29/03/2024 - Edição 540

Poder

Tentativa de golpe de Trump é lição para o Brasil se preparar para 2022

Publicado em 08/01/2021 12:00 -

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Manifestantes a favor de Donald Trump invadiram o Congresso dos Estados Unidos, enquanto deputados e senadores debatiam a ratificação da eleição de Joe Biden. A cena, que viralizou imediatamente pelo mundo, mostra o que acontece quando um presidente ataca sistematicamente instituições da República, minando a credibilidade do sistema eleitoral e reduzindo o respeito aos outros poderes.

Ao mesmo tempo é um exemplo (leve) do que pode ocorrer daqui a dois anos no Brasil, considerando que Jair Bolsonaro tem acusado o sistema eleitoral brasileiro de fraude sem apresentar provas enquanto seus aliados e seguidores atacam instituições. Vale lembrar que também tivemos por aqui tentativa de invasão do Congresso Nacional e lançamento de rojões contra o Supremo Tribunal Federal. Isso sem contar ato pedindo o fechamento dessas instituições que contou com discurso do presidente da República.

Trump jogou gasolina na fogueira ao convocar um grande protesto em Washington D.C. e incentivar que seus seguidores pressionassem o Parlamento a não confirmar o democrata – apesar da sessão de hoje ser mera formalidade, uma vez que os votos do colégio eleitoral já foram dados.

Depois que imagens mostraram manifestantes forçando a entrada em cima de agentes de segurança no Capitólio, Trump foi às redes sociais pedir que os atos fossem pacíficos. Hipocrisia de quem, com o leite derramado, quer fugir da responsabilidade.

Ele não precisava pedir uma invasão ao Congresso para ser responsável quando isso ocorresse. Durante semanas, seus discursos inflamados, acusando as eleições de terem sido roubadas, foram decantando em pessoas que nele confiam o entendimento equivocado de que há um golpe de Estado em curso contra ele. Muitos de seus seguidores não percebem que estão atacando a democracia. Acreditam estar salvando-a.

Ao mesmo tempo, dentro do Parlamento, um grupo de deputados e senadores republicanos fazia de tudo para levar a cabo a tentativa de golpe de Trump, mesmo sem chances de sucesso. Foram beneficiados pela interrupção das sessões devido à ocupação dos plenários.

Enquanto isso, num certo país da América do Sul…

Assim como Trump, que perdeu a eleição nos EUA e culpou o sistema eleitoral, Bolsonaro ataca a urna eletrônica, expandindo uma dúvida antes restrita a pequenos grupos que acreditam em teorias da conspiração – o que pode ser útil para questionar o resultado das eleições em 2022, caso lhe seja desfavorável. O presidente defende que as urnas produzam um comprovante impresso, mesmo que especialistas afirmem que isso só tumultuaria o processo.

A campanha de desinformação contra nosso sistema eleitoral levada a cabo por bolsonaristas tem surtido efeito, tanto que pesquisa Datafolha, publicada nno último dia 3, apontou que 23% da população quer a volta do voto em papel, ironicamente mais suscetível a fraudes e que leva mais tempo para ser apurado.

Jair ajuda a pavimentar sua narrativa para a batalha que irá logo adiante dentro de um projeto maior. Assim como nos EUA, declarações como essas, sem provas, vindas de um presidente, fragilizam instituições. Simultaneamente, o governo Bolsonaro já tentou sequestrar ou enfraquecer Coaf, Receita Federal, Polícia Federal, Procuradoria-Geral da República, instituições de fiscalização e controle.

No primeiro turno das eleições do ano passado, milícias bolsonaristas se aproveitaram de problemas do Tribunal Superior Eleitoral (que em nada afetaram a segurança da votação) para colocar sob suspeita as eleições nos municípios em que seus candidatos não foram bem votados e para lançar um véu de dúvida sobre o sistema como um todo. Na mesma época, o presidente demorou para reconhecer a vitória de Joe Biden. "Eu estou aguardando um pouco mais", disse. "Teve muita fraude lá, isso ninguém discute."

Corrosão das instituições

Colocar em dúvida o resultado tem servido, nos Estados Unidos, para tentar melar o pleito, mas também para que Trump seja visto como vencedor real pelos seus seguidores fiéis, mantendo sua força, e, ao mesmo tempo, dificultar que ele seja processado por crimes fiscais após deixar o cargo e reduzir a legitimidade do governo do adversário.

O efeito colateral de dobrar o país às necessidades individuais é uma população que acreditará menos no sistema eleitoral, nas instituições e em tudo aquilo que a mantém conectada como país.

Em março do ano passado, sem apresentar evidências, Bolsonaro afirmou que havia sido eleito no primeiro turno de 2018, mas foi roubado. Houve forte reação por parte de ministros do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal, que reafirmaram a lisura e a confiança no sistema. Foi o bastante para causar estrago e plantar dúvida.

