29/03/2024 - Edição 540

Especial

Frágil democracia

Publicado em 12/12/2014 12:00 -

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Desde que a presidente Dilma Roussef confirmou sua vitória nas urnas, protestos tímidos, organizados pela oposição, tem feito barulho em algumas cidades. No último dia 6 o “Fora Dilma” conseguiu reunir minguadas duas mil pessoas em São Paulo. Trata-se de uma ação legítima, parte do jogo democrático. No entanto, lado a lado com tucanos e quetais, um grupo menos afeito as regas do jogo tem destoado ao defender uma intervenção militar no país.

Formam uma turba heterogênea, composta por militares, fascistas e, principalmente, por gente que imagina que o autoritarismo pode ser uma saída para a crise moral que acossa nossa ainda jovem democracia representativa.

Não se pode confundir a oposição legítima à presidente Dilma com esta chusma. No entanto, é bom que as lideranças políticas que fazem frente ao governo do PT deixem isso bem claro, sob a pena de serem engolidos pela retórica adversária. É aquela história. À mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta.

Apesar de encarados em tom de galhofa pela maioria da população, os viúvos e viúvas da ditadura não são tão engraçados assim. Tanto é que, um dia depois da entrega do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), senadores e deputados organizaram um protesto na Câmara dos Deputados no qual o escritor e jornalista Paulo Markun mandou um recado para os que defendem o retorno do regime militar: “A diferença é que na democracia você pode pedir a volta da ditadura e não é preso. Na ditadura, se você pedir a volta da democracia você é preso e torturado”.

Este tipo de lembrança pode parecer banal. Não é. Uma série de pesquisas de âmbito nacional e internacional tem apontado que uma fatia expressiva da sociedade brasileira concordaria em abrir mão de liberdades individuais por estabilidade econômica, por exemplo.

Democracia em baixa

Desde 2008 o IBOPE mede, em diferentes pesquisas, a opinião da população sobre o regime democrático e, especificamente, sobre a democracia brasileira. Em 2014, menos da metade dos brasileiros (46%) declararam que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. O indicador mantém o patamar dos dois últimos levantamentos, após atingir os maiores índices em 2009 (55%) e em 2010 (54%). Para ver a pesquisa completa clique aqui​​.

A preferência pela democracia é maior entre aqueles que cursaram ensino superior (62%), moradores da região Sul do país (56%) e entre aqueles que declaram renda superior a cinco salários mínimos (55%).

Quando questionados especificamente sobre o sistema democrático no Brasil, só 39% declaram-se satisfeitos ou muito satisfeitos, o que representa um crescimento de 13 pontos percentuais em comparação com 2013. No último ano, o percentual de brasileiros que se declaravam satisfeitos com nosso regime democrático era de apenas 26%, enquanto declaravam-se pouco ou nada satisfeitos 69%.

A satisfação com a democracia brasileira é maior entre os homens (43%), jovens de 16 a 24 anos (44%), pessoas que cursaram de 5ª a 8ª série do ensino fundamental (44%), moradores do Nordeste (50%) e aqueles que declaram renda até um salário mínimo (44%).

Engana-se quem imagina que os gatos pingados que urram pela ditadura nas manifestações anti-Dilma são um bando ensandecido que não representam a sociedade brasileira. O problema é muito mais grave. É o que mostrou o Datafolha quando apresentou aos seus entrevistados uma série de questões com duas opções de resposta que se confrontavam entre si e que colocavam de um lado valores totalitários e, de outro, valores libertários.

Governo Forte

Dentre essas questões, a que mais polarizou as opiniões dos brasileiros se refere à vigilância dos governos sobre a sociedade. Para 56%, quanto mais vigiadas pelo governo estiverem as pessoas, melhor para a sociedade, e 35% acreditam que quanto mais livres da vigilância do governo estiverem as pessoas, melhor para a sociedade

Em outra questão, a maioria (64%) apontou que os direitos humanos devem valer para todos, inclusive para criminosos, mas 31% indicaram que os direitos humanos não devem valer para os criminosos.

Um em cada cinco brasileiros (21%) acredita que a tortura pode ser praticada se for a única forma de obter provas e punir criminosos, opinião que contrasta com a de outros 73%, para quem a tortura nunca pode ser praticada, mesmo se for a única forma de se obter provas e punir criminosos.

A prisão de suspeitos de crime sem a autorização da Justiça tem o aval, total ou em parte, de 26%, e 66% discordam que o governo deveria ter o direito a tal prática. Uma fatia de 8% não opinou sobre o assunto.

Uma série de pesquisas de âmbito nacional e internacional tem apontado que uma fatia expressiva da sociedade brasileira concordaria em abrir mão de liberdades individuais por estabilidade econômica.

Para 83%, o governo deve ouvir mais os cidadãos para tomar decisões importantes, enquanto 13% defendem que o governo deve ouvir mais técnicos e especialistas para tomar decisões importantes. Somam 4% os que não opinaram.

