29/03/2024 - Edição 540

Especial

2020: o ano em que o Brasil virou pária

Publicado em 30/12/2020 12:00 -

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Uma pequena chuva caiu no Pantanal em setembro, aliviando um pouco as queimadas. Os pingos ocorreram após uma breve viagem do presidente Jair Bolsonaro, que havia ignorado a destruição do bioma por semanas.

"Após a visita do nosso presidente ao Mato Grosso, no dia seguinte começa chover. Deus está com nosso presidente", escreveu no Twitter o ministro Luiz Ramos (Secretaria de Governo), como se Bolsonaro tivesse poderes milagrosos.

A mensagem foi um dos vários exemplos de como até as supostas "alas moderadoras" do governo agiram ao longo de 2020: com distorção sistemática da realidade, submissão e bajulação, mesmo beirando ao ridículo, como no caso de Ramos.

Em um ano em que o Brasil enfrentou uma combinação dramática de crise política, econômica e sanitária, Bolsonaro continuou a desprezar os protocolos do cargo e a colocar instrumentos do governo federal a serviço da sua agenda extremista, seja para promover visões conspiracionistas em relação à pandemia – que já deixou mais de 190 mil mortos – ou para proteger a família presidencial.

Ministros que não abraçaram a realidade paralela bolsonarista foram demitidos ou forçados a sair, sendo substituídos por meros carimbadores de ordens, especialmente na área crítica da Saúde.

Ainda assim, persistiu uma expectativa de Bolsonaro tivesse algum choque de realidade com a crise tripla. Não foi incomum ver títulos como "Bolsonaro muda o tom" e "Bolsonaro adota postura moderada" na imprensa brasileira ao longo do ano, que logo eram desmentidos por um novo ataque ou crise deflagrada pelo presidente.

Se houve alguma mudança de postura, não foi em relação a políticas públicas ou súbito respeito às instituições, mas apenas como estratégia imediata de sobrevivência, como no caso da aproximação com o Centrão e a trégua com o Supremo Tribunal Federal a partir de junho. Inicialmente, o presidente flertou com o golpismo ao endossar manifestações contra as instituições. O recolhimento tático só entrou em cena após as encrencas da sua família com a Justiça ameaçarem a continuidade do governo.

Em outros setores, o "Bolsonaro moderado" continuou a ser uma miragem, seja no tratamento da imprensa e de minorias, na gestão do meio ambiente e da crise sanitária, no relacionamento com governadores, na condução da política externa ou na preservação da independência de instituições como a Polícia Federal e a Abin. Nos derradeiros dias do ano, Bolsonaro ainda afirmou que desejava armar a população contra o governador João Doria, seu desafeto político, e zombou da tortura sofrida pela ex-presidente Dilma Rousseff durante a ditadura.

O "gabinete dos horrores" como resumo de 2020

Um episódio sintetizou as ações e a realidade paralela do governo Bolsonaro em seu segundo ano: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril. À época, a pandemia já avançava com força, mas em pouco menos de duas horas de reunião, o combate ao vírus não despertou interesse dos participantes.

Palavras como "UTI" e "respiradores" não foram mencionadas nem sequer uma vez. Mas "bosta", "estrume" e "vagabundos" foram ouvidas – como ofensas lançadas pelos participantes contra governadores, imprensa e ministros do STF.

Ricardo Salles (Meio Ambiente) falou em aproveitar o caos da pandemia para afrouxar a legislação ambiental e até regras de patrimônio histórico. "Ir passando a boiada." Damares Alves (Família) só mencionou a pandemia para manifestar temor que a crise fosse usada por "feministas” para "trazer o aborto para a pauta".

Paulo Guedes (Economia) aproveitou para vender otimismo, apesar da crise que já sacudia o país. "O Brasil vai surpreender o mundo", disse. Ernesto Araújo (Relações Exteriores) traçou um cenário mirabolante em que o Brasil seria um dos principais atores mundiais na definição de uma "nova ordem mundial" pós-coronavírus. Bolsonaro, por sua vez, minimizou o vírus e soltou a mais célebre frase da reunião: "eu não vou esperar foder a minha família toda" ao falar sobre sua insatisfação com a Polícia Federal.

Paralelamente, participantes sem nenhuma experiência em temas de saúde falaram que "o pico" da pandemia já havia passado. No dia da reunião, o país acumulava 2.906 mortes por covid-19 e cerca de 45 mil casos.

Paradoxalmente, mesmo flertando com o golpismo e agravando decisivamente a crise sanitária, Bolsonaro termina o ano mais popular do que em dezembro de 2019, afastando, por enquanto, o risco de um fim prematuro do seu mandato.

Em dezembro, o Datafolha apontou que 37% da população considera seu governo "ótimo" ou "bom", contra 30% no mesmo período de 2019. A popularidade é maior entre os que receberam o auxílio emergencial de R$ 600 lançado para minimizar a crise – posteriormente reduzido para R$ 300.

Da "gripezinha" ao "não vou tomar vacina"

Nos dez meses posteriores à detecção do primeiro caso de covid-19 no Brasil, Bolsonaro alternou minimização do perigo, negação, indiferença, zombaria, desprezo, sabotagem das medidas de isolamento social, transferência de responsabilidade e disseminação de notícias falsas. Na reta final do ano, passou também a alimentar paranoia sobre vacinas.

Em 22 de março, disse que o número de mortes por coronavírus no Brasil não ultrapassaria os 800 óbitos pela gripe H1N1 em 2019, mesmo com a covid-19 já vitimando mais de 600 pessoas por dia na Itália. Depois, seria a vez de Bolsonaro chamar a covid-19 de "gripezinha". "E daí? Quer que eu faça o quê?", disse, quando o Brasil ultrapassou 5 mil mortes.

Dois titulares da Saúde que tentaram aplicar medidas para conter a doença e que se opuseram à promoção das "curas" duvidosas de Bolsonaro, como a hidroxicloroquina, acabaram perdendo o posto. Na prática, desde maio, Bolsonaro é o ministro da Saúde. Para tocar o dia a dia pasta, colocou um general sem nenhuma experiência na área, Eduardo Pazuello. O militar disse que, antes de assumir o cargo, "nem sabia o que era o SUS”.

Na gestão Pazuello-Bolsonaro o ministério abandonou qualquer esforço de coordenação com os estados, deixou de lado a política de distanciamento, expandiu o uso da droga favorita de Bolsonaro, não fez esforços para aumentar a testagem e até tentou esconder os números da pandemia.

As mortes explodiram sob a nova gestão. Eram 14.817 quando o general assumiu. O governo também passou a ser regularmente aconselhado por "ideólogos do negacionismo", como o deputado Osmar Terra, que afirmou que a epidemia acabaria em abril – depois mudou a previsão para junho, julho e agosto; recentemente, tem falado que a "epidemia vai acabar antes da vacina".

O desleixo do governo se refletiu até dentro do Palácio do Planalto, que virou um local de surto do vírus. Vários ministros foram infectados, além do casal presidencial. "O Brasil tem que deixar de ser um país de maricas", disse Bolsonaro, desprezando o temor pelo avanço da doença.

Bolsonaro ainda instrumentalizou a pandemia para abrir mais uma frente da sua "guerra cultural", em vez de tratar a crise como problema sanitário. O principal símbolo dessa tática é a hidroxicloroquina, inicialmente promovida em círculos radicais de direita na internet e pelo presidente dos EUA, Donald Trump.

A falta de comprovação científica não inibiu Bolsonaro. A entrada em cena do remédio permitiu que os apoiadores e o círculo radical do presidente rotulassem os críticos da estratégia do governo – ou da falta da estratégia – como "torcedores do vírus" e desviassem o foco, como se o avanço das mortes fosse culpa dos céticos da cloroquina.

O desinteresse de Bolsonaro em combater a pandemia também se refletiu na sua agenda. O presidente só teve seis audiências com seu ministro da Saúde desde maio. Em compensação, nos últimos três meses, compareceu a dez cerimônias militares e dez inaugurações – em uma delas, ficou acenando para motoristas por um hora.

Bolsonaro ainda se voltou contra a vacina, alimentando temores infundados sobre seus efeitos e atacando a estratégia de imunização de São Paulo, estado que lançou um plano paralelo, diante da inação do Planalto. O país chegou ao fim do ano com um vago plano nacional de vacinação, sem datas e sem garantir uma gama variada de imunizantes. O segundo país que mais acumula mortes por covid-19 no mundo segue perspectiva de uma vacinação em massa.

