Eles em Nós
Publicado em 25/11/2020 12:00 - Idelber Avelar
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Vocês estão sabendo que estamos, de novo, passando uma vergonha danada né? Nem me refiro às redes sociais – pelo menos a minha TL está lindíssima. Mas, com a exceção dos belos comentários de Casagrande, a situação na TV brasileira é grotesca. Até a BBC destacou a total incapacidade do Brasil de render homenagem a uma das figuras de todos os tempos, celebrar sua vida e seus feitos sem trazer a conversa a comparações umbiguistas.
Quando Ronaldo morrer, ou mesmo quando Pelé morrer, imagina-se a TV argentina dizendo obsessivamente que Messi fez X coisas que Ronaldo não conseguiu, ou que Maradona realizou Z coisas que Pelé não fez? Não, isso é inimaginável (e olha que Maradona cansou-se de fazer coisas que Pelé não fez – para começo de conversa, ganhar uma Copa do Mundo sozinho).
Só mesmo no Brasil a combinação entre excepcionalismo pachequista e gozinho frágil exige essa reafirmação besta “ah, que Pelé isso, Pelé aquilo” – o que é irônico, porque brasileiro não está nem aí para o Pelé. Todos reconhecem seus feitos, claro, mas ele não é amado em lugar nenhum, nem na torcida do Santos. Brasileiro só lembra do Pelé quando a grandiosidade de Maradona toma a cena. Aí os egozinhos gritam.
Em particular, o Sr. Galvão Bueno tem uma parcela de responsabilidade em qualquer episódio de violência ou intolerância argentinófoba relacionada ao esporte. Há décadas, esse Sr. trafica mentiras deslavadas sobre a Argentina, para começar o mito de que o futebol argentino seria mais violento que o nosso.
Bobagem dupla no caso de Maradona: ele adorava o futebol brasileiro, conhecia-o como poucos, curtia a brincadeira pícara com a rivalidade, sempre disse que seu melhor companheiro de ataque foi um brasileiro (Careca) e tem fotos com camisas do Flamengo, do Palmeiras, do Grêmio. Adorava ir ao Brasil ver jogos.
Em Minas Gerais, evidentemente, Maradona conheceu e amou o GALO. Visitou-nos há pouco tempo e exibiu, orgulhoso, o manto do Bruxo, Campeão da América de 2013. Grande é grande.
Maradona demonstrou inúmeras vezes a regra número 1 do futebol: "não dirás merda antes do jogo".
Corria o ano de 1980 e o goleiro do Boca Juniors, o mítico El Loco Gatti, declarou o seguinte antes de uma partida contra o Argentinos Juniors: "Maradona no es gran cosa. Es un gordito, un invento del periodismo".
Maradona ficou sabendo. Entrou em campo e fez QUATRO gols em Gatti. E o pobre Gatti deu mais azar ainda com a data, que já era famosa naquela época (por causa do golpe no Chile) e depois ficou mais famosa ainda (por causa do ataque às torres gêmeas nos EUA).
11 de setembro de 1980, Argentinos Juniors 5 x 3 Boca Juniors, com 4 gols de Maradona. O segundo, o terceiro e o quarto são pinturas sensacionais. O quarto é uma falta da entrada da área que ele bate como se fosse um pênalti.
Aí vai a melhor ilustração que conheço da regra "nunca diga merda antes do jogo".
Diego, humilhando seu clube de coração.
MÃE
"Quando chegava a hora do almoço, a minha mãe dizia que estava com dor na barriga, porque ela queria que nós comêssemos, e a comida não dava. Aos 13 anos, descobri que minha mãe nunca tinha sofrido do estômago. Nunca teve dor de estômago. Mentira! Era porque a comida não dava".
(D.A.M.)
Naquele momento, Diego é tomado por uma ideia obsessiva: ganhar a vida com o futebol, aposentar o pai, alimentar a mãe. Dois anos depois, aos 15, ele já tinha feito isso.
Em toda a América Latina, em poblaciones, villas miseria e favelas, os pobres entenderam a obsessão de Diego e lhe dedicaram um amor sem paralelo na história do futebol.
O SUFICIENTE
Corria o 80˚minuto e o Brasil tinha amassado a Argentina o jogo inteiro. Havíamos jogado mal a primeira fase e vencido Suécia, Costa Rica e Escócia por placares mínimos. A Argentina havia jogado pior ainda, e só pegou o Brasil porque se classificara na repescagem.
