28/03/2024 - Edição 540

Entrevista

‘Em 2022 devemos ter alternativas não polarizadas’, diz Sergio Moro

Publicado em 09/11/2020 12:00 -

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Em entrevista à jornalista Bela Megale, do jornal O Globo, Sergio Moro criticou o ambiente de polarização entre esquerda e direita e admite que tem conversado com nomes que buscam construir uma alternativa. Reconheceu que esteve, em outubro, com o apresentador Luciano Huck, como informou o jornal 'Folha de S.Paulo', para “conversar sobre o Brasil”, mas negou que, neste momento, seja candidato ao lado de Huck. “A construção disso é importante, e não necessariamente passa por mim. Não existe nada pré-determinado”. A seguir, os principais trechos da entrevista.

 

Estamos a dois anos das eleições presidenciais. O senhor está se articulando com lideranças para construir uma terceira via de candidatura?

Eu ficaria bastante desapontado se chegássemos em 2022 e tivéssemos apenas, como perspectivas eleitorais, dois extremos polarizados, a esquerda e a direita. O brasileiro tem um perfil mais moderado, e essa moderação favorece comportamentos de tolerância, que é o que nós precisamos, e o fim desse ciclo de ódio, que envolve principalmente as figuras do presidente (Bolsonaro) e igualmente do PT, especialmente o ex-presidente Lula. A construção disso é uma coisa importante, e não necessariamente passa por mim. Existem várias pessoas.

O senhor teve uma conversa com o apresentador Luciano Huck sobre as eleições. Trabalha na construção de uma chapa com ele?

Existe muita especulação sobre 2022. O que posso dizer é que há uma movimentação de pessoas com perfil de centro que têm conversado. Várias pessoas podem ser bons candidatos de centro, como o próprio Luciano Huck, o (governador) João Doria, o ex-ministro Mandetta, o João Amoêdo ou mesmo o vice Hamilton Mourão. São conversas, mas isso não quer dizer que exista algo preestabelecido.

Mas saiu algum compromisso dessa conversa com Huck?

Foi só uma conversa. Eu já conhecia o Luciano faz um tempo. Nós nos encontramos e conversamos apenas sobre o Brasil, o cenário, mas não existe nada pré-determinado.

O senhor tem falado com outros nomes?

Todo mundo está conversando, mas isso não significa que vou ser candidato. Minha preocupação é com o momento atual. Essas questões eleitorais sobre o que irei fazer no futuro são meramente especulativas. O que penso é que essa polarização de hoje obscurece os debates reais que temos que realizar. É meu desejo, como o de muita gente, que, em 2022, tenhamos alternativas não polarizadas. Qualquer candidato que apele para o discurso de ódio não é um bom candidato.

O senhor e o ex-ministro Mandetta mantêm conversas desde que deixaram o governo. Essa é mais uma alternativa para 2022?

Mandetta teve um papel relevante no início da pandemia, porque precisava manter as convicções dele baseadas em evidências, em contrariedade ao próprio presidente. Ele se destacou bastante.

O senhor diz que está preocupado com 2020, e não com 2022. O que isso significa?

Eu saí da vida pública, da magistratura, e depois do cargo de ministro. Hoje, meu plano é continuar sendo uma voz ativa em prol dos princípios e bandeiras nas quais acredito. Temos um Brasil cada vez mais isolado na perspectiva internacional. Isso tem consequências para o desenvolvimento. Temos questões na área ambiental, urgências na economia. Há muita coisa para acontecer até 2022 e o foco não pode ser esse (a eleição).

O que significa a vitória de Joe Biden nos EUA?

O resultado nos Estados Unidos mostra que o país continua uma democracia forte. Um dos significados da democracia é permitir essa alternância de poder. O presidente eleito acenou para a união de todos americanos, esse é o espírito que deve prevalecer. Biden tem o histórico de ser um político moderado. As relações entre Brasil e Estados Unidos, que são boas, devem ser trabalhadas para ficarem melhores ainda.

O presidente Bolsonaro já disse que não tem corrupção no seu governo. Dias depois, um aliado do governo apareceu com dinheiro na cueca. O que pensa disso?

Não temos ouvido notícias a respeito de escândalos de corrupção como tínhamos no passado, mas têm surgido casos pontuais que precisariam ter uma resposta dos órgão de controle. Temos tido retrocessos sim, infelizmente. E isso acontece desde o ano passado, não só por decisões de outros poderes, mas também por uma certa inação do Poder Executivo.

Quais retrocessos?

Vejo a omissão do governo em apoiar a retomada do restabelecimento da prisão após a condenação na segunda instância. Isso é injustificável e contraria, inclusive, as promessas de campanha feitas em 2018. Da mesma forma, havia uma expectativa de que poderíamos caminhar para a redução do foro privilegiado. O governo tem se mantido inerte em relação a esses temas. Então, a afirmação de que não existe corrupção, em primeiro lugar, não é absolutamente consistente com os fatos. Segundo, se não trabalharmos em um sistema de controle e prevenção, a corrupção vai voltar e, talvez, mais intensa do que foi no passado.