Enquanto líderes de outros países estão entre os primeiros a tomar a vacina, para incentivar suas populações, Bolsonaro vem repetindo que não vai se vacinar. A atitude vem gerando consequências. O percentual de brasileiros que não pretendem se vacinar saltou de 9% para 22% entre agosto e dezembro. 

Golpismo e mais ataques à imprensa

Bolsonaro começou 2020 com tensões acumuladas com o STF e o Congresso, entre elas o inquérito das fake news e o relacionamento tumultuado com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.

Em fevereiro, Bolsonaro passou a estimular manifestações contra o Judiciário e o Legislativo. Os atos nunca contaram com adesão expressiva, mas a presença do presidente em meio a faixas pedindo um "novo AI-5" e o fechamento do Congresso e STF provocaram uma nova crise política, tudo em meio à pandemia. Jornalistas foram agredidos nas manifestações.

As ações renderam o inquérito dos atos antidemocráticos, que se entrelaçou com vários personagens da investigação das fake news, inclusive filhos do presidente.

A saída de Sergio Moro elevou a tensão ao nível da paranoia. Em maio, o governo interpretou erroneamente um encaminhamento de praxe pelo STF de notícias crime contra Bolsonaro à PGR como uma ordem iminente de apreensão do celular do presidente. O ministro Augusto Heleno (GSI) advertiu sobre "consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional". No mesmo mês, ele recebeu uma delegação de extremistas – o mesmo grupo que depois lançou fogos de artificio contra a sede do STF.

No entanto, a fúria do presidente começou a minguar na segunda quinzena de junho, após a prisão do seu "ex-faz-tudo” Fabrício Queiroz, apontado como operador de um esquema de desvios liderado pelo senador Flávio Bolsonaro.

Acuado, Bolsonaro se reaproximou do STF e Congresso. Entregou algumas cabeças, como Abraham Weintraub (Educação), que na reunião de 22 de abril chamou os ministros do STF de "vagabundos" que mereciam cadeia – ele foi consolado com um cargo altamente remunerado no Banco Mundial. Bolsonaro ainda trocou vice-líderes do governo no Congresso, substituindo extremistas por nomes mais aceitáveis para o Centrão.

O presidente ainda ensaiou uma trégua com a imprensa. Mas o comportamento não perdurou. Em agosto, quando questionado por um jornalista sobre cheques de Queiroz depositados na conta da primeira-dama, Michelle, respondeu: "Minha vontade é encher tua boca na porrada, tá?".

Foi um de dezenas de ataques de Bolsonaro à imprensa ao longo do ano. Em maio, por exemplo, gritou "cala a boca" para repórteres enquanto negava a ocorrência de agressões contra jornalistas nos atos pró-governo. Apenas no primeiro semestre, Bolsonaro atacou a imprensa pelo menos 245 vezes, segundo a Fenaj. Veículos de imprensa chegaram a suspender a cobertura no Alvorada por causa da agressividade dos apoiadores do presidente.

Em 2020, a EBC e a TV Brasil também foram reduzidas a instrumentos de propaganda de Bolsonaro – no fim do ano, o canal exibiu ao vivo um jogo de futebol que contou com a participação do presidente, com direito a vários replays de um gol encenado.

As crises contínuas levaram o país a cair em rankings de liberdade de imprensa e de saúde da democracia.

Família, Queiroz e milícia

As suspeitas de envolvimento da família presidencial com um esquema de desvio de dinheiro público continuaram a assombrar Bolsonaro em 2020. O ano iniciou com a pergunta "Cadê o Queiroz?". Meses depois, a pergunta foi substituída: "Por que Queiroz depositou R$ 89 mil na conta de Michelle?". O suspeito de operar o esquema foi finalmente encontrado num sítio e detido. Estava escondido com o auxílio do advogado da família Bolsonaro.

As encrencas da família também voltaram a se entrelaçar com a milícia carioca. E de maneira dramática, com a morte do ex-PM Adriano da Nóbrega, num cerco policial na Bahia. A esposa e a mãe do miliciano trabalharam como assessoras de Flávio Bolsonaro.

O caso Flávio-Queiroz culminou na denúncia apresentada pelo Ministério Público, na qual o senador foi acusado de liderar uma organização criminosa. O valor total desviado pelo esquema, segundo o MP, foi de R$ 6,1 milhões.

