28/03/2024 - Edição 540

Mundo

Trump marca o fim do mandato com afronta à democracia e ao Ocidente

Publicado em 08/01/2021 12:00 -

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De tuíte em tuíte, de comício em comício, Donald Trump passou os últimos dois meses esticando a corda imaginária da eleição que dizia ter conseguido “de lavada” mas que lhe foi roubada por meio de fraudes e manobras espúrias. Todas as acusações e tentativas de ação legal para anular a vitória de Joe Biden ruíram diante dos fatos, mas o presidente persistiu na cruzada, instigando seus apoiadores — que são multidões — a resistir até o fim, com violência, se fosse preciso. Na quarta-feira (6), dia da confirmação do resultado eleitoral no Congresso, Trump subiu o tom: falando a manifestantes em um parque próximo à Casa Branca, bateu seguidamente na tecla do resultado fraudulento, denunciou “traidores” e estimulou a turba a marchar para o Capitólio, de modo a renegar a eleição de novembro. Uma horda virulenta disposta a tudo tomou conta dos solenes salões onde têm assento os representantes do povo na mais sólida democracia do planeta.

Em cenas chocantes, inimagináveis, simultaneamente agressivas e constrangedoras, manifestantes se aproximaram do prédio, escalaram paredes, derrubaram portas e entraram no Capitólio, enfrentando minguada reação da polícia. A insurreição com cheiro de golpe de Estado no país da Constituição exemplar, formulada pelos founding fathers em 1791, símbolo indelével das liberdades individuais e da blindagem das instituições democráticas, escancarou o risco embutido no populismo ao modo Trump, imitado por governantes autoritários mundo afora: sem controle, transborda em desprezo pela ordem estabelecida. “A tese da fraude martelada por Trump foi absorvida por grupos radicais, e as consequências, como se vê agora, são trágicas”, diz Brian Klaas, professor de política internacional da University College de Londres. Vídeos mostravam manifestantes circulando à vontade pelos corredores do Congresso. Um grupo entrou no plenário do Senado, recém-esvaziado, e um “viking” de peito de fora, com jeitão de figurante do grupo Village People, foi fotografado no pódio da presidência, de onde o detentor do cargo, o vice Mike Pence, escapulira às pressas. Foi como se — numa comparação exagerada, mas didática e necessária — Roma fosse tomada pelos bárbaros. Numa palavra: vergonhoso.

No usualmente bem guardado gabinete da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, um homem descansava com o pé na mesa e um cartaz escrito a mão anunciava: “Não vamos recuar”. Agentes de segurança tiveram tempo de levar os deputados e senadores para local seguro, mas, nas galerias, visitantes e funcionários se escondiam sob as poltronas. Houve roubos, depredações e confronto armado. Uma mulher levou um tiro quando entrava por uma janela quebrada e morreu no hospital. A prefeitura decretou toque de recolher, a Guarda Nacional e outras forças foram convocadas e, no fim do dia, um cordão de isolamento cercava o Capitólio. Por uma tarde, os Estados Unidos assumiram contornos de república bananeira. Insista-se: foi um dia sombrio para a civilização ocidental. Líderes do mundo todo condenaram a afronta à democracia. O ditador Nicolás Maduro, uma espécie de Trump da esquerda, tripudiou: “A Venezuela expressa sua preocupação com os atos de violência em Washington”.

Enquanto o atual ocupante da Casa Branca se fechava em silêncio ensurdecedor, Biden foi à TV pedir que ele “acabasse com o cerco”. Custou, mas por fim o presidente divulgou um vídeo curto em que se solidarizou com a “dor” dos invasores antes de pedir que fossem embora “em paz” (sem condenar seu ato) e afagá-los: “Vocês são especiais”. Em um tuíte mais tarde, assegurou: “Nunca esqueceremos este dia”. E mais não disse porque o Twitter bloqueou temporariamente sua conta, cortando o som do megafone presidencial.

Antes da escandalosa invasão do Legislativo instigada por Trump, ele já havia tomado outras duas providências na mesma linha do confronto e do vale-tudo para mudar o resultado da eleição. No domingo (3), o jornal The Washington Post divulgou trecho de uma conversa de mais de uma hora em que Trump buscava convencer o encarregado das apurações na Geórgia a “arranjar” mais votos para si, expondo o mandatário da nação mais poderosa do mundo em plena prática de uma artimanha ilegal. Também partiu dele a instrução para que o vice Pence, na posição de presidente do Senado, melasse a sessão de confirmação da vitória de Biden — Pence se recusou, alegando que isso estava além das suas atribuições. “Trump quer manobrar a democracia para se perpetuar no poder”, avalia a historiadora Ruth Ben-Ghiat, da Universidade de Nova York, comparando-o a autocratas como Vladimir Putin, da Rússia, e Viktor Orbán, da Hungria. “A diferença é que os Estados Unidos têm instituições sólidas, preparadas para repelir essas tentativas”, acrescenta.

