19/04/2024 - Edição 540

Brasil

Por que os evangélicos fundamentalistas usam Jesus para justificar a brutalidade militar

Publicado em 22/10/2020 12:00 -

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Vez por outra, meu velho chamava o moleque aqui para ir ao trabalho dele. Era representante de autopeças, negócio chato, mas que permitia andar de carro pela Grande São Paulo inteira. Em um dia como qualquer outro, na oficina de um cliente seu, fomos apresentados a uma figura excêntrica e exuberante. Era um homem baixinho, robusto, careca – na época, idos de 1988, me fazia pensar no Mestre dos Magos, da Caverna do Dragão. Mestre e mago, de certa forma, ele era.

Usando dos equipamentos da oficina, ele recarregava munição, preenchia cartuchos com pólvora, fixando as balas em cima. Erguendo uma de suas criações, me disse: “Isto é uma bala dum-dum. Ela é oca. Quando acerta, se divide em pedacinhos”, fazendo um gesto de guarda-chuva com mão. “Ninguém sobrevive. Já uma bala de fuzil bate e faz uma curva”, mostrou, inclinando o dedo para cima. “Se acertar na perna, tem que amputar”.

O homem fabricava munição, dessa forma precária, para seu negócio: um estande de tiro, que ficava atrás de sua casa. Mas o estande não era seu único negócio, nem o principal. Ele era um pastor pentecostal. Dizia ter sido capelão do Exército, vindo da Assembleia de Deus, mas agora estava lançando sua carreira solo, criando sua própria denominação, que ficava literalmente na garagem de casa.

Ele convidou meu pai a dar uns tiros e dar uma passada num culto. Fez os dois.

Sua igreja se chamava Exército Celestial. Usava uma batina, diferente de qualquer pastor que vi antes ou depois, mas adiantando a tendência da Igreja Universal em copiar símbolos católicos. Certamente ajudou a cravar a figura dele em minha memória como o Mestre dos Magos. E seria nessa igreja que me tornaria menino-pastor.

Costumava achar essa história apenas engraçada. O pastor Mestre dos Magos era um personagem de comédia policial, um maluco “durão” com fantasias violentas que não chegava a realizá-las – ou não na tela –, como o Tuckleberry de Loucademia de Polícia ou, hoje, Rosa e Pimento, de Brooklyn 99. Cheguei a ver ele atirando, quando um culto foi interrompido por assaltantes (vi, não; ouvi, porque me esconderam atrás dos bancos). Não acertou uma, os assaltantes correram, ninguém saiu ferido.

Pessoas distantes do pensamento fundamentalista costumam estranhar essa forma tão aparentemente violenta de cristianismo. Como pode o mesmo Jesus, que inaugurou a era do Deus do amor e do perdão, superando o Deus implacável do Velho Testamento, servir para justificar militarismo, armamentismo, brutalidade militar e policial, milícia?

Mas o “general Jesus” não é nem de longe uma excrescência ou invenção recente. É uma interpretação da Bíblia com raízes históricas profundas, que não está limitada a fundamentalistas evangélicos. Seu nome é milenarismo.

Comecemos pelo começo. Ou, melhor, o fim. O último livro da Bíblia. O Apocalipse. Uma igreja é milenarista quando acredita que a profecia do reino de mil anos do messias no Apocalipse é literal. Isto é, que vai haver, fisicamente, a batalha do Armagedom, na qual Jesus e seus exércitos vencerão as forças militares do Anticristo. Não em uma batalha etérea e incorpórea, mas física, entre pessoas, com tanques, drones, caças. Após o Armagedom, Jesus reinará por mil anos como líder planetário. Após esse período, o Milênio, chega o Juízo Final. