28/03/2024 - Edição 540

Poder

Mentiras e ameaças

Publicado em 22/01/2021 12:00 -

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Em mais uma frase de efeito que mobiliza seus fãs e cria polêmica nas redes sociais, o presidente Jair Bolsonaro voltou a dizer nesta semana que a democracia é uma benesse das Forças Armadas à sociedade.

"Quem decide se um povo vai viver numa democracia ou numa ditadura são as suas Forças Armadas. Não tem ditadura onde as Forças Armadas não apoiam. No Brasil, temos liberdade ainda. Se nós não reconhecermos o valor desses homens e mulheres que estão lá, tudo pode mudar", disse Bolsonaro a apoiadores, em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília.

Não foi a primeira vez que o presidente espancou o Estado Democrático de Direito. Em 2019, por exemplo, o presidente afirmou que só existe democracia e liberdade se as Forças Armadas "quiserem".

A simples sugestão de que Exército, Marinha e Aeronáutica possam agir de acordo com suas vontades e não as dos Três Poderes é uma afronta à Constituição Federal.

Quando as Forças Armadas cumprem suas responsabilidades dentro de limites e competências constitucionalmente atribuídos, há democracia e liberdade. Mas a partir do momento em que intervêm para "corrigir" os rumos do país, de acordo com a opinião de seu comando, passando por cima das posições manifestadas pelos representantes eleitos pela população, democracia e liberdade vão para o vinagre.

O governo federal conta com uma miríade de ministros oriundos das Forças Armadas – um número alto mesmo em comparação aos gabinetes dos ditadores brasileiros entre 1964 e 1985.

As Forças Armadas de hoje não são as mesmas da última ditadura, da mesma forma que os contextos nacional e internacional são outros. Seus comandantes têm confirmado que a liderança do país é e será civil. Segundo os oficiais da ativa, o respeito às liberdades individuais e às instituições continuará, sem intervenções ou golpes.

Isso não exime seus quadros de críticas, principalmente quando dão declarações que nada contribuem com o bom funcionamento das instituições democráticas. O então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um quadro considerado sensato e ponderado, cometeu duas falhas graves. A primeira, às vésperas do julgamento do habeas corpus solicitado pela defesa do ex-presidente Lula no Supremo Tribunal Federal, quando afirmou em sua conta no Twitter: "Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais".

Depois completou o raciocínio em uma segunda mensagem: "Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?" Sua declaração, além de ter representado inadmissível pressão indevida, foi vista como uma chantagem à corte.

A segunda foi, durante as eleições, quando disse que o atentado contra Jair Bolsonaro poderia levar o futuro governo a ter dificuldade em garantir estabilidade e governabilidade, "podendo até mesmo ter sua legitimidade questionada". Mesmo que ele, ao longo da entrevista, tenha confirmado que as Forças Armadas continuarão a desempenhar seu papel democrático, independentemente do resultado das eleições, a conjectura em sua declaração apenas lançou mais combustível no contexto incendiado das eleições presidenciais. A declaração do general não era uma sentença do que acontecerá, mas ajudou na formação do entendimento de que se o resultado das eleições não fosse o que alguns grupos esperavam, elas poderiam ser questionadas. Isso em nada contribui para a "necessidade de pacificação do país", que ele afirma ser sua preocupação.

Não foi o único. O então candidato à vice-presidência da República, general Hamilton Mourão, admitiu que, na hipótese de um presidente da República considerar que o país entrou em situação de anarquia, ele pode dar um "autogolpe" com o apoio das Forças Armadas.

Um ano antes, ele já havia levantado polêmica ao afirmar, em uma palestra, que seus "companheiros do Alto Comando do Exército" entendiam que uma "intervenção militar" poderia ser adotada se o Poder Judiciário "não solucionasse o problema político", no caso, a corrupção.  

Uma das diferenças entre um governo militar e um civil é que, no civil, os militares que desejam participar do jogo político, expressando-se dessa forma, devem fazê-lo pela via eleitoral. Pois palavras como essas, ao invés de trazer tranquilidade, apenas acrescentam mais ansiedade a um país ultrapolarizado.