De tanto martelar a tese da fraude, Trump é visto como o maior responsável por mais uma derrota eleitoral dos republicanos, com efeito de longo alcance. Na mesma Geórgia da patética conversa sobre os votinhos a mais, a eleição fora do calendário para duas vagas no Senado resultou em uma apertadíssima, mas altamente relevante, dupla vitória democrata — um deles, o primeiro senador negro do estado. Segundo especialistas, a desconfiança insuflada pelo presidente desanimou republicanos de votar. Com esse resultado, o Senado fica empatado, 50 a 50, entre os dois partidos, sendo o voto de minerva o do presidente da Casa, a vice eleita Kamala Harris. Pela primeira vez em quase uma década, os democratas têm maioria na Câmara — onde Nancy Pelosi foi reeleita presidente — e no Senado, o que facilita a aprovação dos projetos de Biden.

Nascido milionário, frequentador da alta sociedade de Nova York, Trump, o empresário, sempre gostou de aparecer. Virou celebridade internacional à frente do reality show O Aprendiz (em que imortalizou a frase “está demitido”), cultivando com zelo e gosto a imagem de sujeito arrogante, porém poderoso e meio esquisito. Entrou para a política como republicano, em 1987, passou pelo Partido Democrata, até lançar-se candidato republicano nas eleições de 2016 e, diante da descrença geral, elegeu-se presidente dos Estados Unidos. Ao longo de quatro anos na Casa Branca, Trump virou de pernas para o ar o modo de governar o país, impondo sua vontade, atropelando a etiqueta e as instituições e pronunciando inverdades como se fosse a coisa mais natural do mundo. Conseguiu agir assim porque manipulou com habilidade os rancores e o orgulho ferido de uma parcela da população que não se sentia ouvida. Essa base fiel lhe deu quase metade dos votos no pleito do ano passado e dela saiu a ala radical que, em um absurdo atentado à democracia, resolveu chutar a porta do Congresso.

Ao perder a eleição de 2020, o homem vaidoso que sempre disse odiar as derrotas uniu-se ao reduzidíssimo grupo de cinco presidentes americanos que, no último século, não conseguiram a reeleição. Herbert Hoover foi escorraçado pela Grande Depressão, em 1933. O vice Harry Truman assumiu quando Franklin Roosevelt morreu, elegeu-se na votação seguinte e parou por aí. O atrapalhado Gerald Ford preencheu o vazio deixado pela renúncia de Richard Nixon, e só. Jimmy Carter tentou suavizar a postura dos Estados Unidos como guardião do planeta, ganhou fama de fraco e não conseguiu o segundo mandato. Impopular por causa da Guerra do Golfo, George Bush entrou na Casa Branca em 1989 e deu-lhe adeus em 1993. Agora é a vez de Trump, atropelado pelo abismo econômico em que o país se encontra, pela decepção dos eleitores menos convictos e, acima de tudo, pela péssima e incompetente gestão da pandemia.

Presidente emérito do clube dos negacionistas, Trump desancou a quarentena, não usou máscara, mentiu ao público sobre o perigo do novo coronavírus e, depois de prometer uma vacina antes de todo mundo, não tomou nenhuma providência para sua aplicação. Conclusão: a imunização caminha lentamente, enquanto a pandemia atinge novo e trágico pico nos Estados Unidos. Mesmo com todos esses problemas, Trump sai do governo com invejáveis 43% de aprovação (em pesquisa anterior à invasão do Congresso), acima da média de 30% registrada pelos colegas perdedores.

Apoiado nesse número, e no fato de que, se os republicanos saíram derrotados das últimas eleições, as margens de diferença foram mínimas, seu projeto era manter vivo o trumpismo, alimentar as divisões, fortalecer o caixa de campanha e, tudo dando certo, voltar à Presidência — em pessoa ou por meio de um representante — em 2024. Na noite da invasão, cercados de policiais, deputados e senadores voltaram ao plenário para retomar a sessão de confirmação de Biden, selada às 3h45 da madrugada. À frente da iniciativa estava Pence, o vice fiel que, no calor dos acontecimentos, condenou duramente a insurreição, afastando-se do chefe. Encostado na parede pela enxurrada de recriminações, Trump — ainda sem reconhecer a derrota —, pela primeira vez, assegurou que a transição será “ordeira”. Era palpável em Washington, contudo, a preocupação com o que ele ainda virá a fazer até a posse de Biden, no dia 20. O presidente incendiário pode ter posto lenha demais na fogueira e queimado o próprio futuro.

Precedente perigoso

Um dia após a invasão do Capitólio, os americanos conseguiram respirar aliviados: Joe Biden foi confirmado presidente pelo Congresso, segundo a vontade do povo nas urnas. A imensa maioria do país condenou a atitude de Donald Trump no episódio. O presidente está enfrentando pressão nunca vista para que deixe a Casa Branca antes de 20 de janeiro, quando encerrará oficialmente seu mandato. Mas afinal, por que seu golpe, assim classificado pelos especialistas, deu errado?

