28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Caso de Madalena, escrava desde os oito anos, expõe legado vivo da escravidão no Brasil

Publicado em 21/01/2021 12:00 -

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Madalena Gordiano tinha oito anos quando bateu em uma porta para pedir comida. Alguém convidou para entrar aquela menina negra que tinha uma irmã gêmea e outros sete irmãos. A dona da casa, uma professora branca, prometeu adotá-la. Sua mãe aceitou. Mas ela nunca foi adotada nem voltou à escola. Cozinhar, lavar, limpar banheiros, tirar o pó, arrumar a casa da família de Maria das Graças Milagres Rigueira se tornou sua rotina diária durante as quatro décadas seguintes. Esta vítima da exploração racista era uma escrava do século XXI na casa de uma família abastada em um prédio de apartamentos em uma cidade de Minas Gerais. Nunca teve salário, dias de folga ou férias, de acordo com os procuradores que investigam o caso. Quando Gordiano foi resgatada, em 27 de novembro, era uma mulher de 46 anos com cabelos muito curtos e grande dificuldade para se expressar.

“Fui pedir pão porque tinha fome, mas ela me disse que não me daria se eu não ficasse morando com ela”, contou a vítima ao Fantástico, que revelou o caso na véspera do Natal. O portal UOL descobriu outros detalhes perversos da história.

O inferno desta empregada doméstica compõe um exemplo extremo do legado que mais de três séculos de escravidão deixaram no Brasil. Principal destino do tráfico negreiro, o país foi o último das Américas a libertar, há 132 anos, a mão de obra trazida à força da África. As últimas amas de leite brasileiras são de uma geração atrás, mas o trabalho doméstico ainda é um ofício tradicional das mulheres negras.

Essa família respeitável na aparência e com fama de tradicional não se aproveitou apenas do trabalho de Gordiano. Ela a transformou em uma fonte de renda. Os Milagres Rigueira a obrigaram a se casar com um parente idoso quando ela ainda estava na casa dos vinte anos. Ele tinha 78 anos e uma pensão. Uma das melhores do Brasil, de militar. Combatente na Segunda Guerra Mundial, recebia mais de 8.000 reais por mês, que a mulher com quem nunca conviveu herdou depois de sua morte. Oficialmente, esse dinheiro era dela, mas só recebia migalhas. Os patrões ficavam com quase tudo.

Segundo o UOL, o dinheiro da empregada doméstica sem salário pagou o curso de medicina da filha da família. Porque, em outro fato que parece ter saído diretamente das relações entre senhores e escravos, Gordiano foi cedida a outro filho da família, o professor de veterinária Dalton Milagres Rigueira. Durante a escravidão era comum doar escravos aos filhos como presente de casamento ou incluí-los no testamento com o resto dos bens. Muitas vezes eles eram a parte mais valiosa do patrimônio.

A historiadora Claudielle Pavão considera que este “é um caso extremo de racismo estrutural que expõe de forma muito didática o que é a branquitude brasileira, forjada em um sistema escravagista”. Ela acrescenta que “muita gente dirá que acolher uma menina para fazer as tarefas domésticas em troca de comida e cama é muito melhor do que deixá-la na rua. É um pacto social que está tão normalizado que as pessoas não o consideram ofensivo”.

Uma pesquisa jornalística revelou que a irmã gêmea de Gordiano, Filomena, também vivia como empregada doméstica com outro ramo da mesma família, mas recebia um salário. Ela deixou seus patrões há uma década.

Depois da abolição, o Estado brasileiro atraiu mão-de-obra europeia com a concessão de terras e outras vantagens com o objetivo declarado de branquear a sociedade. Enquanto isso, os escravos recém-libertados foram deixados à própria sorte sem qualquer ajuda pública, enfatiza a historiadora. A desigualdade profundamente enraizada que persiste no Brasil de 2021 deriva desses séculos brutais.

Negros e mestiços são mais pobres que seus compatriotas brancos: representam 56% da população, mas 75% dos assassinados, 64% dos desempregados, 60% dos presos, 15% dos juízes e 1% dos atores premiados, de acordo com dados da agência Lupa. Suas famílias ganham a metade do dinheiro que as brancas. E vivem menos.

O caso da empregada doméstica submetida ao trabalho análogo à escravidão causou comoção no Brasil, como aconteceu um mês antes com a morte de um cliente negro, João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, espancado por dois seguranças brancos às portas de um supermercado Carrefour.

A empregada doméstica escravizada foi localizada pelas autoridades na casa em que o professor de medicina veterinária vivia com a esposa em Patos de Minas, uma cidade de 100.000 habitantes em Minas Gerais.