A persistência desse e outros escândalos ainda abateu a principal estrela ministerial do governo: Sergio Moro, que acusou Bolsonaro de pressioná-lo a trocar o comando da PF para aumentar a blindagem da família presidencial. A troca acabou ocorrendo à revelia de Moro. Humilhado, o "superministro", deixou o cargo. Um novo diretor próximo dos filhos do presidente foi indicado, mas foi barrado pelo STF.

A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) também foi colocada a serviço de Flávio, preparando relatórios para auxiliar sua defesa, algo confirmado pela advogada do senador.

Apesar das encrencas dos filhos com a Justiça, a influência dos filhos de Bolsonaro continuou a se expandir em 2020. Até mesmo o filho "04" do presidente, o jovem Renan, entrou em cena, passando a fazer negócios graças às suas conexões com o governo.

Troca de ministros, nazismo e derrotas

Em dois anos, Bolsonaro se tornou o segundo presidente que mais trocou ministros na primeira metade de um mandato. Foram 15 até agora – incluindo a recriação de uma pasta. Ele só perde para Dilma Rousseff e suas 19 mudanças entre 2011 e 2013.

A Saúde e a Educação lideraram as trocas em 2020, com duas baixas cada. Carlos Decotelli, que substituiu Weintraub, nem chegou a tomar posse. Caiu em cinco dias após a revelação de que seu currículo havia sido maquiado. Depois, Bolsonaro convidou o empresário Renato Feder para o cargo, mas ele recusou após sofrer ataques da ala do governo ligada ao ideólogo Olavo de Carvalho. A solução foi colocar o pastor e teólogo Milton Ribeiro.

Também ocorreram saídas ruidosas nos escalões mais baixos. O secretário de Cultura Roberto Alvim caiu após divulgar um discurso cheio de referências nazistas. Sua sucessora no posto, a atriz Regina Duarte, não durou muito – também foi considerada moderada demais pelos olavistas.

Apesar de ter expandido sua influência em áreas como Justiça e Saúde, Bolsonaro não conseguiu transferir o poder da máquina federal para o pleito municipal de 2020.

Dezenas de candidatos apoiados pelo presidente sofreram derrotas humilhantes, entre eles o prefeito carioca Marcelo Crivella e uma ex-funcionária fantasma da família Bolsonaro, Wal do Açaí. O novo partido do presidente, Aliança pelo Brasil, lançado com fanfarra em 2019, continuou no papel, conseguindo apenas 10% das assinaturas necessárias para a criação.

Moro, de superministro a consultor

O casamento entre a Lava Jato e o bolsonarismo chegou a um fim explosivo em abril, com a saída de Sergio Moro. O ex-juiz havia aceitado um cargo de superministro dias após as eleições de 2018, numa decisão que levantou questionamentos sobre sua conduta à frente da Lava Jato, já que ele havia sido o responsável direto por tirar da corrida aquele que provavelmente teria sido o maior adversário de Bolsonaro na disputa, o ex-presidente Lula.

Ao convidar Moro, Bolsonaro disse que o então juiz teria "carta branca". Mas, em 16 meses, Moro não apenas não conseguiu implementar seus projetos como foi muitas vezes torpedeado pelo próprio presidente. Acabou deixando o governo falando em "interferência política" de Bolsonaro na sua pasta e na PF. As acusações ainda estão sendo investigadas.

Tanto Bolsonaro quanto Moro trataram de polir narrativas sobre a antiga associação. O ex-juiz tentou se pintar como um idealista que aceitou o cargo sem suspeitar do caráter autoritário e nepotista de Bolsonaro. O presidente e seu círculo, por sua vez, pintaram Moro como "traidor" e "Judas".

Fora do governo, Moro passou a perseguir iniciativas mais lucrativas, enquanto continuam especulações sobre seu futuro político. Ele se tornou diretor de uma consultoria que tem entre seus clientes empreiteiras que foram emparedadas pela Lava Jato, levantando novamente questões sobre sua conduta ética.

O sucessor de Moro, André Mendonça, mais obediente a Bolsonaro, acabou se notabilizando por produzir um dossiê de “servidores antifascistas”.

As promessas do "Posto Ipiranga"

"Com 3, 4 ou 5 bilhões de reais a gente aniquila o coronavírus", disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, na fase inicial da pandemia, em mais uma de suas promessas bombásticas que se tornaram rotina. Os gastos federais com pandemia já passam de meio trilhão de reais.