— Porque depois de quatro anos de Trump, nossas instituições ainda funcionam. Ainda tínhamos gente suficiente em nossos tribunais, em nosso Congresso e em outros lugares que respeitam a Constituição e as leis — afirmou Brian Winter, vice-presidente da American Society/Council of the Americas, em Nova York. — Não se engane: vários tribunais examinaram esses casos de suposta fraude apresentados pela equipe de Trump. Nenhum deles, incluindo juízes nomeados pelo republicano, viu evidências de fraude generalizada que poderia ter afetado o resultado final. Felizmente para a nossa democracia, isso foi o suficiente.

Para especialistas, o golpe foi um longo processo de ameaças e ataques à democracia. Primeiro Trump tentou restringir o voto dos americanos pelos correios. Depois, pediu para que as pessoas fraudassem o sistema e votassem mais de uma vez. Quando os primeiros sinais das urnas mostraram a derrota do republicano, ele dobrou a aposta: passou a questionar o resultado, sem prova alguma. Usou sua rede para espalhar mentiras. Dividiu o país. Cooptou centenas de republicanos, alguns de alta estatura política. Moveu mais de 60 ações judiciais por todo o país. Pressionou autoridades para “arranjar” os votos de que precisava para vencer.

E culminou no infame discurso em que incitou os seus fiéis seguidores, que invadiram o Congresso para tentar impedir a confirmação de Joe Biden como futuro presidente americano.

— Os anos Trump revelaram a fragilidade da democracia nos EUA. Mas também destacaram alguns pontos fortes do país. Primeiro, os tribunais. Sem um fragmento de prova, os tribunais em todos os níveis, até mesmo a Suprema Corte, rejeitaram as alegações de fraude. Em segundo lugar, funcionários nos níveis municipal e estadual, republicanos e democratas. Eles foram verdadeiros heróis neste drama, resistiram a todas as manobras de Trump e aderiram admiravelmente às regras e à lei — opinou Michael Schifter, presidente do Inter-American Dialogue, um centro de estudos em Washington.

Mas Donald Trump não agiu sozinho.

—Trump não é o único culpado. Membros do Partido Republicano que ajudaram e incitaram suas mentiras ou permaneceram calados são cúmplices. Mesmo depois da invasão, oito senadores e cerca de 140 deputados republicanos ainda votaram contra a certificação dos resultados eleitorais — afirmou Jason Marczak, diretor do Adrienne Arsht Latin America Center do Atlantic Council, centro de estudos também da capital americana.

Shifter afirma que essa subordinação da tradicional legenda aos desvarios de Trump tem uma razão simples, porém igualmente imperdoável: Trump dominou o Partido Republicano, e os membros do Congresso têm medo de desafiá-lo, preocupados em serem derrotados por candidatos pró-Trump nas eleições. Poucos foram críticos como Mitt Romney, senador do estado de Utah, que teve coragem e disposição para enfrentar o presidente.

Mas em outras circunstâncias, a mais tradicional democracia do mundo poderia ter sucumbido?

— Em 2020 e 2021, ainda tínhamos um número suficiente de seguidores da lei nas instituições americanas para repelir a ameaça antidemocrática. Isso ainda seria verdade depois de mais quatro anos de Trump, se ele tivesse sido reeleito? Sinceramente não sei. Em vez alguns senadores apoiando no final, poderiam ter sido 40. Quando líderes autoritários assumem o poder, pode ser muito difícil tirá-los de lá. E isso piora com o passar do tempo — opina Brian Winter.

Na mesma linha, Shifter afirma que não é o momento de esmorecer:

— A ordem democrática é frequentemente mais frágil do que pensamos. São necessários esforços constantes para construir e sustentar sistemas democráticos. Um Judiciário independente e competente é vital para as democracias. Outra lição é que os exemplos de dinamismo e eficácia democráticos muitas vezes podem ser encontrados em nível local — afirmou o presidente do Inter-American Dialogue.

E o temor do risco democrático não ficou restrito aos Estados Unidos.

— Trump mostrou um novo manual para populistas antidemocráticos que buscam derrubar a vontade de seu próprio povo. Devemos trabalhar duro, começando hoje, para garantir que essa última tática de Trump não seja utilizada em outro lugar, com sucesso potencialmente maior — sentencia Marczak, do Atlantic Council.

Sem suporte militar

Para o professor de governabilidade da Universidade Harvard, Steven Levitsky, a invasão do Congresso foi uma resposta a "quatro anos de descrédito e deslegitimação da democracia" por parte do Partido Republicano e de Trump.

Levitsky é coautor do livro Como as Democracias Morrem, de 2018, no qual expõe "os sinais alarmantes que põem em risco a democracia liberal dos EUA".

Estudioso também dos processos democráticos e presidenciais da América Latina, Levitsky descreveu a invasão do Capitólio por apoiadores de Trump como uma "tentativa de autogolpe", em entrevista à BBC News Mundo, serviço da BBC em espanhol.

Para ele, "a grande diferença entre esse autogolpe e os autogolpes na América Latina é que Trump foi completamente incapaz de obter o apoio dos militares" e "um presidente que tenta permanecer no poder ilegalmente sem o apoio dos militares tem poucas chances de sucesso".

Segundo sua análise, "a democracia sobreviverá a este dia", mas o que se coloca para o futuro do país é um período de crise bastante incerto.


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