Ninguém questiona a importância das Forças Armadas e o papel que elas cumprem em uma democracia. Mas os governos civis pós-1988 distanciaram os militares do processo decisório do país não apenas por traumas do passado, mas também por uma visão de democracia próxima do voto e distante dos quartéis.

O presidente foi reformado como capitão do Exército e se tornou político. É um presidente civil. Não deveria, portanto, afirmar que seu comando só existe por uma concessão dos militares, quando é uma decisão única e exclusivamente dos eleitores.

Reações

O general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, que foi ministro da Secretaria de Governo de Jair Bolsonaro, reagiu com indignação à declaração do presidente. Cruz ressalvou que fala apenas em seu próprio nome, mas fez críticas duras ao comentário presidencial.

"Só posso dizer que isso é covardia com a população e com as Forças Armadas, que trabalham e se dedicam às suas atividades, à defesa do Brasil e em auxílio à população em todos os momentos de necessidade, sempre dentro da lei", afirma o general.

Para Santos Cruz, com essa afirmação a seus apoiadores, Bolsonaro procura novamente forçar a politização indevida dos militares. "Isso é mais uma tentativa de enganar a população e arrastar as Forças Armadas para o centro de discussões políticas", acredita.

"A garantia da liberdade e da democracia são instituições fortes. O que enfraquece a democracia é o desprestígio e aparelhamento do político das instituições", reforçou.

Citado na fala antidemocrática de Bolsonaro, o ex-ministro Fernando Haddad (PT) também reagiu.  Imaginem o [Fernando] Haddad no meu lugar. Como estariam as Forças Armadas com o Haddad no meu lugar?", provocou o presidente. Haddad, que disputou com Bolsonaro a corrida ao Planalto em 2018, respondeu ao questionamento no Twitter:

Líderes de partidos no Congresso também criticaram a declaração do presidente.

“O papel das Forças Armadas está definido na Constituição, a qual todos devem obediência. A história nos mostra que toda vez que as Forças Armadas extrapolaram a sua missão, a experiência foi extremamente negativa”, afirmou o líder do PSDB, Rodrigo de Castro (MG).

Castro acrescentou que a democracia brasileira, apesar de consolidada, precisa ser fortalecida diariamente por todas as instituições. “Não há espaço para retrocessos e, sequer, para suposições ou ameaças de que as Forças Armadas poderiam atuar em sentido contrário”, declarou.

O líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ), declarou que ‘toda vez que a incompetência de Bolsonaro é exposta, ele reage mudando de assunto’. “Agora, diante do desastre de sua gestão no que se refere à vacina e ao Amazonas, ele volta a ameaçar com ditadura. Todos sabemos o papel das Forças Armadas: zelar pela defesa da pátria e dos poderes constitucionais, dentro do que estabelece a Constituição. Jamais fora dela”, disse.

Molon afirmou, ainda, que ‘é óbvio que não são as Forças Armadas que decidem se viveremos em uma democracia ou em uma ditadura’. O congressista listou, em seguida, algumas perguntas que, de acordo com ele, não são óbvias: “Quando todos seremos vacinados? Quando teremos um ministro da Saúde de verdade, e não um ajudante de ordens? Até quando brasileiros vão morrer de Covid graças à irresponsabilidade dele?”, questionou.

O senador José Serra (PSDB-SP) avaliou que a fala do presidente demonstra ‘uma visão autoritária em estado puro’. “Quem quer a democracia é o povo. E às Forças Armadas cabe servir à democracia. Como, aliás, elas têm feito nos últimos anos”, escreveu o parlamentar em suas redes sociais.

Já o líder da Rede no Senado, Randolfe Rodrigues (AP) disse que é preciso agir com "menos bravata e cortina de fumaça e mais solução dos problemas do povo". Randolfe defendeu que a prioridade agora deve ser fornecer cilindros de oxigêncio para os hospitais de Manaus, contratar mais doses de vacina contra o novo coronavírus e recuperar a economia para gerar empregos.

A líder do PSOL, deputada Sâmia Bomfim (SP), declarou que o impeachment do presidente é a única saída para frear a ‘sanha autoritária’ dele. Ela mencionou a dificuldade de obter autorização para uso emergencial da vacina contra a Covid-19 e a tragédia de Manaus, capital do Amazonas, que precisou transferir pacientes para outros estados por causa da falta de oxigênio. 

“A sanha autoritária de Bolsonaro não pode ser domada. Não há outra saída se não o impeachment. Com Bolsonaro, o país padece sem vacina, sem oxigênio em Manaus, sem política de emprego e renda, e com ameaças autoritárias diárias. Que mais forças possam se somar na luta pelo impeachment”, disse.

O responsável por receber e pautar pedidos de impeachment contra integrantes do Poder Executivo (como o presidente da República) é o presidente da Câmara. Neste caso, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que está perto do fim do mandato.

Até o momento, Maia já recebeu ao menos 60 pedidos de impedimento contra Bolsonaro, mas não pautou nenhum. Apenas uma das denúncias foi arquivada, logo no início da legislatura, em fevereiro do ano passado, por se tratar de um “documento apócrifo”.

Veja algumas das reações de parlamentares:

Defender "intervenção militar" é ver em Bolsonaro um líder fraco e incapaz

Os seguidores mais radicais acreditam que Bolsonaro não consegue cumprir suas promessas de campanha por conta de uma suposta interferência dos Poderes Legislativo e Judiciário e da sociedade civil – vistos por eles, de forma psicodélica, como um antro de comunistas. Mas, de forma colateral, estes mesmos seguidores reconhecem a incompetência de seu líder para avançar em suas pautas.

O presidente não consegue avançar, em parte, porque as promessas ferem a Constituição e a dignidade de uma parcela dos cidadãos e, com isso, é democraticamente contido (às vezes, só às vezes) pelas regras do jogo. Mas também porque não sabe governar.

Se fosse alguém mais equilibrado emocionalmente e competente politicamente, uma parcela maior dos direitos obtidos desde a redemocratização já teria ido para o vinagre. Por que uma parte do poder econômico elegeu Bolsonaro pouco se importando se o presidente implementaria uma ideologia de extrema-direita, excludente e violenta, desde que lucrasse com sua gestão. Tanto que, durante a pandemia, não foram poucos os empresários que deram declarações eugenistas sobre a morte de pobres e o coronavírus.

Como nunca precisou dialogar nos 28 anos em que permaneceu no parlamento, o presidente não sabe criar canais de construção junto ao Congresso. Teve que sair às compras de deputados e senadores através da concessão de cargos e garantir uma proteção – ainda que frágil – contra um processo de impeachment. Não é que dividiu poder. Entregou chaves de cofres.

Ao mesmo tempo, não sendo apto a liderar o enfrentamento nacional à pandemia de coronavírus, o que incluiria a articulação de outros poderes e entes da federação em um plano nacional, passou a defender uma política de terra arrasada, terceirizando a responsabilidade por mortos e desempregados a prefeitos, governadores e ministros do STF.

Quando fãs de Bolsonaro defendem que ele vire a mesa no meio do jogo para facilitar a vida do seu líder, acabam passando a mensagem de um presidente incapaz de encontrar o caminho do governo dentro das regras do jogo. Regras que ele aceitou ao concorrer para o cargo que hoje ocupa.

Propostas como essas, portanto, são declarações de apoio incondicional, mas também o reconhecimento de que eles acham, lá no fundo, que o governante pode agir como uma criança que, ao estar perdendo uma partida de War ou Banco Imobiliário, simplesmente dá um soco na mesa e joga as pecinhas para o ar.