O fiador de Bolsonaro na economia chegou ao fim de 2020 enfraquecido. As reformas tributária e administrativa empacaram. Em janeiro e fevereiro, ele prometeu que as reformas seriam encaminhadas em "uma ou duas semanas", mas a primeira (e apenas parte dela) só foi apresentada no final de julho. A segunda, em setembro.

O ministro ainda persistiu em promover sem sucesso uma nova CPMF e sofreu uma debandada de secretários. Em agosto, afirmou que o governo anunciaria "três ou quatro grandes privatizações" em dois meses. No entanto, em dois anos de governo, nenhuma estatal foi vendida.

Sem se deixar abater pelos resultados magros, Guedes continuou a lançar planos e promessas irreais no ar. Em abril, declarou que um "amigo na Inglaterra" poderia fornecer "40 milhões de testes de covid por mês" ao Brasil. O assunto nunca mais foi mencionado – apenas quatro países conseguiram realizar mais de 40 milhões de testes, e não por mês, mas ao longo do ano.

A pandemia também forneceu terreno tanto para promessas quanto desculpas. No primeiro semestre, Guedes disse que a economia brasileira estava em aceleração e que "aí veio o coronavírus", desconversando sobre o magro PIB de 1,1% em 2019, divulgado dias antes.

Em maio, reconheceu que a economia podia estar em "estado meio anêmico" antes do vírus. Mas em dezembro já havia voltado a dizer que o "Brasil estava decolando quando a pandemia chegou".

Guedes também vem afirmando que a economia brasileira já está se recuperando em "V" (que desaba e se recupera tão rapidamente quanto). No entanto, números mais positivos do terceiro trimestre ainda não foram suficientes para recuperar as perdas. A retomada em 2021 segue incerta por causa da falta de empenho do governo em executar uma campanha de vacinação, algo que outros países encaram como essencial para qualquer recuperação.

Na política externa, crise sem fim…

Em outubro, o ministro Ernesto Araújo disse que, se a atual política externa do Brasil "faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária".

A fala de Araújo escancarou pelo segundo ano consecutivo o isolamento do país no cenário internacional, e que o quadro não vem ocorrendo por acidente, mas aparentemente como um projeto voluntário do governo Bolsonaro.

Em 2019, a diplomacia brasileira já havia se tornado uma "caixinha de surpresas" propensa a alimentar crises regulares, com desprezo ao multilateralismo e instituições internacionais.

Em 2020, em vez de reverter esse "novo curso" que só empurrou o país para um isolamento nunca visto desde a redemocratização, o governo trilhou o mesmo caminho, dobrando a aposta em cada crise e erodindo ainda mais o soft power acumulado pelo país nas últimas décadas.

O Brasil continuou a se distanciar dos seus vizinhos latino-americanos; foi na contramão de boa parte do mundo na gestão da pandemia de covid-19; fez apostas fracassadas como a manutenção de uma pretensa relação especial com Donald Trump; se viu excluído de debates onde o país costumava ter voz ativa, como a questão do meio ambiente; e reforçou uma política de hostilidade a grandes parceiros comerciais, como a União Europeia e a China.

"Nenhum país da estatura do Brasil tem reputação tão ruim", diagnosticou o diplomata Rubens Ricupero em abril. "A imagem positiva acabou", apontou Friedrich Prot von Kunow, presidente da Sociedade Brasil-Alemanha (DBG) e que foi embaixador no Brasil entre 2004 e 2009.

Mas a diplomacia da maior economia da América Latina já demonstrou não ligar para esses diagnósticos. "Esse pária aqui, esse Brasil, essa política do povo brasileiro, tem conseguido resultados", completou Araújo no seu discurso em outubro.

Entre os "resultados" da diplomacia bolsonarista estão: a continuidade da perda de apoio para o acordo entre Mercosul e União Europeia mesmo entre países europeus mais simpáticos ao pacto, como a Alemanha; e até a perspectiva da imposição de sanções internacionais ao país por causa da sua gestão relapsa do desmatamento.

Se em 2019 algumas das ações da diplomacia bolsonarista ainda provocavam alguma reação de setores do governo, temorosos de possíveis consequências econômicas, como as alas militar e do agronegócio, o mesmo não foi observado de 2020.

