19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Brasileiro não receberá a vacina tão cedo

Publicado em 03/12/2020 12:00 -

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Cientistas envolvidos no desenvolvimento da CoronaVac, vacina para Covid-19 desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac Life Science em parceria com o Instituto Butantan, dizem que o imunizante estará em condições de começar a ser aplicado na população já em 15 de janeiro de 2021.

A disposição do governo de protelar o início da vacinação até março é vista como uma “atitude criminosa” por um importante interlocutor do trabalho. “É um crime perder tanto tempo para começar a salvar as pessoas tendo a vacina nas mãos”, diz um interlocutor dos cientistas.

Como se sabe, o imunizante da China está em fase final de análise. Nesta quinta, o diretor do centro de imunobiológicos brasileiro, Dimas Covas, confirmou que a eficácia da vacina será divulgada até o dia 15 de dezembro.

A vacina é importante para nos ajudar a tomar de volta a vida que a pandemia nos roubou neste último ano. Mas não será uma solução imediata, como alguns dão a entender. Além de estar programada para começar a ser distribuída em março do ano que vem, nem todos os brasileiros a receberão em 2021, segundo o próprio governo federal divulgou no último dia 2. Pelo menos, nem todos os que a procurem – uma vez que tem um naco que acredita que a vacina pertence ao demônio ou que faz parte de uma conspiração globalista. Ou seja, vai morrer muita gente ainda, como indica o aumento na lotação de UTIs covid em hospitais privados e públicos pelo país.

Mortes que, em grande parte, poderiam ser evitadas se a administração Jair Bolsonaro não tivesse adotado o terraplanismo sanitário como política de Estado e a incompetência como modelo de gestão. Incompetência que se traduz na incapacidade de distribuir testes para a detecção da doença antes de perderem a validade e no fornecimento de justificativas que ofendem nossa inteligência.

Parte da população cansou e relaxou? Claro. Mas a quarentena foi estendida para muito além do necessário porque o poder público federal jogou contra ela o tempo todo, o que acabou estendendo a pandemia.

Cobrado a agir após as mortes começarem a ocorrer, o governo prometeu, em abril, distribuir mais de 46 milhões de testes para covid. Com isso, seria possível identificar os infectados e mantê-los em isolamento, rastreando também quem com eles teve contato. Com testes em profusão, reduziríamos o espalhamento da doença. Não entregou nem metade disso.

E o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que muitos diziam ser especialista em logística, manteve em um armazém do governo, em Guarulhos (SP), 6,86 milhões de testes RT-PCR que vencem entre este mês e o próximo, como mostrou reportagem do jornal O Estado de S.Paulo. Outros 213 mil expiram até fevereiro e 71 mil vão para a glória em março

A Anvisa ainda está analisando o caso, mas a solução defendida pelo governo, ao que tudo indica, será renovar a validade por decreto. Bem ao estilo Bolsonaro, da narrativa se impondo sobre os fatos.

Se você criar um malabarismo verbal para justificar o consumo de um bifão que já cruzou o rubicão da data de validade, o problema no dia seguinte é apenas seu. Mas, no caso de testes vencidos, o impacto da tática Rolando Lero recai sobre toda a sociedade. Com um falso negativo, uma pessoa pode continuar trabalhando, infectando ao seu redor.

Uma trapalhada logística desse tamanho em um governo exemplar no combate ao coronavírus seria vista como desprezo. Mas como ocorre no governo Bolsonaro, acaba se amontoando a tantas outras bizarrices, que até dilui sua gravidade relativa. Deve, contudo, ser encarado com o que é de fato: mais um capítulo da necropolítica presidencial.

Bolsonaro mentiu ao dizer que quarentenas não funcionaram para retardar a propagação do vírus; ao afirmar que o isolamento social não teve impacto positivo; ao chamar a pandemia de "gripezinha" e "resfriadinho"; ao defender que a cloroquina deve ser usada no tratamento da doença mesmo com provas de que ela não funciona); ao cravar que a crise econômica causada pelo vírus mata tanto quanto ele próprio; ao dizer que o Supremo Tribunal Federal afirmou que são prefeitos e governadores os únicos responsáveis pela política contra a covid quando a corte não disse isso, tirando seu corpo fora.