Também foi avaliado o grau de ação do governo que os brasileiros admitem em alguns aspectos sociais e institucionais do país. A intervenção em sindicatos é a que causa mais divisão, ainda assim com ampla maioria contrária à intervenção governamental: concordam, totalmente ou em parte, que o governo deve ter o direito de intervir nos sindicatos 28% da população adulta do país, enquanto 59% discordam, 5% não concordam nem discordam e 7% não opinaram. Com o direito do governo proibir greves também concordam 22%, outros 72% discordam, e 6% não concordam nem discordam ou não souberam opinar.

Uma fatia de 22% concorda, totalmente ou em parte, que o governo deveria ter o direito de proibir a existência de algum partido político, atitude da qual 66% discordam, totalmente ou em parte. Somam 11% os que não concordam nem discordam.

O direito do governo fechar o Congresso Nacional tem o aval de 20%, e a discordância de 69%. Uma fatia de 12% não concorda nem discorda ou não tem opinião sobre o direito do governo intervir no Congresso.

A censura a rádios, jornais e TVs deveria ser um direito do governo, concordam, totalmente ou em parte, 13% dos brasileiros adultos. A ampla maioria (80%), porém, discorda dessa posição, e os demais 7% não concordam nem discordam ou não opinaram a respeito.

Quando se voltam à realidade do regime democrático, os brasileiros adotam uma postura majoritariamente crítica: 59% estão um pouco satisfeitos com o funcionamento da democracia no Brasil. Outros 28% estão nada satisfeitos, e só 9% estão muito satisfeitos.

A baixa ou nenhuma satisfação com a democracia brasileira encontro respaldo na avaliação feita pela maioria dos brasileiros de que o país vive uma democracia com grandes problemas (61%) ou uma democracia com pequenos problemas (21%). Apenas 3% acreditam que o país vive uma democracia plena, índice menor do que o dos que acreditam que o Brasil não vive uma democracia (9%).

Para metade (51%) dos brasileiros com 16 anos, há nenhuma chance de ocorrer uma nova ditadura no país, enquanto 24% avaliam que há um pouco de chance, e 15%, muita chance. Há ainda 10% que não souberam opinar.

O legado do regime militar ao país encontra uma imagem difusa entre os brasileiros, passados quase trinta anos da entrega da Presidência da República de um militar para um civil eleito por voto indireto, em 1985. Para 46%, a ditadura militar deixou mais realizações negativas do que positivas para o Brasil, parcela duas vezes superior à dos avaliam o contrário, de que a ditadura deixou mais realizações positivas do que negativas (22%). Uma parte significativa (32%), porém, não soube avaliar o legado do governo militar para o país.

Atrás da Guatemala

1 – A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo.

2 – Em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um democrático.

3 – Tanto faz, um regime democrático e um não democrático dá no mesmo.

Quais das opções acima você escolheria? Realizado anualmente em vários países da América Latina, estudo coordenado pelo Latinobarómetro aponta que o Brasil tem a segunda menor taxa de apoio à democracia, perdendo apenas para a Guatemala.

Cidadãos de 18 países latino-americanos tiveram de responder com qual das frases acima mais concordavam: Na média das pesquisas entre 1995 e 2013, 44% dos brasileiros dizem que a democracia é a melhor escolha. Para 19%, um governo autoritário pode ser preferível em certas circunstâncias e, para 24%, não faz diferença. O restante não respondeu.

No Uruguai, país com a maior média de apoio à democracia, 78% dizem preferir um sistema democrático; 15% defendem o autoritarismo e 10% são indiferentes. O Brasil perde apenas para a Guatemala, onde apenas 38% preferem a democracia a qualquer outro tipo de governo.

Para especialistas, os brasileiros estão insatisfeitos com o funcionamento do regime no país. Em outras palavras, “querem mais democracia”. O cientista político José Álvaro Moisés, coordenador do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas (NUPPS) da Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro A Desconfiança Política e Seus Impactos na Qualidade da Democracia, diz que o grau de descrença em relação às principais instituições da democracia representativa é muito elevado.

Aversão a partidos

“No caso dos partidos políticos, nada menos do que 82% da população desconfiam deles, e, no caso do Congresso Nacional, 79%, pelas minhas pesquisas”, destaca Moisés. Embora a descrença no Judiciário seja menor, a sensação de injustiça é alta. “Aproximadamente 90% dos entrevistados de todos os segmentos sociais, regiões do país, classe, sexo, etnia e religiosidade, consideram que a lei não trata os cidadãos de maneira igual, e quase 80% consideram que o acesso dos brasileiros à Justiça é desigual, que não há oportunidades iguais de acesso.”