Araújo continuou a ter mão livre no Itamaraty para implementar sua agenda "antiglobalista” na máquina diplomática brasileira, endossando ataques de um dos filhos do presidente à China e transformando o ministério num palco de palestras para blogueiros propagadores de fake news.

A imagem do país como vilão ambiental continuou a se firmar no exterior, graças à persistência do desmatamento e a péssima repercussão de falas e ações do ministro Ricardo Salles, que reforçaram a pressão na Europa pelo boicote a produtos brasileiros.

Se houve alguma reação para frear a nova diplomacia bolsonarista, ela veio do Congresso brasileiro. Em dezembro, em uma derrota estrondosa para o Itamaraty bolsonarista, um embaixador indicado por Araújo para um posto em Genebra foi rejeitado pelo Senado por 37 votos a 0. Foi apenas a terceira rejeição do tipo na história da Casa. Apenas governos enfraquecidos como a segunda administração Dilma Rousseff (2015) e Jânio Quadros (1961) haviam sofrido derrotas similares em indicações para postos diplomáticos.

A cegueira em relação aos EUA

O alinhamento sem ressalvas ao EUA de Donald Trump se aprofundou em 2020. O governo colheu alguns frutos dessa aliança, como as assinaturas de um acordo militar e de tratados comerciais. No entanto, Brasília continuou a fazer concessões generosas – como isenções na importação de etanol dos EUA – e ainda teve que engolir medidas por Washington para reduzir a entrada de aço e alumínio brasileiros, que exemplificaram a relação desigual entre os dois países.

Bolsonaro também continuou a manifestar sua idolatria por Trump, torcendo abertamente pela reeleição do republicano, para o desânimo de diplomatas veteranos, que alertaram sobre os riscos de a bajulação do brasileiro queimar pontes com os democratas.

Em 2019, Bolsonaro já havia exibido comportamento similar em relação às disputas presidenciais na Argentina e no Uruguai. No entanto, a atitude com a eleição nos EUA foi mais longe. Semanas antes do pleito, o governo Bolsonaro chegou a fornecer um palco em Roraima para que o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, fizesse um duro discurso contra o regime chavista, no que foi encarado como um gesto para conquistar o voto conservador latino no estado da Flórida.

Depois do pleito, Bolsonaro também endossou acusações sem provas de Trump de que a eleição foi marcada por fraudes. "Tenho minhas fontes", disse Bolsonaro. Pouco depois, a imprensa revelou qual seria essa "fonte": o embaixador do Brasil em Washington, Nestor Forster. Em vez de fornecer informações precisas sobre o que se passava nos EUA – algo que se espera de qualquer diplomata –, Forster simplesmente repassou o discurso repleto de fake news do líder republicano, mesmo diante da vitória incontestável do democrata Joe Biden, num sinal de como o serviço diplomático brasileiro foi contaminado pela visão fanática de Araújo.

Municiado com o que queria ouvir – e não com o que realmente se passava –, Bolsonaro se recusou por semanas a reconhecer a vitória de Biden, permanecendo em companhia de outros párias internacionais como a Rússia e Coreia do Norte. Quando o resultado foi oficializado pelo colégio eleitoral em 14 de dezembro, o Brasil foi o último país do G20 a finalmente reconhecer Biden.

A vitória democrata não marcou apenas uma decepção pessoal para Bolsonaro e Araújo. Também sinaliza mais problemas para o Brasil. Biden, que prometeu adotar uma política ambiental oposta a de Trump, chegou a mencionar em setembro a possibilidade de impor sanções ao Brasil por causa da má gestão do país na questão do desmatamento. Em resposta, Bolsonaro insinuou a possibilidade de um conflito militar entre o Brasil e o novo governo americano em relação à Amazônia.

Covid-19: na contramão do mundo

Em abril, ainda da primeira fase da pandemia, Araújo explicou como a diplomacia brasileira deveria encarar a pandemia. A prioridade não era a busca de cooperação internacional contra o coronavírus, mas o que o ministro chamou de "comunavírus", que seria uma conspiração "comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado".

O Brasil seguiu sem ressalvas o americano Trump em uma ofensiva contra a Organização Mundial da Saúde. O comportamento permaneceu intocado até mesmo depois da derrota eleitoral do republicano.