Precisar da interferência de alguém armado para fazer valer sua vontade fora das regras do jogo é coisa de fracote. Precisar da ajuda de "juristas" que fazem contorcionismo técnico e moral para defender que a interferência de alguém armado faz parte da regra do jogo é ser duplamente fracote.

Contar com a ajuda de alguém armado para fazer sua vontade política é fácil, qualquer um consegue. Difícil é vencer através das regras, por sua própria capacidade. Isso não separa apenas os presidentes dos ditadores, mas também os líderes daquela escória que será, com o tempo, relegada ao esgoto da História.

Para compensar a incompetência, ameaças

Em meio à confusão promovida pelo seu governo no início atrasado da vacinação nacional contra a Covid-19, o presidente Bolsonaro achou tempo para fazer o que mais gosta: ameaçar o país com uma intervenção militar.

Na sua visão distorcida sobre a democracia, o presidente anunciou, e não pela primeira vez, que viver sob uma democracia ou uma ditadura é decisão das Forças Armadas. Seria uma ofensa às próprias Forças Armadas, pois elas existem justamente para defender a democracia, e não para acabar com ela.

Os militares deveriam dar uma nota oficial tirando dos ombros da instituição tal decisão, pois, a ser verdade o raciocínio de Bolsonaro, implantar uma ditadura militar no Brasil é apenas questão de gosto.

O uso dos militares para se defender quando sua atuação está sendo posta em dúvida é recorrente em Bolsonaro, e deveria ser rechaçado oficialmente. Bolsonaro não é mais um capitão do Exército, e sim um manipulador que se utiliza das Forças Armadas com fins políticos.

Quando um General da Ativa como Pazuello concorda em defender tratamento precoce com cloroquina, ou mente ao dizer que nunca fez isso quando documentos do seu ministério mostram o contrário, é o Exército que ele está maculando, induzido por Bolsonaro.

Criticar Bolsonaro, pedir seu impeachment, são atitudes políticas que não deveriam atingir os militares como instituição, mas àqueles que se dispõem a acompanhar as ordens absurdas do chefe momentâneo. Se alguns deles são da ativa, a coisa muda de figura.

O debate sobre a politização da campanha de vacinação  nacional contra a Covid-19 incorre em um erro fundamental, a comparação da atitude do presidente Bolsonaro com a do governador de São Paulo João Dória em face à pandemia e as maneiras de combatê-la.

Dória sempre esteve no lado certo, a favor do distanciamento social, do uso de máscara, e trabalhou corretamente para ter condições de fazer a imunização, mesmo que em alguns momentos tenha abusado do marketing político em favor de sua candidatura à presidência da República em 2022.

Mesmo que fosse tudo política, nesse caso o lado certo da política é forçar o começo da vacinação o mais rápido possível. E ele conseguiu fazer o governo Bolsonaro se mexer. Graças à sua iniciativa de fazer acordo com a farmacêutica Sinovac da China, deu condições ao Instituto Butantan de produzir a vacina CoronaVac, contra todas as ações políticas que o presidente da República engendrou para desqualifica-la e incutir no brasileiro desconfiança sobre a “a vacina chinesa do Dória”.

Bolsonaro comemorou quando a eficácia global da CoronaVac de 50,4% foi anunciada, dando ares de verdade à percepção popular de que uma vacina que tem 70% de eficácia global é melhor do que a de pouco mais de 50%, o que, para uma campanha maciça de vacinação para conter uma pandemia,  é irrelevante.

Os técnicos do Butantan ajudaram essa percepção negativa ao anunciarem com fanfarras os índices vistosos de 70% para casos leves e 100% para os graves, antes do dado global.O governador Dória, evitando anunciar a notícia, ajudou, dando a sensação de que só vai “na boa”, deixando para seus subordinados as notícias ruins, o que não era absolutamente o caso.

Mas a irresponsabilidade de Bolsonaro, ao desdenhar da única vacina que os brasileiros tinham à mão para iniciar a vacinação, depois de mais de 50 países do mundo, sempre com fins políticos de combater um potencial adversário em 2022, é incomparável.

