29/03/2024 - Edição 540

Brasil

Em meio à pandemia, Enem deve escancarar desigualdades educacionais

Publicado em 14/01/2021 12:00 -

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Em meio a um novo pico de casos e mortes pela covid-19 no Brasil, ganharam força as vozes em defesa de um novo adiamento da realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), cujas provas estão marcadas para os domingos de 17 e 24 de janeiro. O Ministério da Educação (MEC) descartou adiar o exame, e uma decisão da Justiça Federal referendou a decisão, sob o argumento de que, além dos prejuízos financeiros, mudar a data das provas prejudicaria a formação acadêmica dos estudantes. Às vésperas da realização do Enem ―principal forma de acesso a universidades públicas e privadas no país―, os mais de 5,8 milhões de inscritos e as comunidades acadêmica e médica brasileiras aguardam sob tensão o desfecho deste imbróglio, que ganha novos capítulos a cada dia. No último dia 13, a Justiça Federal do Amazonas suspendeu a realização do Enem no Estado, após a prefeitura de Manaus anunciar que não cederia as escolas municipais para a realização das provas. Já o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) enviou um ofício ao Governo federal pedindo a mudança da data.

Enquanto especialistas da área saúde temem que as aglomerações causadas pela aplicação das provas agravem a pandemia de coronavírus, educadores reiteram que ―independentemente do adiamento ou manutenção do Enem― os estudantes de baixa renda e oriundos de escolas públicas serão os mais prejudicados após um 2020 com escolas fechadas e oferta ensino a distância desigual. “O Enem precisa ser adiado, mas essa bandeira é insuficiente. É preciso também que o MEC coordene esforços junto à secretarias estaduais de educação e universidades para mexer em calendários e início de ano letivo, e assegurar que os alunos vão ter carga horária aula que devem ter”, explica Priscila Cruz, presidenta da organização Todos pela Educação.

A equação “não é simples” e envolve, por exemplo, garantir que os alunos prejudicados pelo fechamento das escolas vão ter a reposição completa das horas de aula perdidas, segundo explica Cruz. Para ela, o adiamento do Enem já deveria ter sido “o começo de uma série de ações que o MEC já deveria ter coordenado”. A educadora defende a aplicação de exames no meio do ano de 2021, o que, segundo ela, retiraria dos alunos “a pressão de terem que fazer a prova agora e dando o tempo para recuperar a aprendizagem perdida.” Contudo, ela vê o MEC, comandado pelo pastor Milton Ribeiro, como incapaz do ponto de vista gerencial de coordenar essas mudanças.

No pedido, rejeitado pela Justiça Federal na terça, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF), em conjunto com a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Educafro, entre outras entidades, criticavam a ausência de “clareza sobre as providências adotadas para evitar-se a contaminação dos participantes da prova, estudantes e funcionários que a aplicarão.” “O aumento da circulação do vírus nesta população pode ocasionar um aumento da transmissão nos grupos mais vulneráveis”, complementava o Conass naquele mesmo dia, em ofício enviado ao MEC. A Defensoria já informou que vai recorrer da decisão.

Para a juíza Marisa Cucio, da 12.ª Vara Cível Federal de São Paulo, as medidas de segurança adotadas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) Inep, órgão do MEC responsável pela aplicação da prova, “são adequadas para viabilizar a realização das provas nas datas previstas, sem deixar de confiar na responsabilidade do cuidado individual de cada participante e nas autoridades sanitárias locais que definirão a necessidade de restrição de circulação de pessoas, caso necessário”, escreveu ela em sua decisão. Entre as medidas estão o uso obrigatório de máscaras durante toda a realização da prova; a contração de 200.000 salas para a aplicação da prova, em contraste com as 140.000 de 2019; locais de provas ocupados com cerca de 50% da capacidade; e a higienização das salas de aula antes e depois dos exames. Pessoas que estiverem com covid-19 ou sintomas de outras doenças infectocontagiosas podem solicitar a reaplicação das provas, prevista para 23 e 4 de fevereiro.

A enfermeira epidemiologista Ethel Maciel prevê que as pessoas com sintomas leves de covid-19 ou que foram contaminadas e estão na fase pré-sintomática, além dos casos assintomáticos, não deixarão de fazer a prova. “Você coloca todas essas pessoas juntas no meio da aceleração da doença, com Estados beirando o colapso, e temos a possibilidade de piorar a situação.” Ela lembra que a nova cepa do vírus surgida no Reino Unido —e que já chegou ao Brasil— é mais contagiante sobretudo na faixa etária dos 20 anos.