Ao longo da pandemia, Bolsonaro também adotou um comportamento pessoal que emulou o roteiro inicialmente desenhado por Trump: minimizar o vírus, sabotar esforços de distanciamento e promover "curas" sem comprovação científica. Trump, no entanto, respondeu citando o Brasil como "mau exemplo" de gestão da pandemia, em parte para tirar o foco de suas próprias ações desastradas.

Mas Bolsonaro também logo superaria seu homólogo americano. Apesar de ter minimizado a covid-19, Trump direcionou recursos robustos para o desenvolvimento de uma vacina, que já começou a ser aplicada nos EUA.

Bolsonaro, em contraste, pouco fez para garantir a imunização em massa. O Brasil segue atrás até mesmo de outras nações da América Latina. "Não dou bola para isso”, disse Bolsonaro logo depois do Natal.

O líder brasileiro ainda tem alimentando paranoia sobre os imunizantes, afirmando que não pretende se vacinar. É o único chefe de estado ou de governo do mundo que vem agindo contra esforços de imunização em massa. O brasileiro também não manifestou interesse em participar de reuniões internacionais sobre a gestão da crise.

O comportamento rendeu a Bolsonaro comparações no exterior com outros líderes que preferiram ignorar a pandemia, como os ditadores de Belarus, Nicarágua e do Turcomenistão, outros personagens da "Aliança de Avestruz", como definiu o Financial Times.

Antagonismo renovado contra a China

Em 2019, o governo Bolsonaro já havia ensaiado atritos com a China, mas o comportamento foi interrompido após reclamações de exportadores, temerosos de alguma retaliação do maior parceiro comercial do país.

Em 2020, tais freios não fizeram diferença.  Em dois episódios distintos, em março e novembro, Eduardo Bolsonaro, o filho "03” do presidente –que atua muitas vezes como eminência parda do Itamaraty –, lançou ataques contra o governo chinês em questões como a gestão da pandemia e o 5G. Em abril, quando ainda ocupava o cargo de ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou um tuite racista que ridicularizou o sotaque chinês, acusando ainda o país asiático de planejar dominar o mundo. Como reforço, redes ligadas à família Bolsonaro espalharam mensagens xenófobas e paranoicas contra os chineses, como teorias conspiratórias de que o vírus havia sido criado em laboratório.

Os chineses, que por décadas exerceram uma diplomacia discreta, reagiram com uma fúria inédita em relação ao Brasil. Em março, o embaixador chinês no Brasil afirmou que Eduardo Bolsonaro havia contraído um "vírus mental”. Em novembro, a embaixada elevou o tom outra vez e disse que o Brasil poderia vir a "arcar com consequências negativas” caso persistisse nessa rota. Em vez de tentar acalmar a situação, o ministro Araújo repreendeu os chineses pela reação e pediu retratação.

A advertência provocou temores de alguma retaliação econômica, como as tarifas que Pequim impôs à Austrália ao longo do ano em produtos como cevada e carne bovina, no que foi encarado como uma reação de Pequim às críticas de autoridades australianas sobre a gestão da pandemia no país asiático.

Pouco caso em relação aos vizinhos

Antes mesmo de tomar posse, Bolsonaro e sua equipe manifestaram desprezo pelo Mercosul. Em 2019, o presidente chegou a afirmar que poderia retirar o Brasil do bloco caso a Argentina "criasse problemas" sob o governo de Alberto Férnandez. Em 2020, a relação com o maior parceiro comercial do Brasil na América do Sul não melhorou. Desde a posse de Férnandez, em dezembro de 2019, o líder brasileiro só foi conversar pela primeira vez com seu homólogo argentino no fim de novembro.

No segundo ano de governo, a diplomacia bolsonarista evitou até mesmo se aproximar de governos com quem poderia ter mais afinidade ideológica, como o colombiano Iván Duque e o chileno Sebastián Piñera. Foram raras as ocasiões em que Bolsonaro dialogou com os dois líderes em 2020.

Bolsonaro também evitou participar em dezembro de duas reuniões virtuais organizadas por Piñera que envolveram a Aliança para o Pacífico e o Foro para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), organização que o Brasil aderiu em 2019 durante o esvaziamento da Unasul. O objetivo do último encontro era discutir a propagação do coronavírus pela América do Sul.

Já o alinhamento automático do Brasil com os EUA esvaziaram outros mecanismos, como o Grupo de Lima (formado por 14 países da região), criado para encontrar uma solução para a crise da Venezuela. Hoje, o Brasil se limita a discutir a situação do país vizinho essencialmente com os EUA. Em janeiro, a diplomacia bolsonarista também decidiu retirar o Brasil da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que reúne 33 países.

