28/03/2024 - Edição 540

True Colors

Dossiê mostra preconceito e violência sofrida pela população LGBTI negra

Publicado em 04/11/2020 12:00 - Constança Tatsch – O Globo

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

Mariah Rafaela Silva é uma mulher trans negra e, apesar de precisar, como toda mulher, não sabe se vai ter coragem de voltar a um ginecologista. Não depois que um médico, ao saber que ela havia passado pela cirurgia de redesignação sexual, chamou um colega à sala de exames e enfiou até o punho em sua vagina alegando que queria conhecer sua elasticidade e profundidade.

Professora, ela espera há uma década “um pedido de desculpas da universidade”. Durante sua formação, passou por diversas violações, como professores que se recusavam a adotar seu nome social, abaixo-assinado para que não usasse o banheiro feminino, colação de grau separada do resto da turma, além de desaforos.

— Eu só queria estudar e ir para a faculdade como qualquer menina. Saí da faculdade com apenas dois amigos, passei a vida acadêmica isolada. Isso interfere no bem-estar, no estresse, em traumas, nos desejos suicidas… Professores se recusavam a reconhecer minha humanidade, fui chamada de vira-lata por causa da minha origem. A transfobia era também uma questão racial. Há muitas violências, que podem não ser físicas, mas simbólicas.

A dificuldade de acesso à saúde, à Justiça, à educação e ao mercado de trabalho são algumas das violações pelas quais passa a população LGBTI negra. São milhões de pessoas que sofrem não só com o preconceito e a violência, mas com a invisibilidade. Pela primeira vez, um levantamento sobre elas foi elaborado e será lançado nesta quinta-feira: o dossiê “Qual é a cor do invisível? – A situação de direitos humanos da população LGBTI negra no Brasil”, elaborado pelo Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos. 

— Nosso foco é mostrar como raça, classe, gênero e sexualidade operam de maneira conjunta — afirma Isaac Porto, oficial do programa LGBTI no Brasil, encarregado da elaboração do informe.  — A principal ideia é denunciar as invisibilidades às quais a população LGBTI negra é submetida, do ponto de vista social, político e econômico.

Num corte cru, é possível imaginar que pelo menos 15 milhões de brasileiros integrem esse grupo heterogêneo. Não há números oficiais sobre eles, mas é possível fazer um cálculo cruzando dados da população LGBTI com a porcentagem de negros no país.   

Em 2018, estimava-se que o Brasil tinha 208,5 milhões de habitantes, dos quais 115,9 milhões eram pretos ou pardos, ou seja, 55% da população. O Grupo Gay da Bahia calcula que existam aproximadamente 20 milhões de gays, 12 milhões de lésbicas e 1 milhão de pessoas trans, o que daria em torno de 33 milhões de pessoas. A ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), por sua vez, trabalha com a estimativa de que a população trans corresponde a 1,9% da população (3,9 milhões).

Victor Madrigal-Borloz, especialista independente da ONU em proteção contra a violência e discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero que assina o prefácio do dossiê, dá exemplos das diferentes realidades: a expectativa de vida das pessoas LGBT no mundo é de três anos a menos do que a média, mas a expectativa de uma mulher trans é de 40 anos e, se ela for negra, cai para inacreditáveis 30 anos. No caso de homossexuais HIV positivos, há diferença gritante no acesso ao coquetel antiviral para quem mora na área rural ou urbana. E, enquanto um homem gay tem dois terços de chance de ser chamado após uma entrevista de emprego, uma mulher trans tem apenas uma em 20.

— Esse é o sentido da interseccionalidade. Não é uma agenda diferente, todos querem emprego, todos querem respeitabilidade. O dossiê bota uma lente de aumento e mostra que a cor tem um papel no contexto da discriminação e privilégios. No Brasil, a questão da raça, da pobreza, de ser rural ou urbano, é fundamental para experiências únicas de discriminação — afirma.

Coleta de dados

De acordo com a Diretora do Programa LGBTI no Brasil do Instituto Internacional sobre Raça, Igualdade e Direitos Humanos, Zuleika Rivera, o dossiê foi criado “porque vimos que as discussões dentro do movimento LGBTI não levavam realmente em consideração as experiências dos negros”. 

— Pessoas negras LGBTI lutam para existir e resistir em uma sociedade que quer negar sua própria existência. Quando você é morto apenas por causa da cor da sua pele, orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero, então você sai de casa todos os dias lutando para viver, para sobreviver. Só neste ano, segundo a ANTRA, foram assassinadas 124 pessoas trans e travestis, a maioria negra.

Segundo Rivera, é preciso que o governo comece a coletar dados que considerem raça, gênero, orientação sexual e identidade de gênero para que possa construir políticas públicas efetivas. Também é necessário que as autoridades passem por treinamentos sobre quem são e os direitos LGBTI. 

O professor de português Tiago Alves Pereira, 35, como um homem negro e grande, sente na pele a cobrança por uma masculinidade exacerbada, tão ligada à hiperssexualização do negro.

— Já ouvi de uma chefe que eu não devia “desmunhecar tanto”, porque já sou preto e se falo assim, ia “ficar ruim para mim” — conta Pereira, que destaca a marginalização da população negra LGBTI: — Vivemos uma total invisibilidade, porque o debate em torno das questões da sexualidade é um debate branco. Tem pautas que o movimento LGBT levanta que não servem ao LGBT negro, como a do casamento. Não que não seja bandeira importante, mas é para muito depois. A nossa questão é violência. Nossa questão ainda é assumir as relações afetivas. 

Leia outros artigos da coluna: True Colors

Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *