16/04/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Se já tínhamos problemas com a Europa, agora temos também com os EUA’, afirma embaixador Sérgio Amaral

Publicado em 10/11/2020 12:00 -

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A eleição de Joe Biden como novo presidente dos Estados Unidos poderia deixar o Brasil mais isolado e ter custos para o país, em termos de comércio exterior. A avaliação é do embaixador aposentado Sérgio Amaral, que chefiou a embaixada brasileira em Washington (2016 -2019), e teve contato direto com Biden durante a visita do ex-presidente Michel Temer aos EUA, em meados de 2018. Em entrevista ao GLOBO, Amaral afirmou que o governo brasileiro “terá de fazer um ajustamento da sua política externa, em face das muitas mudanças em curso”. Para o embaixador, “a pergunta, no atual momento, é quem são nossos parceiros na comunidade internacional?”.

 

Quais podem ser os impactos da eleição de Biden no Brasil?

Primeiro, temos de distinguir duas coisas. A questão Amazônia e seu possível impacto sobre o comércio. Outra questão é a geopolítica. Sobre a questão da Amazônia, como todos sabemos existe um grupo importante que apoia Biden e desempenhou um papel importante, o grupo mais progressista, que faz parte das propostas e visões de Bernie Sanders (senador democrata). Esse grupo tem importantes compromissos com a questão ambiental e o presidente eleito já disse que é uma de suas prioridades. Não vejo Biden tendo razão ou motivação para ter atitude hostil ou contra o Brasil. Mas, esse grupo vai exercer pressão possivelmente sobre o Congresso, a opinião pública. O que esse grupo pode defender é que sejam tomadas medidas para assegurar que o Brasil assuma um compromisso firme e concreto sobre desmatamento. Se isso não ocorrer, é possível que exerçam pressão para que sejam adotadas medidas de restrição ao comércio com o Brasil. Essa questão reveste maior força se você considerar que, ao mesmo tempo, a Europa está indo na mesma direção. Juntos, EUA e Europa representam quase 50% de nossas exportações.

Existe, ainda, um impacto político…

Com o presidente Trump, os EUA foram o país mais importante deste novo movimento do populismo nacionalista, que tem suas ramificações na Europa, na França, Alemanha, Hungria, Polônia. Se você considerar a saída de Trump, este movimento, ao qual também pertencemos, vai perder bastante força. Vai afetar a posição brasileira. Uma coisa é ter como parceiro os EUA, outra coisa é ter a Hungria e a Polônia. Se já tínhamos problemas com a Europa, agora também com os EUA, outros problemas com a China… o Brasil passará a estar num certo isolamento. Quem são nossos amigos? Com a China ocorreram provocações desnecessárias, mas que podem nos afetar. A pergunta é: quais são nossos parceiros na comunidade internacional? Qual é nossa visão diante de um mundo que se modificou substancialmente? Em que áreas vamos atuar?

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Como foi seu encontro com Biden, em 2018?

Foi um encontro longo, levou quase uma hora, em que o presidente Biden mostrou um pouco da sua visão sobre a América Latina, sobretudo uma visão positiva. Uma visão de que a região representa um agrupamento importante de democracias e economias modernas. Ele via, naquele momento, condições positivas para uma relação com as Américas, um espaço para a cooperação, sobretudo com o Brasil, que desempenha um papel central.

O fato de o governo brasileiro ser um dos poucos que não parabenizou Biden pela eleição pode afetar o futuro da relação bilateral?

O Brasil é um país importante, tem peso econômico e político, e tem tradicionalmente uma relação de amizade com os EUA. É uma questão entre dois países e isso não pode sofrer influência ou ser determinado por quem está no governo. Terá de ser feito um ajustamento da política externa (brasileira) em face das muitas mudanças em curso. A eleição de Biden seria uma oportunidade para um gesto positivo.

O reconhecimento de sua vitória?

Um cumprimento pela eleição já reconhecida de forma expressiva por um número grande países. A vitória (de Biden) na eleição já é um fato.

Na posse do novo presidente da Bolívia, Luis Arce, o Brasil foi representando pelo embaixador em La Paz. O senhor acha que hoje a ala ideológica é o que tem mais peso na política externa?

Corremos o risco de tomar medidas semelhantes a que os governos do PT tomaram, que e valorização das afinidades ideológicas atuem em detrimento dos interesses do país, da tradição diplomática. Só que agora em vez de uma atitude que privilegiava as afinidades para a esquerda, tomamos medidas para a direita.

Quais são os desafios para o governo Biden?

Depois de uma campanha bem feita, estruturada, Biden encontrará um país inteiramente dividido. Será difícil governar um país muito dividido, ele precisará de muito apoio, da opinião pública, da Câmara de Representantes. Ele se situa numa posição de centro, mas tem um grupo importante, que desempenhou um papel importante na eleição e gerou expectativas altas.

Trump continuará liderando o Partido Republicano?

Essa é uma questão muito discutida agora, devem ser levadas em conta várias  questões. Ele é parte do movimento nacionalista populista, que já teve importância maior, não sei se continuará sendo um movimento ascendente na política mundial. A divisão afeta todos os partidos. No Partido Democrata, tem uma linha mais à esquerda, progressista. No Republicano tem duas correntes e o establishment republicano tem restrições ao que Trump representa. É um casamento por conveniência. Trump dá votos ao partido e recebe em troca uma estrutura partidária, sem a qual não se pode governar. Como será feito o ajustamento entre esses dois grupos? Continuarão convivendo bem? Ele (Trump) teve uma votação grande, mas será que ele tem condições de manter a fidelidade do eleitorado cativo? São questões que o tempo e o jogo político dirão.


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