18/04/2024 - Edição 540

Camaleoa

Misto-quente

Publicado em 06/02/2014 12:00 - Cristina Livramento

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Na minha adolescência, quando meus colegas falavam em profissão, olhava para os lados e rezava para que ninguém perguntasse minha opinião. Desde os meus cinco anos, meu sonho era casar, ter três filhos, cuidar de casa, filhos e marido. Me sentia completamente deslocada porque a maioria queria ser médico, advogado ou veterinário. Alguns, nem queriam, mas os pais – por tradição familiar – já tinham decidido o futuro de cada um.

Cerca de 30 anos depois, eis-me aqui, jornalista, fotógrafa e escritora. Quando entrei no 2º Grau, hoje Ensino Médio, começava a apresentar um quadro de epilepsia, meus pais estavam em fase de separação e eu já ia muito mal na escola. Claro que eu reprovei uma, duas e desisti. Fui para a Escola Estadual José Antônio Pereira, carinhosamente chamada de Jap, e terminei essa fase da minha vida, com louvor e me sentindo gente. O que nunca senti no Colégio Auxiliadora ou no Dom Bosco. Éramos social e economicamente incompatíveis.

Nesse meio tempo, meus pais me levaram para Presidente Prudente, interior de São Paulo, para fazer um eletroencefalograma para descobrir porque tinha as crises. Minha mãe ouviu do técnico, durante o exame, que eu não tinha nada. “Sua filha não tem nada, a senhora está inventando tudo isso só pra arrumar marido pra ela.”

Desde que cheguei em Campo Grande, em 1983, posso dizer sem sombra de dúvida que frequentei a sala de aula, mas não tinha a mínima ideia do que acontecia lá dentro. Na adolescência eu sofria pensando no Dick e no Pongo, um vira-lata e um dálmata, que tínhamos na época que moramos no Uberaba, em Curitiba. Pongo ficou com um homem que tinha um canil, estava bem cuidado. Dick, como era muito brabo, estava amarrado numa corda a um pau fincado num lamaçal tremendo. Chorava sempre que lembrava dessa imagem. Eu tinha 10 anos.

Sofri bullying na Auxiliadora e no Dom Bosco. Como tínhamos chegado um pouco depois de uma enchente, em Curitiba, eu era tratada como “a fugitiva da enchente”, por exemplo. Aprendi o que era marca de roupa aqui, o valor de coisas materiais, a importância de se ter um sobrenome de família tradicional da cidade, a falar palavrão e a ter malícia. Eu só tinha 10 anos.

Hoje, minha filha com 16 anos, e obcecada com a ideia de ser tatuadora, tem atravessado a fase escolar com cinco estrelinhas. Conversamos muito sobre bullying, sobre a competição entre os colegas de sala, como se posicionar e impor limites, a importância de fazer sua parte e pensar nas consequências das próprias ações.

Maria Eduarda, a Madu, já quis ser lixeira, bombeira, policial, modelo, agora encanou com Publicidade e a tatuagem. A fase do ser lixeira era um chororô tremendo. Ela fazia a gente fazer bolo e café para servir aos lixeiros quando eles passavam pela rua. Era só passar um caminhão de lixo que já tava a Madu chorando. Essa fase passou. Mas a gente continua fazendo um festeiro quando passamos por eles. Particularmente, acho os sujeitos mais descolados da cidade. Andam pela noite, grudados num caminhão com os nossos restos, e sempre estão rindo e dando gritinhos de saudação.

Meu tio esses dias, me dando carona até o trabalho, disse que eu parecia criança andando de carro. “Você repara em tudo como se estivesse vendo as coisas pela primeira vez.” Eu reparo mesmo e, às vezes, fico sentida de não ser a primeira a descobrir – por exemplo – um crânio de gente dentro do lixo na frente da casa de alguém. Como aconteceu, no começo de janeiro, no Bairro Monte Castelo, em Campo Grande.

Cheguei a dizer exatamente isso para meu tio e ele me chamou de macabra. Existe uma história que levou aquele crânio até ali. Você não teria curiosidade? Eu tenho.

Assim como tenho quando pego um ônibus e olho para o motorista antes de colocar o pé no degrau. Sempre penso, de onde ele veio, será que ele queria ser motorista de ônibus, será que ele dirige rápido, será que ele tem família, será que ele é feliz? – Boa noite, tudo bem? Geralmente, fico amiga deles.

Depois dos 30 dei para esquecer nomes, mas o nome do motorista do ônibus que eu sempre pego para ir trabalhar, esse não esqueço. Celso, nesse um ano, de idas diárias para o jornal, me chamou a atenção por dirigir sem gesticular quando é fechado por motociclistas, motoristas, pedestres suicidas e ciclistas audaciosos.

Será que Celso tem família, será que Celso é feliz, por que será que Celso dirige sem gritar com outros motoristas ou xingar sozinho lá na frente? Por que ele é diferente? Era o que eu queria saber.

