branca abandonará a agenda antiaborto e passará a defender o acesso à saúde reprodutiva para mulheres na agenda global.

Seu discurso foi interpretado por diplomatas estrangeiros como uma profunda ruptura em relação ao projeto de Trump que, nas últimas semanas de seu governo, reuniu governos ultraconservadores para lançar uma ofensiva contra entidades que estabelecessem os temas em suas agendas.

Nessa ofensiva, o Brasil de Ernesto Araújo e Damares Alves eram aliados estratégicos e um bloco de cerca de 30 países foi formado, muitos deles de caráter autoritário ou populistas de extrema-direita.

O argumento do grupo liderado por Trump, Bolsonaro e Viktor Orban (Hungria) era que existiria uma manobra nas entidades internacionais para incluir termos como direito à saúde reprodutiva e sexual nos programas, o que abriria uma brecha para legitimar o aborto.

"Defesa da família" como pretexto para sufocar discussões

Na aliança, portanto, foi estabelecido que os governos reafirmariam a rejeição ao aborto e a defesa da família. Os países, ao assinarem a proposta, enfatizariam que "em nenhum caso o aborto deve ser promovido como método de planejamento familiar " e que "quaisquer medidas ou mudanças relacionadas ao aborto dentro do sistema de saúde só podem ser determinadas em nível nacional ou local de acordo com o processo legislativo nacional".

O temor do grupo é infundado. Em todos os textos aprovados na ONU (Organização das Nações Unidas) ou na OMS, qualquer referência a esses temas sempre vem acompanhado por um alerta de que leis nacionais devem ser respeitadas.

Em uma audiência no Senado, no dia 24 de setembro de 2020, o chanceler Ernesto Araújo confirmou que um dos objetivos do governo é de evitar que haja qualquer tipo de imposição por parte das entidades internacionais sobre qual rumo deve ser tomado no Brasil quando o debate é o aborto, o que na prática se tornava uma proibição de discussões sobre o tema.

"Nós sempre nos posicionamos para que não haja, em textos de organismos internacionais, algum tipo de direito universal como método anticonceptivo, anticoncepção ou método de controle de natalidade", disse o ministro.

EUA derrubam determinação dos anos 80 que proibia financiar aborto

Araújo também chegou a escrever que Trump seria o único que poderia "salvar o Ocidente" e apostou na relação com o americano para construir uma nova posição do Brasil no mundo. Ao longos dos últimos dois anos, a aliança também permitiu agir de forma coordenada na OMS e na ONU para tentar barrar textos e projetos apresentados por outros governos.

Fauci, porém, deixou claro que a nova orientação será diferente. "Será nossa política apoiar a saúde sexual e reprodutiva de mulheres e meninas e os direitos reprodutivos nos Estados Unidos, assim como a nível global. Para isso, o presidente Biden revogará a Política da Cidade do México nos próximos dias, como parte de seu compromisso mais amplo de proteger a saúde das mulheres e promover a igualdade de gênero em casa e no mundo inteiro", disse o representante americano.

A "Política da Cidade do México" se refere a um pacote de medidas criadas ainda nos anos 80, exigindo que todas as ONGs e entidades recebendo recursos dos EUA se comprometam a não prestar qualquer serviço de aborto, aconselhamento sobre a opção de aborto, se referir ao aborto e nem fazer campanhas pelas liberação legal da prática.

Ao ser adotada por Trump, a medida havia secado o financiamento de milhões de dólares para entidades que atendiam a meninas e mulheres em países mais pobres do mundo.

Direitos LGBTQ

Outro setor que sofrerá ampla revisão é o capítulo de direitos humanos. Blinken afirmou, diante do Senado, que embaixadores americanos voltarão a ser autorizados a colocar uma bandeira que simboliza o movimento LGBT em suas agendas e em seus escritórios.

"A violência contra a população LGBT aumenta no mundo. Os EUA precisam assumir seu papel de proteger essas pessoas", disse. Entre os diferentes instrumentos, Biden terá um embaixador dedicado ao tema da promoção do direito desse segmento no palco internacional.

Outra questão dos senadores se referia à comissão criada por Trump com a ambição de promover uma redefinição do que são os direitos humanos, num processo que poderia ter um impacto global. Para o novo chefe da diplomacia americana, as conclusões da comissão serão rejeitadas.

A meta inicial do projeto de Trump era colocar limites às novas reivindicações dos direitos humanos e realizar a maior revisão do termo desde a assinatura em 1948 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Interesse nas Américas: democracia e bem-estar para classe média

O futuro chefe da diplomacia ainda destacou como Biden colocará "atenção sustentável" nas questões das Américas e que a região será uma "área de foco". Durante sua sabatina no Senado, Blinken indicou como o presidente eleito fez 16 viagens para países do continente quando era o vice-presidente de Barack Obama.

Para ele, Biden tem uma "visão forte" de que um futuro para o continente deve ser "democrático e que proteja a classe média" para que os interesses dos EUA sejam atendidos.

Além do populismo, a situação da Venezuela e Cuba também estarão na agenda. Blinken estima que Nicolás Maduro, presidente venezuelano, tem usado negociações para ganhar tempo e o qualifica como "ditador brutal". Mas alerta que Washington terá de atuar em maior sintonia com países da região e adotando sanções mais focadas.


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