Aumento da desigualdade

O Governo Jair Bolsonaro pretendia aplicar o Enem em novembro do ano passado, mas a estudantes e especialistas foram unânimes em pedir pelo adiamento. Na ocasião, a pressão surtiu efeito. Agora, a questão é “mais delicada”, segundo explica Valesca Mota, pedagoga que atua no cursinho pré-vestibular comunitário da Rede Ubuntu Educação Popular. “Conversando com os alunos a gente percebe que alguns querem fazer mesmo estando inseguros, porque adiar o Enem significa também adiar as angústias e a ansiedade”, explica. Ela se diz a favor do adiamento uma vez que “a questão sanitária é mais preocupante e envolve a vida dos candidatos e seus familiares.” Lembra que, além das aglomerações nos locais de provas, muitos estudantes demoram muitas horas e utilizam vários transportes coletivos no deslocamento para fazer o Enem. “Mas se adiasse até maio, que era das opções, não mudaria muita coisa. As pessoas não estariam vacinadas e não haveria reposição das aulas perdidas”, pondera.

Assim, Mota coincide com Cruz, do Todos Pela Educação, ao cobrar um adiamento que viesse seguido de “um plano concreto” e em “conjunto com as escolas e o ensino médio”, de modo a garantir um retorno seguro às aulas e a reposição das horas de aula perdidas. Mantido o Enem, ela acredita que não há tempo hábil para o poder público tomar medidas acadêmicas para amenizar a desigualdade entre jovens da rede pública e privada de ensino. Resta, agora, garantir uma “rede de apoio” para “trabalhar o emocional e o psicológico desses jovens.” E também cobrar para que o poder público garanta os protocolos de segurança durante a realização da prova.

Na última semana, ocorreram os vestibulares de duas das maiores instituições de ensino superior públicas do Brasil. A Unicamp e a USP aplicaram as primeiras provas das primeiras fases dos processos seletivos para as universidades paulistas para mais de 200.000 candidatos. Além disso, lembra Cruz, universidades privadas estão aplicando seus próprios vestibulares. “Qualquer posicionamento deve ser geral e valer para a Fuvest [que aplica o vestibular da USP], para a Unicamp e todos os vestibulares que estão acontecendo em janeiro”, argumenta a presidenta do Todos pela Educação. “Adiando apenas o Enem, estudantes vão ficar sem ano letivo enquanto outros começam as aulas. Pode gerar ainda mais desigualdade entre jovens brasileiros”, acrescenta.

Apesar das medidas para evitar o contágio anunciados pela Fuvest, houve filas e aglomeração nos arredores dos locais de provas. A abstenção neste ano foi de 13,2%, enquanto no início do ano passado foi de 7,9%. “Uma coisa é ir votar e ficar minutos numa fila. Outra coisa é ficar cinco horas num espaço. As escolas [que servirão de locais dos exames] não possuem condições semelhantes, algumas não tem fluxo de ar adequado”, argumenta a enfermeira infectologista. “Estamos vendo uma segunda mais agressiva que a primeira onda, mas não estamos vendo nenhuma medida. E promovendo o erro.”

De acordo com os dados da última edição da avaliação, 22,4% dos estudantes não tinham acesso à internet, e 46% não tinham computador em casa. Considerando que a situação sanitária decorrente do novo coronavírus deixou as escolas brasileiras fechadas por praticamente o ano todo, o déficit de aprendizagem deve se refletir na prova.

Especialistas acreditam que a prova deste ano vai escancarar ainda mais as desigualdades educacionais do Brasil.

"Importante frisar que esta desigualdade não deve ser apenas entre estudantes de escolas públicas e privadas de alto nível [como nas edições anteriores], mas entre os próprios estudantes da escola pública, que formam um grupo bastante heterogêneo", afirma o ex-secretário de Educação de São Paulo Alexandre Schneider, presidente do Instituto Singularidades e pesquisador da Universidade de Columbia e da Fundação Getúlio Vargas.

