19/04/2024 - Edição 540

Judiciário

Desigualdade racial no Judiciário

Publicado em 20/11/2020 12:00 -

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Entre os tantos setores que representam a desigualdade racial no Brasil, o Judiciário talvez seja um dos que tornam o abismo mais evidente. Dados do Censo do Poder Judiciário divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2018 apontam que, entre os magistrados, 16,5% se autodeclaram pardos e 1,6% pretos. O percentual está muito distante da realidade da sociedade brasileira, composta, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019, por 46,8% de pardos e 9,4% de pretos. “O primeiro desafio que se constrói é você se identificar com aquela profissão, na medida em que você não se enxerga nela em termos de representação racial”, resume a juíza Karen Luise Vilanova Batista de Souza, da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre.

Diante de tal realidade, neste ano, o Sindicato dos Servidores da Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (Sindjus) está promovendo o Novembro Antirracista que, além de debater o enfrentamento ao racismo com a categoria, vem discutindo as barreiras a serem superadas para uma participação efetiva dos negros nesse ambiente.

“A gente tem pensado em fazer um debate mais aprofundado sobre questões que afetam a sociedade, e dentre elas o racismo”, afirma Emanuel Dall’Bello, servidor do poder judiciário e diretor de comunicação do Sindjus. A PNAD de 2017 indica que 13% dos gaúchos se autodeclaram pardos e 5,2% pretos. “O Poder Judiciário hoje é altamente hierarquizado e ele tem cerca de apenas 4% de negros aqui no Rio Grande do Sul. O número de pessoas autodeclaradas negras é praticamente nulo na cúpula do poder”, destaca Dall’Bello.

Luiz Mendes, sociólogo, mestre em educação, especialista em educação étnico racial e Judiciário destaca alguns dos principais desafios enfrentados pelo negros. “Para nós, homens e mulheres negros, é muito difícil entrar no Judiciário. Sem as cotas raciais, as nossas dificuldades são enormes, tanto no acesso a cargos de ensino médio como nos de nível superior e também na magistratura”, afirma. A raiz dessa dificuldade está na desigualdade de acesso ao ensino entre negros e não negros. “Eu, por exemplo, comecei a trabalhar com 14 anos. Quem entra no Judiciário, com 14 anos já tem três ou quatro cursinhos para entrar na universidade e, durante a universidade, já está estudando sabendo que vai ser juiz ou promotor. Nós não, nós saímos trabalhando e aí a gente trabalha e estuda”, exemplifica.

As mulheres negras que ocupam esse espaço precisam enfrentar ainda a combinação entre racismo e machismo. Historicamente na base da pirâmide social no Brasil, elas são exceção no Judiciário. Segundo dados da ferramenta Justa, lançada em agosto de 2019, para cada juíza negra há 7,4 juízes brancos no país. “Se essa exclusão de pessoas negras se deu por uma política de estado, é por uma política de estado que ela também deve ser desmantelada”, afirma a juíza Karen Luise. “Eu me coloco, assim como outros colegas juízes negros, como um grande desafio propiciar o acesso a mais pessoas negras à carreira jurídica. E esse acesso não é apenas para a gente ter um equilíbrio na composição racial, esse acesso é para termos uma produção jurisdicional partindo de pessoas diferentes, assim como a nossa sociedade” completa.

O impacto social da ausência de negros

A ausência de negros em setores determinantes da sociedade, como o Judiciário, se evidencia diretamente no racismo estrutural. “O impacto está demonstrado nos números. Não é à toa que temos um encarceramento em massa de pessoas negras, que por exemplo, que a Lei Maria da Penha tenha um efeito maior para as pessoas brancas, que a assistência à saúde de pessoas negras seja pior ou que pessoas negras tenham menos escolaridade”, diz Karen. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), 4,7% do quadro de executivos do Brasil é composto por pessoas negras, sendo que esse recorte é ainda menor quando se trata de mulheres negras, representando apenas 0,4% do total.

Camilo Onoda Caldas, advogado, pós-doutor em Direitos Humanos e Democracia e diretor executivo do Instituto Luiz Gama, acredita que a ausência de diversidade no Judiciário torna inviável compreender inteiramente questões relacionadas a diferentes grupos sociais. “Uma pessoa que não é de uma determinada minoria pode ter muito mais dificuldade para entender o fenômeno. Quando uma pessoa é negra, ela tem as condições de saber melhor de que modo aquele fenômeno ocorre. Muitas vezes já experimentou aquilo, então ele sabe, por exemplo, que o preconceito, às vezes, se manifesta não por uma ação, mas por uma omissão”, afirma.

Caminhos para a mudança

Para Luiz Mendes, a mudança começa pelo sistema educacional brasileiro. “Eu consigo te responder em uma palavra: educação. Essa é a questão central. O modelo educacional eurocêntrico, que é o nosso modelo de educação, é excludente aos negros. A gente percebe que o modelo educacional brasileiro não possibilita que os nossos jovens negros e as nossas crianças negras queiram efetivamente estar na escola porque é uma escola que não os aceita, ao mesmo tempo em que os menospreza”, afirma.

Karen aponta que outro fator importante para a mudança dessa realidade é a oportunidade aberta por cursos preparatórios e cotas nos concursos públicos. “O que tem que ser feito é levantamento racial, formação de magistrados, de servidores, alteração da resolução para que mais juízes negros existam e que esses juízes, para além de alterarem a composição da magistratura, possam de fato mostrar outras perspectivas para o exercício da jurisdição”, defende. Para Caldas, entretanto, uma mudança profunda precisa começar pelo interior das instituições. “As instituições precisam ter programas, precisam ter metas, precisam ter iniciativas para a formação desses profissionais”, afirma.

O objetivo do Sindjus é promover esse debate entre a categoria. “A gente está tentando criar mais espaço para essas pessoas que já estão dentro do Judiciário justamente para debater com elas esses temas dentro da estrutura do sindicato”, diz Dall’Bello. “Achamos que tem que melhorar muito ainda para tentar levar para dentro do Tribunal de Justiça esse espaço de participação para discutir as questões da negritude no contexto do judiciário, para buscar essas alternativas em conjunto, porque isso é uma construção coletiva”, explica.


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