O senhor vê uma mudança de postura do governo sobre esse tema?

O governo tinha uma posição bastante rígida no início, em relação ao não loteamento político-partidário dos cargos públicos, por exemplo. Parece que essa política mudou sensivelmente no decorrer deste ano. Isso também acaba sendo uma possível fonte de oportunidades de práticas de corrupção. Se diminui o risco para o criminoso e aumenta a oportunidade, a prática é previsível.

O envolvimento do senador Flávio Bolsonaro em investigação criminal tem contribuído para esses retrocessos?

O governo federal tem falhado, principalmente por sua postura omissa em relação ao restabelecimento da prisão em segunda instância, por PEC ou por projeto de lei. Também senti isso na falta de apoio a várias medidas do projeto de lei anticrime. Os motivos dessa omissão devem ser indagados ao próprio governo. Não tenho condições de responder por ele.

Algumas leis de combate à corrupção são alvos de propostas que enfraquecem, por exemplo, ações contra lavagem de dinheiro? Como vê esse movimento?

Ainda não existe um texto final desse projeto de lei que está no Congresso, mas a minha impressão é que estamos brincando com fogo. Ao mudarmos a nossa legislação sem tomar cuidado com nossos parâmetros internacionais de combate à corrupção e lavagem, corremos o risco de sermos expulsos do Gafi/FATF (Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento do Terrorismo, entidade intergovernamental que trata do tema). Além do risco de nos tornarmos paraíso para lavagem de dinheiro de crimes como tráfico de drogas, ainda podemos prejudicar nossa economia. É preciso ficar muito atento para verificar se esse projeto, no final, não vai afetar nossa posição na comunidade internacional.

Que tipo de medida, na prática, pode ser prejudicial?

Se a nova lei proibir, por exemplo, o compartilhamento de relatórios de inteligência do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) com órgãos de investigação, estaremos na direção errada. Corremos um sério risco de o Brasil se tornar um párea internacional no âmbito da lavagem de dinheiro, embora tenha gente que não veja problema nisso. Não faço juízo definitivo sobre esse projeto e o que trata da lei geral de proteção de dados, porque ambos estão em andamento, mas temos que olhar para frente, não para trás.

O governo alimenta o plano internacional de entrar na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Essas eventuais mudanças ameaçam esse projeto?

Elas não só comprometem nosso ingresso na OCDE, como podem afetar nossa reputação, com risco de sermos expulsos de certos órgãos internacionais. Fazer parte desses órgãos não é só uma questão de prestígio internacional, mas algo que tem reflexos reais na economia. Temos um exemplo que aconteceu em julho do ano passado. Na época, foi concedida uma liminar pelo ministro Dias Toffoli, que suspendeu um processo de investigação por lavagem de dinheiro (Moro se refere ao caso sobre o pagamento de rachadinhas que envolve Flávio Bolsonaro, quando foi deputado estadual no Rio). Como esse processo tinha uma repercussão geral, afetou todas as investigações em curso no país baseadas em dados sigilosos compartilhados pela Coaf sem prévia autorização judicial.

E qual foi a consequência dessa liminar?

Aquilo gerou um risco de suspensão do Brasil no Gafi/FATF. Foi enviada uma comissão antissuborno da OCDE para o Brasil, com observadores. Visitaram várias autoridades, houve envio de cartas do presidente do Gafi, externando essa preocupação. Posteriormente, o próprio STF, inclusive o ministro Toffoli, acabou revendo a liminar. Se não tivesse havido essa revisão, seríamos expulsos do Gafi, e isso teria consequências terríveis para a economia. Tanto é assim que quem capitaneou o convencimento com os ministros do Supremo para evitar essa expulsão foi o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Eu vi as propostas de mudança na lei de lavagem. É cedo para avaliações, mas uma crítica que já pode ser feita à Comissão que debate o assunto é a pouca participação de órgãos do Poder Executivo.

Quais órgãos?

Não constam representantes da PF, do Conselho de Atividades Financeiras, da CGU. Há uma predominância de advogados. Isso não tem nada de negativo, em princípio, mas seria interessante que houvesse representantes desses órgãos para ter uma visão especifica, já que eles estão encarregados, muitas vezes, do combate à lavagem.

O senhor mencionou que o governo também enfrenta questões na área ambiental.

Nessa área, o governo peca, essencialmente, pelo discurso. Tem feito operações importantes, como a Verde Brasil, capitaneada pelo vice Hamilton Mourão. Esses esforços, porém, ficam prejudicados, quando há um discurso equivocado da parte da nossa liderança maior, porque isso acaba comprometendo o próprio efeito preventivo dessas ações contra o desmatamento. O discurso dessa liderança nega qualquer problema e invoca, a meu ver, com cálculo eleitoral, a questão da Amazônia com perspectiva ufanista, de que é nossa e que, por isso, podemos fazer o que quisermos.

O senhor se refere ao presidente Jair Bolsonaro.

É… o presidente da República tem um grande poder. Ele ensina as pessoas, ao dar exemplo. As palavras são muito fortes. Quando uma ação é prejudicada pelo discurso equivocado da liderança maior, seu efeito diminui, até porque a comunidade internacional ouve muito a palavra dessa liderança.