Seu mau exemplo não ficou apenas em declarações bizarras e orientações fajutas. O presidente causou danos à saúde pública através de suas ações. Como as aglomerações que promovia em dias de manifestações a favor de autogolpe militar e do fechamento do Congresso Nacional e do STF. Inspirados nele, muitos brasileiros relativizaram a importância de se cuidar e, ao fazer isso, passaram adiante o vírus a quem não tinha nada a ver com a história.

E por conta de tudo isso, estendemos desnecessariamente a duração das quarentenas, o que aprofundou a crise de emprego.

E ele fez escola. Nas eleições municipais, muitos foram os políticos, da direita à esquerda, que seguiram seu mau exemplo, aglomerando-se. Outros aprenderam sua tática de acusar o outro de "fake news" sempre que acusados de fazer bobagem. O governador João Doria, que se gabava de ser um contraponto racional a Bolsonaro, por exemplo, só endureceu a quarentena no dia seguinte à eleição de seus aliados, mesmo com a alta de internações.

Como já disse aqui, a morte do indivíduo ainda dói (e muito), mas a morte coletiva virou rotina e se esvaziou. Não que milhões de pessoas não tenham medo de morrer ou de perder uma pessoa querida por causa da doença. Mas brasileiros ainda perdem a vida todos os dias por um motivo estúpido e, em grande parte, evitável. Temos 174,5 mil mortes, número que segue crescendo. E nada acontece.

Preferimos acreditar em uma ficção de que a vacina está chegando e ela nos redimirá. Ela virá, mas não a tempo de salvar a todos. Irresponsáveis somos, do presidente terraplanista, passando por um Congresso Nacional que vê as ações do governo com cara de paisagem, até nós, que estamos banalizando o que nunca poderia ser banalizado.

Com isso, endossamos o que sempre diz Bolsonaro: "a gente lamenta a morte, mas é o destino de todo mundo".

Análise

Ou Jair Bolsonaro tem uma estratégia capaz de causar inveja aos líderes dos países civilizados que correm para providenciar vacinas contra covid-19 ou o presidente brasileiro está acorrentado a uma tática suicida. Bolsonaro lida com a vacinação da mesma forma como lidou com todos os outros problemas, na base da transferência de responsabilidades.

Falando aos devotos do cercadinho do Alvorada sobre vacinas, Bolsonaro declarou: "Se tiver um efeito colateral ou um problema qualquer, já sabem que não vão poder cobrar de mim." Um presidente convencional diria algo assim: "O brasileiro deve ficar tranquilo, porque meu governo está agindo para prover vacinas rapidamente. E a Anvisa zelará para que elas sejam seguras e eficazes."

O país precisa de reformas econômicas? Bolsonaro diz que o governo já fez a sua parte. E transfere a responsabilidade para o Congresso. A ausência de vacina impõe a tática do isolamento social? O presidente se apressa em dizer que governadores e prefeitos terão de responder pelo tombo na economia. Chegou a hora da vacinação? Bolsonaro se auto-converte em garoto-propaganda do direito de não se vacinar. E passa a trombetear o risco de efeitos colaterais.

Se Bolsonaro estivesse certo na sua aversão à necessidade de assumir responsabilidades, ele seria um candidato imbatível não à reeleição, mas ao posto de gênio da humanidade. Se estiver errado, como a derrota de Donald Trump nos Estados Unidos faz supor, corre o risco de cair na sua própria armadilha.

Na próxima semana, os brasileiros assistirão pela TV ao início da vacinação dos ingleses. Na sequência, os telejornais exibirão franceses e alemães na fila da vacina. São Paulo diz que suas vacinas, uma vez certificadas pela Anvisa, começarão a ser aplicadas em janeiro. O governo federal prevê que não terá imunizantes a oferecer antes de março.

