23/04/2024 - Edição 540

Comportamento

O que a depressão nos revela sobre a forma como vivemos

Publicado em 03/11/2020 12:00 -

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A escritora Elizabeth Gilbert recorre a uma série de práticas diárias que, segundo ela (em entrevista a Fearne Cotton), compõem o que considera sua principal ocupação: o equilíbrio de sua mente. Sua lista combina práticas físicas, emocionais e espirituais: o desenho, a dança, a meditação, o contato com os amigos e a escrita de cartas para ela mesma.

Nessas cartas, um hábito que mantém há décadas e considera “o mais importante para a preservação de sua sanidade”, dá conselhos e fala consigo sob outro ponto de vista, o que lhe permite um certo distanciamento do próprio sofrimento para que seja compreendido com mais clareza. Não se trata de espantar a tristeza, mas, contrariamente a isso, de sentir o que for necessário para evitar a paralisação causada pelos estados de depressão e ansiedade.

Essas práticas podem não ser suficientes, não servir para todos e, como qualquer hábito, podem ser difíceis de se consolidar, mas conforme ela revela, estão ao nosso alcance, nos entregando uma expressiva agência sobre a própria saúde mental. Mostram que nossa saúde depende, ao menos em parte, das escolhas que fazemos. É fácil compreender essa relação quando nos referimos à saúde física: desde muito pequenos aprendemos que alguns alimentos fazem mal, que é importante exercitar o corpo e que para ganhar equilíbrio e agilidade é preciso assumir certos riscos.

A transferência dessas mesmas proposições para o âmbito da saúde mental, apesar de evidentemente necessária, é raramente feita de uma forma explícita. Essa abordagem mais ampla exige o reconhecimento e compreensão da inevidente e ainda negligenciada relação mente-corpo e, o que é ainda mais desafiador, do complexo mundo das emoções, repleto de variáveis e de perguntas difíceis de responder.

Isso não significa que temos controle sobre como respondemos emocionalmente às aflições, mas indica que nossa biologia, sobre a qual não temos domínio, não escreve nosso destino, já que os transtornos da mente costumam ser multifatoriais — embora ainda não seja essa a história que prevalece quando falamos em depressão.

Desafiando a explicação simplista do desequilíbrio químico no cérebro, a conclusão à qual o britânico Jonhann Hari, autor de Lost Connections (Conexões Perdidas), chegou depois de vários anos dedicados a investigações sobre a questão foi de que a maior parte dos fatores relacionados à depressão não derivam da biologia, e sim da forma como vivemos e nos relacionamos. Esse conhecimento abre-se a uma série de soluções que podem ser oferecidas, ora como complemento, ora como alternativa aos tratamentos baseados em fármacos.

A biologia indica o caminho — e é uma indicação forte e inegável. Mas as experiências trazidas pelo meio, hábitos e relações interpessoais compõem o conjunto de fatores psicológicos e sociais que contribuem para os estados depressivos. Isso não significa que temos total controle sobre eles, mas são agentes que oferecem um pequeno espaço para grandes transformações.

Em uma entrevista ao curador do ciclo de palestras TED, Chris Anderson, Hari exemplifica: “Se para você é muito fácil ganhar peso, para outros pode ser difícil — o que não quer dizer que você está destinado a ganhar muito peso”. Ou seja, a biologia aumenta a probabilidade de respondermos de uma ou de outra forma aos estímulos e hábitos, mas jamais é suficiente para determinar os resultados.

É comum, por exemplo, que o corpo e a mente respondam de forma negativa a um ambiente que inconscientemente interpretamos como hostil ou que não atenda necessidades que nem mesmo aprendemos a reconhecer: de vínculo, de sol, de sono, de natureza e de propósito.

O cérebro humano evoluiu como resultado da convivência em grupo e foi moldado para depender de conexões profundas, sob o risco de sofrer dores psicológicas muito semelhantes, do aspecto neurológico, às dores físicas.

“É previsível que os índices de depressão e ansiedade acompanhem o crescimento da quantidade de pessoas que se declaram solitárias. Isolados em meio a milhares de rostos desconhecidos e indiferentes, afastados do mundo natural onde evoluímos, construímos uma sociedade que se organiza na direção da autossuficiência e do individualismo.”

Conforme o psiquiatra e filósofo britânico Neel Burton, autor de Growing From Depression (Superando a Depressão), a posição depressiva nos coloca em contato com uma perspectiva diferente em termos de tempo, espaço e relacionamentos — uma realidade que nos faz “passar a limpo” nossas conexões sociais, nos faz pensar no que realmente importa e pode nos reconectar com o cenário amplo.

É uma condição que, segundo ele, “evoluiu como um sinal de que há algo seriamente errado e que precisa ser transformado ou, no mínimo, processado e compreendido”. Fazer as pessoas acreditarem que seu estado é simplesmente o resultado de um desequilíbrio químico, ele explica, é tirar delas a oportunidade de identificar problemas que precisam ser trabalhados “e também de preencher seu potencial como seres humanos”.

Os estudos de Hari apontaram que a falta de um propósito na vida, de um trabalho significativo, também exerce um forte efeito sobre a saúde mental. Quando nossos esforços estão movidos não por um “o quê” mas por um “porquê”, é mais fácil manter afastada a sombra da desesperança, que pode escurecer todos os cantos da mente.

Compreender aspectos relacionados à depressão não significa que soluções estejam facilmente acessíveis, mas alguns hábitos sobre os quais temos um certo controle exercem um grande impacto no bem-estar mental, como o movimento do corpo e a qualidade do sono.

O fator “dormir bem” é um dos mais representativos na escala Hamilton (que fornece um número entre 0 e 52 de acordo com a severidade do estado depressivo), contribuindo para um resultado positivo de forma muito mais acentuada que o uso de fármacos, de acordo com alguns estudos.

Nem toda a mudança, no entanto, tem como ser feita em um nível individual e independentemente do meio. Muitas de nossas aflições percorrem vias mais profundas — sobre as quais geralmente temos pouca consciência — construídas coletivamente e, portanto, modificadas coletivamente. E se a busca por soluções deve partir da sociedade, vivemos um momento crucial para gerar reflexões que questionem nossas prioridades. A depressão passou a estar sempre à espreita, pronta para deixar nossos dias mais escuros e esconder a esperança em um local bem difícil de encontrar.

“Talvez tenhamos aprendido a buscar a felicidade, ou o bem-estar, nos locais errados – e devemos, juntos, reaprender a formar hábitos e relações que nos façam bem.”

Não há respostas simples, nem soluções prontas. Mas aceitar que somos reféns de uma combinação biológica sobre a qual não temos poder algum pode não ser a forma mais eficaz de lidar com um problema cujas raízes são variadas e podem ser muito significativas. Conforme coloca Hari:

“Seus genes e seu cérebro interagem com o ambiente. Se você conta às pessoas uma versão biológica simplista, o que está dizendo é que a dor delas não significa nada. É como um código errado em um computador. Mas uma das coisas que destaco é que deveríamos dizer o contrário: ‘seu sofrimento faz sentido, existem razões por trás que são compreensíveis e, juntos, como sociedade, podemos resolver alguns desses problemas’.”


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