O cientista político acredita que as mesmas questões levantadas nas pesquisas também apareceram, de certa forma, nas manifestações de junho e julho de 2013, que levaram cerca de 2 milhões de pessoas a protestar nas ruas. “Muitos manifestantes chamaram a atenção para o vazio dos partidos políticos e, no caso do Parlamento, não foi à toa que houve tentativas de invasão às câmaras de Vereadores e assembleias legislativas em alguns estados e até do Congresso Nacional”.

Segundo o sociólogo e professor da Universidade de Brasília (UnB) Eurico Cursino, o cidadão brasileiro não tem vocação para viver calado, com medo, e, portanto, não contesta a democracia como valor cultural na sociedade, como direito de pensar e se expressar livremente. No entanto, como expressam as pesquisas e as manifestações populares, há uma crítica clara em relação à democracia como “regra da disputa política, da luta pelos cargos do Estado e tomada de decisões”.

O diretor-geral do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (Ibri), Pio Penna Filho, destaca que o regime democrático é preferível “mesmo quando pensamos em uma democracia cara e ineficiente como a brasileira” porque as pessoas podem participar, de alguma forma, das decisões do Estado. Mas ela, sozinha, não basta. “Vemos um mundo político muito desvinculado da sociedade, a classe política brasileira perde a noção do compromisso social e isso desvaloriza a democracia”, avalia.

O economista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) José Ronaldo Souza acredita que uma democracia equilibrada oferece melhores condições para que um país receba investimentos. “A democracia é boa para gerar crescimento econômico à medida que, dado o sistema de pesos e contrapesos, permite que os investidores tenham segurança maior do que com um grupo político isolado que se apodera do governo”.

Os especialistas afirmam que a democracia brasileira sofre as consequências da falta de proatividade das elites políticas em relação à sociedade e dos cidadãos, eleitores, em relação à classe política. Cursino defende que alguns fatores históricos fazem com que os brasileiros não se vejam como cidadãos responsáveis pelo governo do país, colocando-se em uma posição passiva na maior parte do tempo.

Falta cidadania

“As fundações da sociedade são de cima para baixo. A sociedade carece de bases comunitárias que tenham servido de alicerce para a formação de instituições políticas. As instituições políticas vêm sempre de cima para baixo e existe uma vida comunitária desconectada das instituições políticas”, explica Cursino, o que faz com que os cidadãos que se tornam conscientes de seus direitos estejam, nessa estrutura, “sociologicamente isolados”.

Os níveis de associativismo da população brasileira em sindicatos, partidos políticos, conselhos de saúde e orçamento participativo, associações de moradores e de pais e mestres ficam em torno de 2%. Para o sociólogo, essas relações representam democracia de baixo para cima e, na medida em que se tornam densas o suficiente, têm força para influenciar no jogo democrático, ampliando a participação do povo nas decisões. “Isso falta brutalmente na nossa sociedade”.

Apesar dessa relativa passividade, Moisés avalia que uma série de exemplos nas décadas recentes mostram que, quando se abre a estrutura de oportunidades para a participação das pessoas, elas tendem a utilizá-la, e cita as mobilizações de trabalhadores na região do ABC paulista, no final da década de 1970, as Diretas Já!, na década de 1980, o impeachment presidencial, na década de 1990, e as manifestações do ano passado.

“Nenhum governo abriu grandes mecanismos de participação para a população. Todos os presidentes eleitos de 1988 para cá, sem exceção, mencionaram a reforma política no discurso de posse e nenhum a fez”, critica o cientista político, destacando que há poucas iniciativas de baixo para cima, como as leis da Ficha Limpa e da Improbidade Administrativa, ambas de iniciativa popular, e nenhuma de cima para baixo.

O historiador Rodrigo Patto Sá Motta, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), pontua que é preciso haver movimentos convergentes, com mudança de comportamento das lideranças políticas e maior participação dos cidadãos. “Se os eleitores punissem mais os políticos que se comportam mal, não votando neles, os políticos se sentiriam pressionados. Mas os políticos também não precisam esperar isso e poderiam cuidar de punir seus colegas parlamentares que, por exemplo, usem mal os recurso públicos.”

Apesar de todas as críticas, as manifestações recentes, na maior parte formada por jovens que não viveram o regime militar no Brasil, não questionam a importância do regime democrático. Ao contrário, pedem “mais democracia”. Segundo Moisés, apesar de não estarem perto do desejado, os indicadores sociais melhoraram muito desde o fim da ditadura.

Ele destaca ainda que as eleições não bastam para a existência da democracia e que as manifestações populares devem pautar a campanha deste ano. “Vai ser inevitável, a meu juízo, que na campanha eleitoral deste ano esses temas apareçam no debate público. Os candidatos vão ser forçados a falar sobre isso. Serão tanto mais forçados quanto mais a mídia, o jornalismo crítico, a comunicação por meio das redes sociais, cobrarem dos candidatos que se manifestem sobre o que querem fazer e como.”


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