Bolsonaro foi o único presidente da República ou Primeiro-Ministro do mundo a fazer campanha contra a vacinação. Ontem mesmo Freud pegou-o num ato falho que revela sua decepção pelo sucesso do início da vacinação em São Paulo. Começou uma frase, depois de ter ficado em um silêncio inusitado durante quase um dia, assim: “Apesar da vacina…”

Um verdadeiro líder político deveria ter comemorado o início da vacinação, em vez de tentar confiscar as doses do Estado que se preparou com a antecedência devida para produzir vacinas contra a Covid-19, para impedir que seu adversário político se sobressaísse.

O destino reservou a Bolsonaro derrotas políticas variadas e em sequência: o ditador Maduro, na Venezuela, se prontificou a ajudar o Amazonas com cilindros de oxigênio, e a vacina CoronaVac, da chinesa Sinovac, foi a única que restou para nossa vacinação. Só faltou mesmo um enfermeiro cubano para completar a série de infortúnios de um presidente que coloca a ideologia acima das necessidades do povo que preside.

Então, quem mantém a democracia?

Quem decide se o povo vai viver a democracia ou a ditadura não são as Forças Armadas. Qualquer intervenção em que os militares assumam o poder equivale a uma ruptura institucional e a um golpe de Estado. A Constituição Federal de 1988, suprema em nosso país, não prevê qualquer cenário em que as Forças Armadas possam assumir o poder, ainda que com missão e prazo delimitados.

Portanto, o que o presidente Jair Bolsonaro afirmou a apoiadores no último dia 18 foi o desejo já expresso em diversas outras ocasiões de estabelecer um retrocesso institucional no país, numa demonstração de que os entulhos autoritários permanecem na estrutura societária de uma forma mais profunda do que muitos imaginávamos.

Com as eleições presidenciais de 2018, o governo nascido das urnas tem exposto a adoção, por meio de leis e intervenções nas mídias digitais e em entrevistas aos jornais impressos e programas televisivos, de uma militarização das instituições do poder público e a implantação de ações mais violentas dos agentes repressivos, legitimando a já alta letalidade da segurança pública brasileira.

O governo federal, tendo no presidente a principal figura, alguns governadores estaduais e diversos parlamentares da base de apoio do chefe do executivo, tem sistematicamente proposto a violência como forma de enfrentar os problemas sociais, da violência urbana e políticos existentes cronicamente no Brasil produzidos por suas acentuadas desigualdades sociais.

Esses são os dilemas da atual conjuntura brasileira, marcada por uma democracia tutelada pelos militares e um Estado policial violento e repressor, disposto a calar o dissenso, que encontram num passado recente a sua origem.

Países que não completaram o exame dos períodos de conflito, violência e violação sistemática dos direitos humanos praticados pelo Estado, a exemplo do Brasil, que não enfrentou os legados de crimes cometidos durante o regime ditatorial entre os anos 1964 e 1985, não conseguiram restabelecer os valores e a ordem moral quebrada que são necessárias para que o “Nunca Mais” seja uma realidade ao fazer parte do aprendizado coletivo para a democracia.

Acuado com o crescimento da pressão da sociedade nas redes contra a sua negligência política diante do avanço da pandemia no Brasil, Bolsonaro volta a flertar com o autoritarismo e incitar um levante dos seus apoiadores e das Forças Armadas. Não há dúvidas da disposição do Bolsonaro por uma iniciativa golpista, mas suas ameaças, ainda não traduzidas em gestos, não têm sido refutadas veementemente como e por quem deveriam.

Democracia resiste a Bolsonaro? O teste não foi 2019, mas será 2022

Quando a vitória de Jair Bolsonaro à presidência da República despontava no horizonte, em outubro de 2018, durante uma campanha em que ele não teve pudores de atacar direitos fundamentais, 31% da população dizia haver muita chance de ocorrer uma nova ditadura, segundo o Datafolha. O número contrastava com os 15%, de fevereiro de 2014.