"Os estudantes das escolas privadas partirão de uma posição ainda mais vantajosa do que nos anos anteriores e haverá uma maior disputa entre os alunos de escola pública nas vagas reservadas às políticas de cotas, o que prejudicará o acesso dos mais vulneráveis à universidade", acrescenta.

Para a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, o momento é de "um processo amplo de exclusão escolar" e de "aprofundamento das desigualdades educacionais".

"Esse Enem será reflexo dessa exclusão e marginalização dos grupos em maior situação de vulnerabilidade", afirma. "O que deveria ser um meio de democratização do acesso ao ensino superior está brutalmente prejudicado por esse cenário."

"Nesses dez meses sem aulas presenciais, em 2020, as condições e oportunidades que os alunos tiveram de aprendizagens foram muito diferenciadas", afirma a pedagoga Anna Helena Altenfelder do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Ela ressalta o pouco acesso à internet de parcelas significativas da população, além da falta de acesso a equipamentos ou mesmo de condições de moradia que possibilitem o estudo necessário para sucesso no exame.

"A pandemia revelou também a insuficiência da aprendizagem remota e ampliou a consciência do papel fundamental da interação e das relações interpessoais no processo de aprendizagem", acrescenta.

Aspectos emocionais

Além da falta de acesso às aulas, o aspecto emocional do ano atípico também joga contra os estudantes. Coordenador do curso de pedagogia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o pedagogo Ítalo Curcio atenta para este fator como algo a ser considerado, além da defasagem de conteúdo aprendido, nas discrepâncias que devem ser identificadas na prova deste ano.

"Penso que haverá uma distância muito maior [do que o usual] entre um pequeno grupo de bem preparados, e o grupo dos preparados medianamente e os não preparados", afirma. Neste quesito, deve pesar a falta das aulas presenciais. "Normalmente, ao longo do ano, cria-se um clima de motivação para a realização do exame. Existem incentivos por parte da escola, por meio dos professores, colegas e amigos", comenta.

Curcio lembra que muitos colégios realizam simulados e encontros específicos para revisão do conteúdo e "um conjunto de ações especialmente preparadas para mexer com o jovem". "Isto, neste ano, não ocorreu como o habitual, pelo menos com relação à maioria dos alunos das redes públicas de ensino e mesmo em algumas escolas da rede não pública", aponta.

De acordo com os pesquisadores esse desnível atípico de aprendizado deve seguir sendo visível nas próximas edições do Enem, demonstrando como o ano de 2020 afetou todas as séries do ensino. Diversos estudos têm evidenciado isso.

Em novembro, a revista científica Educational Researcher publicou uma pesquisa cravando que três meses de fechamento de escolas causam déficit de aprendizagem de 50% a 63% em matemática e 32% a 37% em leitura na educação básica — se não recuperada completamente, é uma lacuna que o estudante vai levar por toda a vida escolar.

"Em uma sociedade desigual, com baixa inclusão digital e em que as experiências de ensino remoto infelizmente não tiveram sucesso, é esperado que esta geração de estudantes precise de um maior apoio das escolas. E por mais de um ano", diz Schneider.

Pellanda acredita que futuras pesquisas ainda precisarão ser feitas para mapear como a exclusão escolar e as desigualdades foram aprofundadas pela pandemia. Só assim, segundo ela, será possível planejar meios de reduzir os impactos de médio e longo prazos na vida desses estudantes. A perda de um ano de estudos é especialmente grave para aqueles que já enfrentam em suas vidas os desafios socioeconômicos, afirma.

Camadas de desigualdade

Para José Francisco Soares, especialista em mensuração de desigualdade de ensino que entre 2014 e 2016 foi presidente do Inep, órgão do Ministério da Educação responsável pela aplicação do Enem e das demais avaliações da educação no país, o Enem vai escancarar novas camadas de desigualdade na educação.

A avaliação do especialista, que também é professor emérito da UFMG e cocriador do Indicador de Desigualdades Educacionais e Aprendizagens (IDeA), e que essas novas camadas de desigualdade farão com que alunos com melhores condições de estudar – por exemplo, os que tiveram segurança alimentar, acesso à internet e às aulas – ou que já tivessem concluído o ensino médio terão mais chance de conseguir vagas em universidades via Enem.

Isso em detrimento dos alunos mais vulneráveis, que ficarão mais distantes do ensino superior e, como consequência, com menos chance de renda maior e de oportunidades melhores de empregos no futuro. Os mais prejudicados, na visão de Soares, tendem a ser os alunos de ensino médio que não conseguiram acompanhar as aulas.