Sobre o STF, o senhor avalia que o perfil garantista de Kassio Marques foi essencial para que ele fosse indicado pelo presidente?

Não conheço pessoalmente o ministro Kassio e espero que ele tenha sorte e sucesso na carreira. Ele se autoafirmou como garantista. Acho que esses rótulos não se justificam, porque todo magistrado tem preocupação com os direitos do investigado. Isso não significa defender um sistema judicial que não seja efetivo contra os culpados. Estamos vendo vários episódios nos últimos meses em que lamentamos não ter um sistema mais efetivo. Tivemos recentemente a soltura de um grande traficante (André do Rap, líder do PCC). Vamos ver a atuação dele no STF e não julgar o ministro antes mesmo dele exercer o cargo.

Bolsonaro mudou o perfil da escolha que previa para o Supremo?

De certa forma, o presidente, quando foi eleito, tinha o discurso um pouco diferente em relação ao perfil dos magistrados que iria indicar ao Supremo. Isso não é uma crítica ao indicado, mas uma ponderação em relação à posição do presidente. No cenário atual, parece difícil que ele indique pessoas com um perfil mais linha dura no trato da questão criminal, haja visto o discurso que ele vem adotando em relação a essa temática. Assim como o governo deixou de lado a execução da prisão após a segunda instancia, parece que hoje essa não é mais uma preocupação.

Acredita que o STF vai se posicionar pela depoimento presencial do presidente Bolsonaro e dar o mesmo tratamento que o senhor teve no inquérito que os envolve? Que desfecho espera dessa investigação?

Esse inquérito foi aberto e isso até me surpreende. A minha intenção não era essa, mas sim esclarecer por que eu estava saindo do governo, além de buscar alguma proteção para a PF. Houve uma iniciativa do procurador-geral (Augusto Aras) de instaurar o inquérito, inclusive, me colocando como um dos investigados. Eu não tenho interesse pessoal nesse inquérito. O que o STF decidir sobre o depoimento do presidente e o que for concluído, não dou muita importância. Para mim, é irrelevante.

O senhor se posiciona com frequência nas redes sociais sobre diversos temas. Como lida com o ambiente de ódio?

Tenho tido muito cuidado nas minhas postagens, para evitar qualquer tipo de fomento a esse discurso de ódio. Até me penitencio por uma ou outra postagem em que posso ter sido mais veemente, mas hoje tenho esse compromisso comigo de evitar qualquer espécie de agressão em rede social. Não podemos combater fogo com fogo.

O que achou da atuação da Justiça no caso do estupro de Mariana Ferrer?

Vi o vídeo que circulou na internet. Fica claro que o advogado errou ao tratar, na audiência, a pessoa que denunciou um estupro com aquela agressividade. Sinceramente, penso que o advogado deveria, pelo menos, pedir desculpas públicas e, quem sabe, até mesmo indenizar a ofendida. Digo isso independentemente da questão do estupro, já que cabe aos tribunais julgar a acusação. Pelo menos o vídeo teve o efeito positivo de chamar a atenção de todos, para que ajam com maior cuidado e respeito às vítimas em processos por crimes sexuais. Não raramente, a prática é de tentar desconstruir a vítima, o que é reprovável e significa submetê-la a novo padecimento moral.

A sua quarentena de ministro acabou em outubro. Quais os planos agora?

Acredito muito no potencial do setor privado para implementar políticas anticorrupção. Minha pretensão, no momento, além de participar do debate público, é fomentar, no setor privado, esse processo para que as próprias empresas tomem iniciativas para adotarem políticas de conformidade com a lei. Vou fazer o que eu acredito no âmbito do setor privado, sem prejudicar outras atuações.

Como enxerga o presidente Bolsonaro hoje?

Não tenho nenhum sentimento de animosidade. O que eu vejo, a distância, e ainda quando estava no governo, é que falta um ímpeto mais reformista.

O que o senhor quer dizer com isso?

Tivemos uma reforma importante, que foi a da previdência, no ano passado, mas existem várias reformas na agenda, mais ambiciosas ou microrreformas, que podem fazer diferença. A própria agenda anticorrupção aparenta ter sido abandonada. Não podemos esperar um eventual segundo mandato, um próximo presidente. Temos que trabalhar nas reformas desde já.

Neste mês, faz dois anos que o senhor aceitou integrar o governo Bolsonaro. Está arrependido?

Eu aceitei ir para o governo diante de circunstâncias muito específicas. Tinha a ambição, não no sentido pessoal, de que poderia implementar políticas públicas consistentes com o que acredito. Em certa parte, isso foi bem-sucedido, especialmente no combate ao crime organizado. Agora, em relação à agenda anticorrupção, não pude avançar, em parte, pela falta de um apoio maior do Planalto. Senti que era o momento de sair. Agora, olhando para 2018, vejo que a minha decisão de entrar no governo foi racional e apoiada, até por pesquisas da época, por grande parte da população. Não me arrependo por ter tentado fazer o que acredito.


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