28/03/2024 - Edição 540

Brasil

Cemitério Pantaneiro

Publicado em 26/11/2020 12:00 -

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Uma anta parada no meio da estrada é uma sobrevivente da devastação. Em volta, somente cinzas e silêncio. O céu está coberto de fumaça e o calor ultrapassa 40o C. As lentes do fotógrafo Peter Ilicciev registram a solidão do animal, assim como revelam imagens da destruição provocada pelos incêndios que atingiram aproximadamente 27% do Pantanal — a segunda maior planície inundável do mundo — somente em 2020. Quando o fotógrafo chegou, no início de outubro, na região de Cuiabá e em outras cidades afetadas no Mato Grosso, com uma equipe da Fiocruz enviada para avaliar os impactos das queimadas sobre a saúde, o bioma havia registrado em setembro o maior número de focos de incêndio da história, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). A persistência das queimadas, tanto em quantidade quanto em alcance, faz de 2020 o pior ano do Pantanal quanto à devastação pelo fogo — o bioma era  considerado o mais preservado do país até 2018, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os pesquisadores saltam da caminhonete, na estrada, para deixar frutas e água para os animais sobreviventes que vagueiam sobre a terra assolada pelo fogo. O risco é que muitos ainda pereçam por não ter o que comer. O que antes era o habitat desses animais havia se transformado em cemitério da vida silvestre. O fogo que se espalha pelo Pantanal e deixa um rastro de cinzas tem gerado impactos na biodiversidade que serão sentidos por muitos anos, como alertam especialistas, mas também provoca riscos para a saúde humana com o aumento da poluição e a elevação das temperaturas. Existem palavras para descrever tamanha destruição? Por acreditar na força das imagens, Radis traz algumas cenas registradas pelo repórter fotográfico Peter Ilicciev na região do Pantanal mato-grossense. É um grito de alerta: a vida pede socorro, no Pantanal e em todo o planeta. As fotos são acompanhadas de relatos, depoimentos e avaliações dos impactos provocados pelo fogo por quem está ou esteve perto do cenário da destruição.

Olhar sobre as cinzas

O fogo ardia noite adentro na entrada de Poconé, município a 100 quilômetros de Cuiabá. A equipe de pesquisadores enviada pela Fiocruz ao Pantanal passava de carro pela estrada e avistou o incêndio. No desespero de quem deseja ajudar — sentimento comum entre brigadistas, voluntários e moradores da região —, eles pararam o carro e tentaram conter as chamas como podiam. Quem narra o episódio é o fotógrafo Peter Ilicciev, que registrava a cena em sua máquina fotográfica, quando foram surpreendidos por uma espécie de explosão e obrigados a recuar. O fogo era maior do que eles podiam intervir — no percurso, Peter perdeu o celular. “São trinta anos de profissão. Já fiz muitas tragédias, mas essa foi uma das que mais me marcou”, conta.

Quando convidado para compor a equipe da Fiocruz que iria avaliar os impactos das queimadas no Pantanal sobre a saúde, ele não pensou duas vezes para aceitar. “Não dá para ficar escondido dentro de casa, fingir que não é comigo. Se você tem a oportunidade de fazer alguma coisa, faça a sua parte. Eu fiz a minha, registrando”, pontua. Ele descreve o cenário visto na região como “um filme de terror”. “A gente circulou uma semana de carro. Vimos quilômetros e quilômetros de mata queimada. É uma coisa que você não acredita. O cheiro de carcaça e animal morto é muito forte, um calor absurdo que vai deixando você fraco”, diz. Peter conta que alguns animais conseguiam escapar do fogo e se refugiavam nas redondezas, ou perambulavam pelas estradas procurando comida — ele também se emociona ao lembrar o empenho dos pesquisadores em ajudar, deixando alimento e água nos refúgios. As cenas que registrou são um retrato da destruição, mas também um alerta. “É uma experiência que vou levar para sempre. Faz parte da nossa profissão: a gente precisa ajudar a contar essas histórias para as pessoas”.

Ciclos rompidos

O acúmulo de cinzas brancas sobre o solo, além daquela de cor preta, é um sinal de que o fogo foi recorrente e destruiu toda a matéria orgânica, incluindo as sementes, restando apenas detritos minerais sobre a terra. “Isso nos remete a um impacto de muita violência a longo prazo, porque compromete o banco de sementes e a biota do solo, que são as estruturas que permitem a restauração do ecossistema após a chuva”, avalia Márcia Chame, coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre (CISS) e da Plataforma Institucional Biodiversidade e Saúde Silvestre (Pibss), da Fiocruz. Para ela, os incêndios são a síntese dos impactos humanos e de diversos problemas, como as secas prolongadas e a diminuição do escoamento de água no Pantanal — e, infelizmente, se nada for feito, a perspectiva é que esse cenário continue.