Naquele jogo, no entanto, o limitado time do Brasil estava atuando bem. Depois de ver o Brasil esmagar a Argentina durante 45 minutos, no intervalo meu irmão se voltou para mim e disse: "CADÊ A ARGENTINA NESSE JOGO? CADÊ A ARGENTINA NESSE JOGO?" Ali eu suspeitei que podia dar merda.
Começou o segundo tempo e o Brasil continuou amassando. Careca e Muller perdiam gols um atrás do outro.
Até que Maradona recebeu no círculo central, ainda em seu campo.
Congelem, em 0m01s, o momento em que ele está cercado por quatro brasileiros. Eram impossíveis o passe e o drible. A linha reta estava bloqueada, o giro à esquerda também. Com UM toque na única fresta aberta, na diagonal à direita, Diego tira os quatro brasileiros da jogada.
Dunga vem correndo desesperado, por trás, mas Diego sabe que ele está ali. Quando Dunga, em vez de continuar correndo atrás, tenta o bote, eu penso: AGORA FODEU. Ninguém acertava um bote em Maradona vindo de trás, com um passo de atraso. Mais um toque de Diego na bola, e Dunga desmorona no chão.
Se vocês congelarem em 0m05s, verão que Maradona CONTINUA cercado por três brasileiros: Ricardo Gomes, Ricardo Rocha e Mauro Galvão. Era uma zaga de respeito, este último era um quarto zagueiro experiente, de nível mundial.
A corrida não é em linha reta. É uma ligeira diagonal em que Diego vai levando, com a maior canhota da história do futebol, a bola na direção de sua perna cega, a direita. Ali ele tinha duas possibilidades: inverter o jogo completamente, para trazer de novo a bola à sua perna boa, ou tentar o passe a Caniggia com a perna cega. A estas alturas, claro, Caniggia está sozinho, porque o time inteiro do Brasil está caçando Maradona.
Diego opta pelo passe com a perna cega. Ele acelera e aumenta a inclinação da diagonal, para que Ricardo Gomes não tenha chances de bloquear. O passe sai com tal perfeição que dois zagueiros brasileiros vivem o vexame de trombarem um com o outro, enquanto a bola viaja, por baixo das pernas de um deles, límpida, para Caniggia, que poderia ter feito o gol de qualquer jeito que escolhesse.
Ainda faltavam 10 minutos e o Brasil havia dominado toda a partida, mas qualquer um que soubesse algo de futebol ali sabia: acabou, já era.
Diego só arrancou com a bola uma vez naquele jogo. Foi o suficiente.
DOC
Inesquecível cena do documentário Maradona, de Emir Kusturica. Letra e música de Manu Chao:
Se eu fosse Maradona
Eu viveria como ele
Se eu fosse Maradona
Em frente a qualquer baliza
Se eu fosse Maradona
Eu nunca estaria errado
Se eu fosse Maradona
Perdi em qualquer lugar.
A vida é uma tombola
Noite e dia
A vida é uma tombola
E pra cima e pra cima
Se eu fosse Maradona
Eu viveria com ele
Mil foguetes, mil amigos
E o que vier a mil %
Se eu fosse Maradona
Sairia em Mondovisão
Para gritar com a FIFA
Que eles são o grande ladrão!
A vida é uma tombola
Noite e dia
A vida é uma tombola
E pra cima e pra cima
Se eu fosse Maradona
Eu viveria como ele
Porque o mundo é uma bola
Que se vive a flor de pele
Se eu fosse Maradona
Em frente a qualquer merda
Eu nunca estaria errado
Se eu fosse Maradona
E uma partida para ganhar.
Se eu fosse Maradona
Perdido em qualquer lugar
A vida é uma tombola
Noite e dia
A vida é uma tombola
E pra cima e pra cima
PRA CHORAR
É pra chorar, perdoe-me!
Maradona, numa corrida memorável, na jogada de todos os tempos.
Barris cósmicos, de que planeta você veio para deixar tanto inglês no caminho!
! para que o país seja um punho apertado, gritando pela Argentina!
UM OBITUÁRIO
Inútil eu tentar escrever um obituário depois deste. Fiquem com esta frase: “Na consciência de milhões de homens e mulheres, a notícia vai demorar a tornar-se tolerável”.
La mejor necrológica de la historia, al menos en el periodismo argentino, es la que escribió Rodolfo Walsh a la muerte…
Publicado por Juan Pablo Csipka em Quarta-feira, 25 de novembro de 2020
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