Vilão ambiental, mais uma vez

Em 2020, a pandemia obscureceu a pauta ecológica, mas o derretimento da imagem brasileira na área persistiu, desta vez com o reforço das queimadas no Pantanal A fala de Ricardo Salles sobre aproveitar a crise para desmantelar regulamentos ambientais provocou ultraje entre organizações do exterior e parlamentares europeus.

Petições também foram lançadas na Alemanha e Reino Unido para pressionar redes de supermercado a boicotarem produtos brasileiros. As redes responderam ameaçando aderir ao boicote caso inciativas como a MP da grilagem" fossem aprovadas no Brasil. Em junho, foi a vez de 29 fundos de investimento e pensão, que administram US$ 4,1 trilhões, alertarem contra a o projeto e sobre o aumento do desmatamento no Brasil.

Em 2019 o governo brasileiro havia respondido iniciativas similares com insultos. Neste ano, ocorreram novas reações agressivas – como a bravata de Bolsonaro sobre a divulgação de uma lista de países que compram madeira ilegal do Brasil –, mas o governo tentou lançar algumas iniciativas para melhorar a imagem, que, porém, se revelaram amadoras.

No início de novembro, o vice-presidente Hamilton Mourão, que assumiu a tarefa de combater às queimadas, convidou embaixadores europeus para um giro pela Amazônia. A iniciativa não impressionou. O representante da Alemanha afirmou que a percepção alemã sobre a destruição da floresta não mudou.

Ao longo de 2020, os alemães e os noruegueses continuaram a bloquear recursos do Fundo Amazônia diante da falta de empenho brasileiro em combater o desmatamento e em reverter decisões unilaterais por parte de Brasília que mudaram a gestão dos recursos.

Ao mesmo tempo em que tentava cultivar os embaixadores, o governo brasileiro lançou uma campanha publicitária para questionar "interesses nem sempre claros na Amazônia”, insinuando que estrangeiros querem se apossar da floresta. Mourão, por sua vez, divulgou no Twitter um vídeo com texto em inglês que contestava a escala das queimadas na Amazônia – só que as imagens mostravam um mico-leão-dourado, animal típico da Mata Atlântica.

O país também continuou a perder espaço nas discussões internacionais sobre as mudanças climáticas, onde o país costumava ter uma voz ativa. Em dezembro, o país ficou de fora da lista de palestrantes da Cúpula da Ambição Climática 2020, organizada pela ONU. Em novembro, o Bolsonaro já tinha evitado participar de uma reunião do G20 sobre clima.

Em 2021, o país enfrenta a perspectiva de mais pressão internacional sobre o tema, especialmente com a chegada de um reforço no campo ambiental: o governo Biden, que promete recolocar os EUA na agenda de combate às mudanças climáticas.

A agonia do "grande trunfo" de 2019

A questão ambiental continuou a erodir o que foi promovido em 2019 pelo governo Bolsonaro como seu maior feito diplomático: a assinatura do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. No ano passado, as queimadas, o desmatamento e a retórica agressiva de Bolsonaro já tinham alimentando a rejeição ao tratado em vários países da Europa.

No entanto, em 2020, o acordo começou a perder apoio até mesmo entre países europeus que ainda manifestavam entusiasmo pelo pacto, notadamente a Alemanha. Merkel disse em agosto que tinha "sérias dúvidas" sobre o tratado. Sua ministra da Agricultura foi mais explícita e se posicionou contra o acordo. O governo Merkel também admitiu em setembro que a cooperação com o governo federal brasileiro está sendo cada vez mais difícil.

Em junho, o parlamento da Holanda aprovou uma moção para que o governo rejeite o pacto, se juntando aos legislativos da Áustria e Valônia (região da Bélgica), que em 2019 já haviam tomado essa iniciativa.

Em outubro, foi a vez de o Parlamento Europeu apontar que não ratificará o acordo "na sua forma atual". Já a França, a principal opositora do pacto, reforçou sua posição com a divulgação de um relatório sobre potenciais efeitos do tratado sobre o meio ambiente. O país ainda lançou um plano para expandir o cultivo de leguminosas em solo francês e diminuir a dependência à soja brasileira.


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