Em seus dois primeiros anos de governo tentou, das formas mais criativas e sem nenhuma cerimônia, retroceder em garantias a proteções sociais. Em alguns casos, foi bem sucedido, principalmente naqueles que dependiam diretamente da ação ou inação do Poder Executivo. Por exemplo, com o desmonte das estruturas de fiscalização, monitoramento e controle, o aumento na devastação ambiental já foi sentido internacionalmente. Enquanto isso, a liberação desenfreada de agrotóxicos será sentida no corpo desta e das futuras gerações.

O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal funcionaram, de acordo com seus interesses, como freios e contrapesos a propostas bizarras do governo. Como no bloqueio aos decretos que garantiriam um libera-geral para armas e munições, no projeto de lei que transformava rodovias em campos de batalha e na tentativa de implementar o "cada um por si e Deus por todos" da capitalização na Reforma da Previdência.

Enquanto isso, o discurso de apoio à letalidade e à impunidade empoderou a banda podre de policiais e militares, que se sentiu mais livre para atirar primeiro e checar depois. Da mesma forma, encheu de coragem grileiros, madeireiros, garimpeiros e latifundiários que operam fora da lei a passar por cima de qualquer um no caminho do "progresso".

Coquetéis-molotov foram atirados. Jornalistas, artistas e intelectuais, atacados. Mas isso nem se compara ao que aconteceu com camponeses e populações tradicionais, como, por exemplo, os Guajajara, assassinados em série. Ou com a população negra periférica – que se tornou carne ainda mais barata no mercado – a exemplo das execuções absurdas do músico Evaldo dos Santos e do catador de recicláveis Luciano Macedo, em Guadalupe, e da estudante Ágatha Félix, no Complexo do Alemão, todos no Rio de Janeiro.

O grosso da população incendiada no período eleitoral voltou ao "normal" após a apuração dos votos da mesma forma que houve uma descompressão após o impeachment. A percepção de que as instituições e a sociedade não seriam suficientemente fortes para impedir uma ditadura foi se desfazendo ao longo do ano. Em 2020, um ano após a eleição de Bolsonaro, o Datafolha apontava a queda para 21% da parcela da população que acredita haver muitas chances de uma nova ditadura. Menos que em 2018, mais que em 2014.

Mesmo com o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes enchendo a boca para falar do AI-5, o ato castrador de direitos, liberdades e vidas da última ditadura, com o objetivo de desestimular manifestações de rua contra o governo e contra as reformas, 49% dos brasileiros não acreditam na chance de uma nova ditadura, enquanto que, em outubro de 2018, a opinião era compartilhada por 42%. Detalhe: a esmagadora maioria dos brasileiros não sabe o que foi o AI-5, segundo a pesquisa.

O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, começou a falar como Olavo de Carvalho, normalizando o AI-5, negando números do desmatamento, discursando em carros de som de manifestações, mas as Forças Armadas não se mostraram interessadas em referendar todos os pendores autoritários do presidente. E eles foram muitos.

"Por vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos… e se isso acontecer. Só vejo todo dia a roda girando em torno do próprio eixo e os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!" A declaração do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, postada em seu Twitter, em setembro de 2019, foi prontamente rechaçada por políticos de vários matizes ideológicos e pela Ordem dos Advogados do Brasil. Não causaria tanto arrepio se o governo de seu pai não manifestasse desprezo por instituições democráticas.

Naquele momento, o filósofo Paulo Arantes, um dos mais importantes pensadores brasileiros, falou sobre o componente revolucionário no bolsonarismo e como o presidente estava comendo instituições – Ministério Público, Receita Federal, Coaf, Polícia Federal – em nome de seu projeto de poder.

"Pode chegar o momento, daqui a três anos, em que Bolsonaro vai dizer 'não admito nenhuma alternativa que não seja minha reeleição'. Como já disse 'não admito qualquer coisa que não seja minha vitória', na eleição do ano passado", analisou Arantes.