Bolsonaro imagina que desestimula a vacinação com suas declarações anti-vacina. Na verdade, seu lero-lero tóxico pode acabar provocando um benfazejo efeito colateral: um clamor pela vacina. O presidente pode ter de fazer por pressão o que proibiu o ministro Eduardo Pazuello (Saúde) de fazer por opção quando firmou convenio com o Butantan para a compra de milhões de doses da CoronaVac, a "vacina chinesa do João Doria."

Vazamento de dados da saúde de milhões de brasileiros pode ser só o começo

Dois vazamentos de dados individuais sobre a saúde de milhões de brasileiros tornaram-se públicos nos últimos dias. Apesar de inaceitáveis e chocantes, eles servem como um alerta importante, neste momento de pandemia, sobre o risco que estamos correndo diante da falta de prioridade do governo federal com a proteção de dados da população.

Ficaram abertas para consulta as informações pessoais de qualquer brasileiro cadastrado no SUS ou beneficiário de um plano de saúde, o que envolve mais de 200 milhões de pessoas, segundo revelou o jornal O Estado de S.Paulo no último dia 2.

Já, na semana passada, soubemos que dados de pessoas que haviam testado para covid-19 ficaram abertos para consulta, após um funcionário do Hospital Albert Einstein divulgar uma lista com usuários e senhas que davam acesso aos bancos de dados de pessoas testadas, diagnosticadas e internadas para a doença nas 27 unidades da federação.

O Ministério da Saúde defende uma nova Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS), com grandes chances de aprovação sem o devido amadurecimento e cautela da questão. O resultado pode ser o aumento no risco de novos vazamentos ou de acessos indevidos à vida pessoal dos cidadãos.

No auge da pandemia do coronavírus, no dia 3 de agosto, o ministério lançou a minuta de uma portaria para um novo PNIIS.

A proposta continha graves equívocos e lacunas, além de desconsiderar as necessidades que se apresentam no contexto de pandemia, em que os serviços de saúde são cada vez mais necessários e vão alcançar um número extremamente significativo de cidadãos brasileiros.

Não havia uma previsão de mecanismos e instrumentos para a proteção de dados pessoais em saúde.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) pediu prorrogação do prazo, a princípio de 15 dias, para contribuições à consulta pública – considerando que, ao contrário de suas edições de 2004 e 2015, foi apresentada sem um cuidadoso e prévio debate.

Dados pessoais sobre a saúde dos brasileiros ganham a rede

Cabe lembrar que a Lei Geral de Proteção de Dados (13.709/2018) cria critérios específicos e mais rígidos para o tratamento de dados de saúde, classificados como "dados sensíveis", justamente porque o uso de tais informações pode levar à discriminação e desencadear uma série de exclusões. O que afasta pessoas do acesso a serviços essenciais à preservação da vida e impede a fruição plena de direitos, como ao trabalho e à vida em comunidade.

O reconhecimento dos registros sobre saúde como dados sensíveis implica que estes devem estar submetidos a níveis de proteção e segurança maiores. No caso da proteção, deve haver limitações mais explícitas para evitar o abuso na coleta e no tratamento dessas informações.

A título de exemplo: pessoas com HIV têm direito à privacidade quanto à sua condição de saúde. No entanto, dados pessoais (incluindo nome dos pacientes, número de identificação, telefone, endereço, resultado de exames e outros) de 14.200 pessoas portadoras do vírus foram vazados na internet em Cingapura no ano passado.

É importante reforçar que o Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) 6387, 6388, 6389 6393 e 6390, reconheceu a existência de um direito autônomo à proteção de dados pessoais.

Tal reconhecimento, argumenta Laura Schertel, professora adjunta de Direito Civil da Universidade de Brasília (UnB) e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), implica que o Estado deve agir em dois sentidos: tem um dever de não interferir indevidamente no direito fundamental e um dever positivo de adotar medidas positivas para a proteção desse direito.