No Brasil, instituições são menos robustas do que nos EUA. Aqui, há sempre um militar de alta patente que ameaça a Suprema Corte pelo Twitter, milhares de pessoas que vão às ruas pedir autogolpe e um bom punhado de saudosistas que sofrem por não vivermos em uma ditadura – apesar da tortura e da morte continuarem pela mão da parcela bandida de agentes de segurança nas periferias.

O risco EUA: o que acontece lá é imitado por aqui

O que aconteceu no Capitólio é uma lição para o Brasil se preparar para 2022. Não uma lição apenas para bolsonaristas, mas para todos os que prezam pela democracia. Pois, por aqui, com uma democracia mais jovem, instituições mais frágeis e Forças Armadas com uma relação, não raro, promíscua com o presidente, podemos não ter um desfecho republicano.

Milhares de seguidores de Bolsonaro insatisfeitos com uma derrota de seu herói vão se satisfazer com protestos contra o resultado ou vão querer invadir instituições e atacar jornalistas? O que pode acontecer se bolsonaristas, que foram generosamente armados pelo presidente nos últimos anos, resolvam ir às ruas e encontrarem com soldados, cabos e sargentos simpáticos a Bolsonaro? O que acontece quando um governo com laços com milícias é profundamente contrariado?

Juristas veem possível crime de responsabilidade

 A declaração do presidente Jair Bolsonaro de que o Brasil pode ter em 2022 “um problema pior do que os Estados Unidos”, em questionamento à lisura do processo eleitoral, pode ser enquadrada como crime de responsabilidade, segundo juristas.

Passíveis de perda do cargo via processo de impeachment, os crimes de responsabilidade se referem a “atos do presidente da República que atentarem contra a Constituição”. A lista inclui ações que impeçam o “livre exercício” de outros Poderes ou que violem “direitos políticos, individuais e sociais”. Para o advogado Fernando Neisser, membro do Instituto Paulista de Direito Eleitoral (Ipade), as declarações de Bolsonaro cruzam a fronteira da liberdade de expressão na medida em que, pela autoridade do cargo, “arrastam parcelas da população para teorias da conspiração, com efeito grave para a democracia”.

“Todo presidente se sujeita a um regime especial de responsabilização no exercício do mandato. Uma declaração pública, na porta do Palácio do Alvorada, não tem como dissociar da figura presidencial. Há um dever de comedimento e respeito às instituições, em que ele claramente falha ao se voltar contra o sistema eleitoral. O conceito de crime de responsabilidade é mais amplo do que, por exemplo, os que constam no Código Penal, cuja descrição é muito precisa. O objetivo é impedir que o ocupante da cadeira presidencial transborde seus poderes. E quem conduz a eleição é outro Poder, o Judiciário”, afirmou Neisser.

Para o jurista Pedro Serrano, especialista em Direito Constitucional, a caracterização de crime de responsabilidade não pode se basear em casos pontuais, mas sim num “ato contínuo” que afronte os dispositivos da lei. Ele reitera, no entanto, que o presidente está sujeito a “restrições na liberdade de expressão” pelo cargo ocupado.

“É ruim para o país que o presidente ataque ou fique ameaçando a democracia. A Constituição traz uma visão mais restrita, de que não basta mera inconstitucionalidade, é preciso algo que ‘atente’, que seja grave. Não vejo ainda, portanto, um crime de responsabilidade caracterizado neste caso. É diferente, por exemplo, do que vem ocorrendo no combate à pandemia, no qual a continuidade de falhas graves, ações e omissões, coroadas pela falta de planejamento para a vacinação, caracterizam caso de impeachment, por representar um verdadeiro atentado contra a saúde e o direito à vida”, avalia.

Numa extensa nota de 48 linhas, enumerada em 10 itens, o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, se manifestou sobre os últimos episódios nos Estados Unidos e tratou também da democracia no Brasil.

Mesmo sem citar Jair Bolsonaro, o recado foi direto para o presidente e suas declarações que colocam em dúvida o sistema eleitoral do país.

Barroso reagiu de forma dura. “Uma importante lição da história é a de que governantes democráticos desejam ordem. Por isso mesmo, não devem fazer acenos para desordens futuras, violência e agressão às instituições”, afirmou Barroso no encerramento de seu texto. 

Para mostrar que o atual sistema eletrônico de votação no Brasil é sim confiável, o presidente do TSE lançou mão de alguns argumentos, como as eleições limpas de Fernando Henrique Cardoso a Jair Bolsonaro e de outros milhares de agentes políticos. “Jamais houve qualquer razão para supor que os resultados proclamados não corresponderam à vontade popular manifestada nas urnas”.