Ele fez uma comparação com o bolivarianismo do nosso vizinho ao Norte. "No sentido mais exagerado, o espelho simétrico de um bolsonarismo consolidado e triunfante, com uma reeleição em 2022 e uma outra eleição, possivelmente com o filho, em 2026, é a Venezuela", afirma.

Para ele, a direita liberal não sabe o que fazer. Pois, se há desgosto diante de temas de costumes e comportamentos, para os quais ela torce o nariz, por outro lado, Bolsonaro está realizando o programa econômico dela junto com o Congresso. "E ele sabe que o cacife dele é o único capaz de conter uma volta daqueles que eles consideram a esquerda, a oposição – que, também na visão deles, voltará com sangue nos olhos. Então, ele vai ser assim todo o dia, um ultraje por semana."

Questionado se o presidente odiava a democracia, ele afirmou: "Odiar a democracia pressupõe que ele tem um conhecimento a respeito da natureza intrínseca daquilo que está enfrentando. Ele não está nem aí, isso não existe para ele. Para ele, isso é alguma idiossincrasia vocabular de jornalista, mais nada". Não só de jornalista.

Se por um lado, vem crescendo a quantidade de pessoas que afirma que a ditadura deixou mais realizações negativas do que positivas, tem caído também o apoio à democracia sobre qualquer outra forma de governo

Descontando aqueles que não têm ideia do que seja uma democracia, sobram os autoritários e os que não veem benefícios no atual regime devido à sua condição social e econômica. Esse último grupo deseja mudança, não importa para onde. Esse sentimento ajudou a alimentar a campanha eleitoral de Bolsonaro. O, hoje, presidente tenta continuar capitalizando isso a seu favor, mesmo estando no poder. Para tanto, quer provar que está em uma guerra contra o mal, representado por tudo o que veio antes dele, inclusive a Constituição. Ele não apenas chama conquistas históricas de direitos de "entraves ao crescimento", mas reclama dos freios e contrapesos da democracia. Quer liberdade total.

Escolas como trincheira da democracia

A ditadura é tema que não faz parte de nosso cotidiano em comparação com outros países que viveram realidades semelhantes e que almejam ser democracias. Passadas mais de três décadas de seu término, começamos a esquecer e a relativizar. O então presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, disse que se sentia mais confortável de chamar o golpe de 1964 de "movimento". Bolsonaro já afirmou que concorda com a tortura – tortura, que é a prova de que um Estado não obedece regras e, portanto, qualquer cidadão pode ser vítima de arbitrariedade, quanto ao seu corpo, suas crenças, suas propriedades.

Lidamos com o passado como se ele tivesse automaticamente feito as pazes com o presente. Não, não fez. E, agora, estamos mergulhados em uma aventura autoritária achando que três décadas de construção de instituições vão nos manter seguros. Por enquanto, ajudaram a manter uma democracia capenga, que protege mais homens brancos do que o restante. Mas "as instituições [não] estão funcionando normalmente". Há fraturas e elas podem ser demolidas.

O Brasil em 2021 mostra o quão importante é a defesa da democracia nas escolas de todo o país. O governo e seus aliados travam uma batalha na educação, com o objetivo de impor sua visão de mundo limitada e avessa à pluralidade. Na internet, onde esse conflito já existia, eles vem conquistando corações e mentes de jovens que acham quer ser vanguarda é ser reacionário.

A história do período entre 1964 e 1985 deve ser contada nas escolas até entrarem nos ossos e vísceras de nossas crianças e adolescentes a fim de que nunca esqueçam que a liberdade do qual desfrutam não foi de mão beijada. Mas custou o sangue, a carne e a saudade de muita gente.

Só dessa forma, poderemos garantir que a minoria que acha preferível a volta da ditadura continue a ser vista pelo restante da sociedade como mal informada ou fora de si – e tratada com todo o carinho possível e paciência. Pois, talvez um dia, compreenda o que significa a liberdade que está diante de seus olhos, mas que não consegue enxergar.


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