“Em 2019, o Pantanal não encheu e a vazão dos rios tem diminuído a cada ano, em função de múltiplos fatores, como a construção de usinas hidrelétricas, o barramento de águas, o uso para mineração e irrigação, o desmatamento nas nascentes e a perda de mata ciliar e das áreas de reserva legal”, avalia à Radis. A esse cenário de crise ambiental se soma, segundo a pesquisadora, a ação de pessoas que efetivamente colocam fogo para ampliar a área de produção agropecuária e a urbanização — “além do escape das queimadas legalizadas, que muitas vezes não são feitas com cuidado”. A bióloga também destaca que os reflexos são sentidos diretamente por comunidades tradicionais, como indígenas, ribeirinhos e pescadores.

Márcia coordenou a equipe de pesquisadores da Fiocruz que esteve na região para avaliar os impactos sobre a saúde, não somente de seres humanos, mas também de animais silvestres e domésticos e para todo o ecossistema — e descreve que, em quarenta anos de pesquisa de campo, nunca viu tantos animais mortos. Em um raio de dois quilômetros, os pesquisadores encontraram ao menos 14 antas mortas — animais de grande porte que, em geral, ficam espalhados em áreas extensas. “O cenário é de enorme devastação, com muitos indivíduos de muitas espécies mortos, calcinados. Outros mortos muito provavelmente pelo calor e pela queima pulmonar. Outros ainda vivos, buscando alimentos, desorientados, magros, famintos, desesperados”, ressalta.

Ela também chama a atenção para o impacto direto das queimadas sobre a saúde humana. “As pessoas que combatem o incêndio e os moradores da região respiram fuligem e material particulado bem fino que chega ao pulmão, além de substâncias tóxicas”, explica. Os efeitos serão sentidos no presente e no futuro. Para o ser humano, há o risco de doenças respiratórias e pulmonares e do aumento de câncer; para o ecossistema, a perda do equilíbrio e da capacidade de renovação, pelo comprometimento da cadeia produtiva e alimentar, com reflexos para todo o bioma e para as atividades humanas, como a produção pesqueira. “Esse é o momento de aumentar a vigilância sobre a emergência de zoonoses, que são doenças que nós compartilhamos com os animais e eles conosco, além de vetores”, alerta. Estudos da Fiocruz indicam a circulação de 16 vírus de importância médica e seis novos vírus desconhecidos pela ciência — que podem vir à tona com a destruição do espaço natural e provocar endemias ou epidemias em humanos.

“O Pantanal é um bioma constituído por um mosaico de formações amazônicas e do Cerrado. Entender isso é fundamental para manter esse ecossistema com uma saúde razoável a médio prazo e, quem sabe, restabelecê-lo a longo prazo com as lições aprendidas”, analisa a pesquisadora. Ela indica a necessidade de mudança nas políticas ambientais e de reforço na fiscalização sobre o fogo criminoso e legalizado, e também ressalta que é preciso planejar ações conjuntas de preservação do futuro pantaneiro. “Esse bioma tem um papel fundamental na dinâmica de todo o continente e é uma enorme riqueza para o Brasil”, conclui.

Do ar aos pulmões

Nuvens de fumaça que viajam até regiões afastadas do Pantanal e da Amazônia, como São Paulo, Santa Catarina e Rio de Janeiro, são um retrato da extensão do desastre ambiental provocado pelas queimadas — e indicam o impacto para a saúde de diferentes populações. As partículas liberadas no ar pelos incêndios são levadas pelo vento, pois o Pantanal encontra-se em uma rota de correntes de ar. Ao chegar em grandes cidades, revelam a cor cinza da destruição e podem provocar fenômenos como a chuva preta. “Um ponto chave é a emissão de poluentes atmosféricos, derivados da queima de biomassa (floresta, pastagem e matéria orgânica). A população residente no Pantanal que entrou sem nenhuma proteção para combater o fogo é a mais atingida pelas emissões primárias de poluentes, com destaque para bombeiros, brigadistas e voluntários”, ressaltou Eliane Ignotti, professora da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) e da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) em debate online da Abrasco, em 13/10.

Sem cessar, os incêndios se mantinham 24 horas por dia, sete dias por semana, o que não dava possibilidade para a poluição se dispersar na atmosfera. “A população mato-grossense estava respirando e inalando partículas em quantidade de cinco a seis vezes acima do limite considerado aceitável”, afirmou Eliane. Segundo ela, o Brasil tem entre 45 e 50 mil mortes anuais prematuras em razão da exposição à poluição atmosférica. A inalação de fumaça e material particulado aumenta o risco de doenças pulmonares e cardiovasculares, além de ter potencial cancerígeno, como destaca nota da Fiocruz sobre as queimadas (19/10). Os mais vulneráveis são brigadistas, gestantes, crianças e idosos, além daqueles que vivem em povoados próximos às áreas atingidas. “Estas populações encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade biológica, considerando a exposição aguda e crônica ao calor e às altas concentrações de partículas inaláveis”, afirma o documento.