Uma vez, na Avenida Afonso Pena, de frente para a Prefeitura Municipal de Campo Grande, uma mulher bateu atrás do ônibus. Ele parou, olhou para nós, passageiros e disse “uma mulher bateu no ônibus, volto logo”. Sem nenhuma irritação na voz, sem esbaforir em cima da gente. E enquanto desceu, a motorista engatou uma primeira e se mandou.

Lá voltou o Celso para seu banco de motorista. Sem praguejar, nem maldizer. – Quebrou alguma coisa, perguntei. – Não, não aconteceu nada com o ônibus e ela foi embora.

E assim ele segue todos os dias. Sabe o nome dos passageiros – os que pegam sempre a mesma lotação que ele dirige – e cumprimenta cada um deles. Tá sempre rindo, e você pode dar aquela cochiladinha maneira até chegar no trabalho que ele não precisa de co-piloto.

Nunca entendi porque a gente tem tanto preconceito com as outras profissões. Essa ideia obsessiva com medicina, direito, o velho de-erre. O peito se enche e a voz engrossa quando começam a chegar as cartinhas na residência, escrito no envelope “doutor”. Como se ganhasse cinco estrelinhas e o vizinho menos cinco.

Mas o doutô até virar doutor, muitas vezes, já andou de ônibus, comeu muito lanche de esquina, economizou muita grana frequentando o Camelódromo e indicando o Box predileto para os amigos. Vira gente grande, frequenta festa com celebridades da província e camarotchy das boatchy e se esquece de tudo. Venceu na vida e se você não “venceu”, é um perdedor e perdedor a gente chuta com gosto.

Fico me perguntando se temos todos a mesma necessidade de riqueza e fama? Alguém precisa ser o pedreiro, o lixeiro, o enfermeiro, o artista, o tatuador e o vagabundo. Porque somos isso, somos o que somos e a diferença está aí e ainda bem. Esse ideal de profissão, de poder e riqueza já não existem mais.

Um mototaxista ganha mais do que muito jornalista. Um jardineiro faz seu próprio horário e, se focado e persistente, também ganha mais do que muito dotô recém-formado. O tatuador não é mais aquele cara do porto, de puteiro em puteiro, bebendo em boteco com marinheiro. Eles estão ricos, com programas de tevê e financeiramente mais felizes do que muita gente. E detalhe, fazendo o que gostam. Não como muita gente que vai trabalhar praguejando. Volta pra casa, do trabalho, praguejando.

É claro que não existe regra, não existe receita, nada cai do céu. A minha experiência de escola somada a da minha filha mostram o quanto nós, pais, escola e cursos profissionalizantes, somos desinformados, maus e preconceituosos. Talvez, um pai e uma mãe tenham o “direito” de tolher o sonho do próprio filho, mas JAMAIS, em momento nenhum, gente ou instituição tem o direito de menosprezar ou ridicularizar o sonho de profissão de alguém.

Cumprimentamos a atendente do café, daquele point fashion do momento da cidade, porque é cool ser educado com a “ralé” ou porque aprendemos a reconhecer no outro, nós mesmos? O pedreiro, o lixeiro, o jardineiro, a empregada doméstica é como eu ou você – GENTE. Não tem nada de legal ser educado porque está na moda. Se estamos vivendo essa turbulência toda por mudanças, então talvez, um dos caminhos, seja reconhecer a importância de cada um de nós no funcionamento dessa imensa e complexa engrenagem.

Porque assim como eu passei por inúmeros fatores que atrapalharam minha jornada escolar, há muitos outros em Campo Grande, Rio Branco, Palmas, Vitória e Rio de Janeiro passando por problemas muito, mas muito piores, querendo apenas um pouco de sossego. Se sentir gente. Revistas, sites e cadernos de jornais de economia estão cheios de casos de sucesso de mecânicos, floriculturistas, cooperativas de reciclagem, e até moradores de rua que viraram grandes empresários.

Nossos filhos e os filhos dos outros têm a sua própria história e a própria vida fará com que cada um deles descubra, com muito sangue, suor e lágrima – com você pai, mãe ou instituição, interferindo ou não – o significado da existência fugaz nesse minúsculo planeta dentro desse vasto e desconhecido Universo.

 

p.s.: Fui diagnosticada com epilepsia miocrônica juvenil, aos 15 anos, pelo neurologista Olney Galvão, num eletro simples, daqueles que entopem a cabeça da gente de massinha. Tomo remédio controlado desde então e tenho uma vida normal, minha filha nasceu de parto normal, dirijo e tomo meu medicamento diariamente. Minha vida melhorou 100% depois que parei de brigar com a medicação.

p.s.2: Hoje a epilepsia não é mais um bicho TÃO horroroso assim. Com o surgimento das redes sociais, você pode participar de grupos no Facebook, fóruns ou até seguir, no Twitter, pessoas com o mesmo distúrbio que o seu. Recentemente descobri, por exemplo, um esquizofrênico adicto, que tuíta sobre seu dia-a-dia. Não tenha preguiça de pesquisar na internet.

p.s.3: Todas as fotografias desse texto foram feitas com celular Samsung Ace e Blü Life Play.

 

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Débora Aligieri é advogada, poeta e diabética. Tem escrito sobre sua vivência e luta para que seus direitos garantidos por lei – SUS – valham na prática.

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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