Barroso voltou a lembrar que a não implantação do voto impresso foi uma decisão do STF, que concluiu que a impressão colocaria em risco o sigilo e a liberdade de voto, além de um custo extra de 2 bilhões de reais.

E lembrou que os Estados Unidos adotam o voto impresso e que nem por isso deixaram de ser registradas dezenas de ações judiciais contestando resultados eleitorais.

E voltou a se referir de forma crítica ao presidente da República, novamente sem citar seu nome. “A vida institucional não é um palanque e as pessoas devem ser responsáveis pelo que falam. Se alguma autoridade possuir qualquer elemento sério que coloque em dúvida a integridade e a segurança do processo eleitoral, tem o dever cívico e moral de apresentá-lo. Do contrário, estará apenas contribuindo para a ilegítima desestabilização das instituições”

Leia abaixo a íntegra da nota do presidente do TSE.

1. Os eventos ocorridos nos Estados Unidos no dia 6 de janeiro de 2021 constituíram atos de incivilidade e de ataque às instituições. A alternância no poder é rito vital da democracia e não aceitá-la é vício dos espíritos autoritários, que não respeitam as regras do jogo.

2. Sob o atual processo eletrônico de votação brasileiro foram eleitos os Presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro, além de milhares de outros agentes políticos. Jamais houve qualquer razão para supor que os resultados proclamados não corresponderam à vontade popular manifestada nas urnas.

3. Nunca se apresentou perante o Tribunal Superior Eleitoral qualquer evidência ou mesmo indício de fraude. No Brasil, fraude havia no tempo do voto em cédula, o que está vastamente comprovado nos registros históricos. Nesse momento da vida brasileira, não é possível a implantação do voto impresso, por força de decisão do Supremo Tribunal Federal. O Tribunal concluiu que a impressão colocaria em risco o sigilo e a liberdade de voto, além de importar em um custo adicional de quase R$ 2 bilhões, sem qualquer ganho relevante para a segurança da votação.

4. Cabe lembrar que, nos Estados Unidos, existe o voto impresso, o que não impediu o ajuizamento de dezenas de ações para questionar o resultado eleitoral, todas sem êxito. Tudo o que não se precisa no Brasil é a judicialização do processo eleitoral. Aliás, o voto impresso tampouco impediu que, naquele país, grupos extremistas, inconformados com a derrota, vandalizassem a sede do Poder Legislativo.

5. Cabe a este Tribunal esclarecer, uma vez mais, que as urnas eletrônicas brasileiras são auditáveis e fiscalizáveis pelos partidos políticos, pelo Ministério Público, pela Ordem dos Advogados do Brasil e por outras instituições, antes, durante e após o processo eleitoral. A seguir, breve explicação sobre o funcionamento do sistema.

6. As urnas eletrônicas não operam em rede, isto é, não têm conexão via internet ou bluetooth. Por essa razão, são imunes a ataques hackers. Além disso, os programas para votação, apuração e totalização nelas inseminados são submetidos à conferência dos partidos, do Ministério Público, da Polícia Federal, da OAB e de outras instituições. Em seguida, recebem o que se denomina lacração, procedimento que impede a sua adulteração.

7. No dia das eleições, antes do início da votação, a urna imprime um boletim, chamado de zerésima, que comprova que não há qualquer voto nela. E, ao final da votação, ela emite o boletim de urna, com o nome e o número de votos de cada um dos candidatos. Ou seja: o resultado já sai impresso e é possível conferi-lo com os dados divulgados pelo TSE, após a conclusão da totalização.

8. Cabe acrescentar que mais de uma centena de urnas prontas para a votação são sorteadas em todos os estados para um procedimento de auditoria feito no dia da eleição, perante todos os partidos e aberto ao público. Nele, os representantes de partidos votam em cédulas de papel e esses votos são digitados na urna eletrônica, na presença de auditoria externa, comprovando-se que o resultado da totalização das cédulas de papel coincide com o resultado das urnas eletrônicas. Esse procedimento, que é filmado, demonstra que não houve adulteração, subtração ou acréscimo na votação das urnas eletrônicas, revelando-se verdadeiro teste de integridade.

9. A vida institucional não é um palanque e as pessoas devem ser responsáveis pelo que falam. Se alguma autoridade possuir qualquer elemento sério que coloque em dúvida a integridade e a segurança do processo eleitoral, tem o dever cívico e moral de apresentá-lo. Do contrário, estará apenas contribuindo para a ilegítima desestabilização das instituições.

10. Por fim, uma importante lição da história é a de que governantes democráticos desejam ordem. Por isso mesmo, não devem fazer acenos para desordens futuras, violência e agressão às instituições.


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