Uso de cobaias humanas e vazamento de 200 milhões

A violação de dados pode ser pior entre grupos tradicionalmente vulnerabilizados na política de saúde e historicamente explorados como "cobaias humanas".

Pessoas negras, em particular, têm sido exploradas para pesquisas médicas ao longo da história, sendo um dos casos mais conhecidos o Estudo de sífilis de Tuskegee, nos Estados Unidos, no qual 400 homens negros com sífilis foram deixados sem tratamento (sendo enganados de que estavam sendo medicados) por 40 anos, de 1932 a 1972, para que médicos do governo pudessem estudar o curso da doença.

Fato do passado? Não. Em abril, declaração de médicos franceses que apontavam a possibilidade de testar vacinas de covid-19 na África reacendeu o debate.

As normas propostas na minuta para a nova Política Nacional de Informação e Informática em Saúde visam ampliar as formas de coleta de dados em saúde, no intuito de promover a "inovação" no setor.

Ou seja, o uso de dados para pesquisas e desenvolvimento de processos e produtos, sem problematização de qual o objetivo a ser alcançado: se a saúde integral, lucro ou os dois.

Um exemplo é o intuito de "estabelecimento de política de controle de acesso autorizado aos bancos de dados dos sistemas de informação em saúde pelo usuário, pelos profissionais e pelos gestores de saúde", o que inclui o compartilhamento de dados com instituições privadas de saúde. Não se sabe se em caso de portabilidade de dados a pedido de paciente ou se seria o caso de livre fluxo de informações.

Foi exatamente através do compartilhamento de sistemas de gestão de dados pessoais em saúde entre poder público e privado que o vazamento do Hospital Albert Einstein ocorreu, por meio de um prestador de serviço de uma unidade privada cuja parceria com o Ministério da Saúde permitiu o acesso ao banco de dados do órgão.

Imagine esta possibilidade em cada hospital ou clínica do país caso haja uma integração da base de dados em saúde, como por meio da criação do prontuário eletrônico?

O vazamento mais grave divulgado nesta quarta (2) é outro exemplo a evidenciar o tamanho do problema. Se não fosse suficiente a preocupação com o tipo de informação e seu caráter sensível, a escala do acesso indevido (mais de 200 milhões de pessoas, segundo o jornal) já torna o episódio gravíssimo.

Quanto maior um banco de dados, mais ele atrai a atenção de agentes maliciosos que vão tentar invadi-lo, tornando a Rede Nacional de Dados em Saúde um alvo preferencial. Neste sentido, se não houver uma prioridade para as medidas de proteção de dados e segurança, o governo federal poderá estar expondo o conjunto da população brasileira a riscos de uso de informações preciosas, que poderão gerar prejuízos não contabilizáveis.

Acesso a dados pessoais de saúde atraem a indústria farmacêutica

Além das preocupações com a segurança dos dados de saúde e contra atividades criminosas, é fundamental compreender o valor dos dados de saúde para o mercado farmacêutico e a possibilidade de exploração privada, sem qualquer debate público e retorno aos objetos pesquisados em termos de acesso a tratamentos e serviços.

Nos Estados Unidos, o projeto Nightingale, conduzido pelo Google por meio de uma parceria com uma entidade controladora de 2.600 hospitais no país, a Ascension, gerou controvérsias. O apetite de grandes plataformas digitais e de empresas da área de saúde e de seguros por dados de pacientes é um exemplo do valor dessas informações para estas companhias, e de como tais registros podem ser empregados para a exploração comercial da saúde de cidadãos.

É urgente que o Ministério da Saúde assuma a responsabilidade pelos episódios, adote medidas imediatas de garantia da segurança dos bancos de dados existentes e reabra com a sociedade e com as entidades da área de saúde e de proteção de dados a discussão sobre a RNDS e acerca da PNIIS e normas associadas.

Até o momento não se tem informação do resultado da consulta pública e se haverá debates e audiências após a apresentação das propostas ajustadas.


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