Gordiano dormia em um pequeno quarto sem janela. Não tinha telefone celular nem televisão. Sua única propriedade eram três camisetas. Seu único alívio, ouvir a missa numa Igreja Católica, onde aparentemente ninguém suspeitava do inferno em que vivia. Foi resgatada graças à denúncia de um morador de seu prédio; ela era proibida de conversar com qualquer vizinho. Os moradores sabiam de suas dificuldades porque ela passava bilhetes por baixo das portas. Com letra trêmula, ela lhes pedia dinheiro para comprar sabonete e outros produtos de higiene pessoal. As autoridades suspeitaram da pensão de viúva de Gordian anos atrás, mas o assunto foi arquivado por falta de provas. Uma ocasião perdida de salvá-la.

O professor Dalton Milagres Rigueira, acusado com sua mãe, Maria das Graças, do crime de manter a vítima em condições análogas à escravidão, explicou, ao ser interrogado, que a empregada doméstica era como se fosse da família. Ele acrescentou que “não (a) incentivou a estudar porque não achava que isso a beneficiaria”, de acordo com o Fantástico. A universidade onde ele trabalha o suspendeu. O advogado da família considera “prematura e irresponsável a divulgação do caso pelos procuradores” sem haver condenação e pede “uma reflexão cautelosa neste momento de confraternização cristã”. Mais de 55.000 brasileiros que trabalhavam em condições similares à escravidão foram resgatados nos últimos 25 anos, incluindo 14 empregadas domésticas no ano passado.

As empregadas domésticas, em sua maioria negras, são uma figura central na sociedade brasileira. O reconhecimento legal de seus direitos trabalhistas foi uma grande conquista para milhões de lavadeiras, passadeiras, babás, cozinheiras, jardineiros e motoristas particulares, mas provocou a indignação de alguns patrões. O classismo cotidiano é visível e de vez em quando é verbalizado. “Todo mundo indo pra Disneylândia. Empregada doméstica indo pra Disneylândia. Uma festa danada. Peraí. Vai passear ali em Foz de Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, cheio de praia bonita”, disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, em fevereiro de 2020, feliz com a alta do dólar.

Uma das primeiras cartas que se conhecem no Brasil em que um escravo denuncia maus-tratos é a que foi escrita por Esperança Garcia, com uma caligrafia bem cuidada, em setembro de 1770 ao governador do Piauí. Alfabetizada ilegalmente pelos jesuítas, ela é uma das personalidades históricas recentemente resgatadas. Garcia protestava contra o maltrato físico, além de implorar para que lhe fosse permitido se encontrar com o marido e batizar a filha. Acredita-se que ela tenha conseguido.

O cativeiro de Gordiano terminou graças a um vizinho anônimo, o que lhe permitiu desfrutar do Natal em um abrigo para mulheres à espera de poder se reunir, assim que a pandemia permitir, com alguns dos irmãos com os quais mendigava pão há quatro décadas.

Uma análise

O olhar sobre a escravidão adquiriu notoriedade nos últimos anos a partir dos ataques à figura de escravistas que, como já se analisou longamente, não podem ser julgados sob a ética e as normas do presente. Que o tráfico de escravos foi um capítulo aterrador, nefasto e ainda não superado é uma questão sempre digna de revisitar, embora partindo desse princípio de extemporaneidade que o situe em sua perspectiva histórica. O que exige um olhar muito exigente do presente é a herança viva da escravidão que perdura entre nós. Muito mais extensa do que se costuma considerar, e com tentáculos enormes em todos os contextos.

O resgate de Madalena Gordiano deve revirar consciências. E abrir debates.

Gordiano é um símbolo do legado da escravidão que perdura no Brasil, o último país das Américas a aboli-la, após 350 anos de uma exploração que deixou uma herança ainda insuportável. Trata-se de um caso extremo, que está nas mãos dos juízes, mas nos recorda que a exploração de pessoas sem recursos ― especialmente se forem mulheres ― e sem o poder conferido pela raça branca corrói nosso universo.

No Brasil, os negros e mestiços, herdeiros dos africanos, constituem 56% da população, mas sua expectativa de vida, sua renda, sua formação e sua segurança são sensivelmente menores que a da população branca. Cerca de 75% das vítimas de homicídios são negros ou mestiços. Nos últimos 25 anos, foram resgatadas no Brasil 55.000 pessoas sob condição análoga à escravidão, uma tarefa ainda mais complicada no caso das domésticas.

A desigualdade gerada pelo escravismo e que perdura atualmente é parte dos debates abertos no continente americano, dos protestos do Black Lives Matter nos Estados Unidos à mencionada ofensiva contra as estátuas escravistas. Mas a fenomenologia do abuso contra direitos básicos, com sabor a escravidão do século XXI, é plural e em muitos casos não tem a ver com um componente racista: inclui de crianças militarizadas à exploração sexual e trabalhos forçados de diversos tipos. A linha de avanço que une o Renascimento, o Iluminismo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e outras conquistas mais recentes ainda tem um longo caminho pela frente, inclusive nos países mais avançados. Não cabe complacência de nenhum tipo.


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