O BIOMA PANTANAL

Os versos do poeta pantaneiro Manoel de Barros, nascido em Cuiabá (MT), refletem a simbiose entre o ecossistema e as comunidades tradicionais que habitam o Pantanal. Considerado Patrimônio Natural Mundial pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), esse bioma representa uma das maiores extensões úmidas contínuas do planeta. Ele é formado por um mosaico de biodiversidade resultante do encontro entre outros biomas, como a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica e o Chaco argentino — o que se reflete na variedade de espécies encontradas.

Localização

Sul do Mato Grosso e noroeste do Mato Grosso do Sul

Extensão

Cerca de 150 mil km2 (IBGE)

Fauna e flora

A biodiversidade abriga 263 espécies de peixes, 41 de anfíbios, 113 de répteis, 463 de aves e 132 de mamíferos catalogadas. Onças-pardas, onças-pintadas, lobos-guarás, antas e cervos-do-pantanal são algumas das espécies típicas de mamíferos, que se somam ao jacaré-de-papo-amarelo e ao jacaré-do-pantanal, dentre outras, além de peixes de grande parte como os jaús. Espécies raras em outras regiões vivem em populações abundantes, como a ave símbolo da região, o tuiuiú.

Conservação

Somente 4,6% do Pantanal encontram-se protegidos por unidades de conservação (UC), de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. Segundo levantamento do Programa de Monitoramento dos Biomas Brasileiros por Satélite (PMDBBS), em 2009, o bioma mantinha 83,07% de cobertura vegetal nativa.

Comunidades

Em suas terras vivem comunidades quilombolas, povos indígenas, ribeirinhos e outras populações pantaneiras que sobrevivem do extrativismo e da agricultura familiar.

De quem é a culpa?

Sem recursos, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) anunciou, em 22/10, que vai interromper o trabalho das brigadas que atuam no combate aos incêndios florestais. O órgão afirmou, em nota, que possui R$ 19 milhões em pagamentos atrasados. Apesar do pior ano em queimadas no Pantanal, também houve queda no ritmo de multas e autuações do Ibama na região, como repercutido pela imprensa em setembro. Em discurso gravado para a ONU (22/9), o presidente Bolsonaro culpou “índios e caboclos” pelas queimadas no Brasil. Já o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu a criação de gado na região como forma de conter os incêndios — uma tese conhecida como “boi bombeiro”, desmentida por especialistas. Para Wanderlei Pignati, professor da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o grande responsável pelos incêndios é o agronegócio. “Os rios que formam o Pantanal nascem dentro das plantações de soja, de milho, de algodão e das pastagens. Com as nascentes desmatadas, diminui-se a vazão desses rios”, avaliou, durante debate online promovido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 13/10.

Agro é fogo

“O Pantanal tem gente e essa população é majoritariamente composta por indígenas e negros. São comunidades guardiãs de práticas agroecológicas e de sementes crioulas, que estão com essas famílias há gerações”. Quem diz é Franciléia Paula de Castro, conhecida como Fran, quilombola e pantaneira, engenheira agrônoma e educadora popular da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Mato Grosso. Segundo ela, que tem atuado diretamente no apoio a famílias de pequenos agricultores e comunidades tradicionais, o modo de vida desses povos é adaptado ao ecossistema — e o desequilíbrio ambiental afeta diretamente a sobrevivência de todos eles. “São esses povos os protetores dos recursos naturais, e protegem as nascentes dos rios, porque sobrevivem do ecossistema pantaneiro e compreendem o equilíbrio e a dinâmica entre as cheias e a seca”, afirmou durante a Ágora Abrasco (13/10).

O avanço do agronegócio sobre o Pantanal não é novo, constata Fran. Uma carta assinada (2/10) por centenas de movimentos sociais e organizações, reforçada pela campanha #AgroéFogo, destaca que os incêndios criminosos têm por objetivo devastar a floresta para consolidar a grilagem. “Os grileiros se aproveitam da leniência do governo para incendiar o Pantanal, o Cerrado e a Amazônia e, assim, destruir a vegetação das terras públicas, em sua maioria devolutas e tradicionalmente ocupadas, buscando consolidar processos de grilagem”, diz o texto.

Fran relata que comunidades tradicionais em Poconé (MT) e região, em razão da seca e dos impactos climáticos, não conseguiram fazer boa colheita esse ano, o que prejudica a segurança alimentar e a perpetuação de sua cultura. “Imagina uma comunidade que tem uma semente passada de geração a geração há 200 anos. Não conseguir reproduzi-la em razão da seca não é apenas uma perda do alimento, mas também uma perda cultural e ancestral para esses povos”, pontuou. O alerta da educadora popular é de que o modelo de desenvolvimento agrícola centrado no capital estrangeiro “tem negociado nossas florestas com base em interesses de lucro”. “O modelo que queima o Pantanal hoje é o mesmo que queima o Cerrado e a Amazônia”. E completou: “Das nossas florestas, só as cinzas restarão?”.


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