Criaria-se, assim, uma nova exclusão, mesmo entre grupos que tradicionalmente já tinham dificuldades de acesso ao ensino superior.

Para Soares, a despeito dos novos entraves para a realização do Enem, depois de um ano de ensino remoto e em meio a um novo pico de casos de covid-19 no país, não faria sentido adiar o exame novamente – ele avalia que o Inep tem estrutura logística suficiente e que, ao adiar as provas, jogaria-se no aluno o ônus por seu possível mau desempenho, em vez de tratar o problema como algo estrutural.

"Prefiro dizer: há um problema novo (de desigualdade) que a gente precisa tratar", opina.

O tema, porém, tem despertado intensos debates nos últimos dias. Na sexta-feira (8/1), a Defensoria Pública da União entrou com uma ação na Justiça pedindo o adiamento do exame, afirmando que "não há maneira segura para a realização de um exame com quase seis milhões de estudantes neste momento, durante o novo pico de casos de covid-19".

Educação pode retroceder até quatro anos devido à pandemia

A crise do novo coronavírus, que causou o fechamento dos portões escolares em março de 2020 e retirou milhões de crianças e adolescentes das salas de aula no país, pode provocar um retrocesso de quatro anos na educação brasileira.

Segundo um estudo do Centro de Aprendizagem em Avaliação e Resultados para o Brasil e a África Lusófona (FGV EESP Clear), encomendado pela Fundação Lemann, os alunos deixaram de aprender mais em matemática em comparação com língua portuguesa e, na maioria dos casos, os mais prejudicados são aqueles do Ensino Fundamental. “O custo de os alunos não terem aula nem serem compensados com um ensino remoto de qualidade não é transitório. Trata-se de um problema de médio a longo prazo para a sociedade e que certamente vai gerar consequências negativas no crescimento econômico do país”, afirma André Portela, pesquisador líder do estudo e professor Políticas Públicas da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas.

A simulação considerou três cenários, todos tendo como referência o aprendizado em língua portuguesa e matemática de estudantes nos anos finais do Ensino Fundamental (5º ao 9º) e no Ensino Médio. Numa conjuntura otimista, na qual os alunos aprendem no ensino remoto tanto quanto aprendem no presencial, a proficiência em português pode ter regredido em três anos, ainda que as atividades escolares tenham sido realizadas. Enquanto isso, no contexto intermediário, que leva em consideração que os alunos aprendem no ensino não presencial proporcionalmente às horas dedicadas a atividades escolares, a perda é superior aos 30% nos dois segmentos. Ou seja, equivalente ao resultado de proficiência do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2017. No cenário pessimista, no qual os alunos não teriam aprendido nada com o ensino remoto, ambos os ciclos perdem mais de 70% no aprendizado.

O crescimento da desigualdade também foi apontado no estudo. Os grupos mais prejudicados são formados por alunos do gênero masculino, que se autodeclaram pardos, pretos ou indígenas, com mães que não concluíram o Ensino Fundamental e que moram nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Já os alunos menos prejudicados são, na maioria dos casos, do gênero feminino, que se declaram brancas, e com mães que estudaram, no mínimo, até o fim do Ensino Médio. “A pandemia aprofundou problemas que já existiam, como a desigualdade, a proficiência e a evasão escolar. Por causa do acesso desigual é preciso mensurar individualmente, a partir de avaliações diagnósticas, o nível de cada aluno”, explica Daniel de Bonis, diretor de Políticas Educacionais na Fundação Lemann. Segundo de Bonis, apesar da crise, essa pode ser uma oportunidade para a educação ser valorizada. “Todas os países que melhoraram a qualidade do ensino têm em comum a valorização da educação para o bom desenvolvimento da sociedade”, completa.

Para os especialistas, é necessário que os governos se unam para mitigar os retrocessos e promover a volta às aulas presenciais de forma segura o mais rápido possível. “Quando o aprendizado não acontece no tempo certo, é preciso aumentar os esforços e os custos para recuperar o tempo perdido. Isso inclui readequação do currículo, aumento da carga horária e do número de professores”, diz Portela, que afirma que o investimento necessário para reduzir a perda de aprendizado varia conforme a idade do aluno, mas afeta toda uma geração de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos.


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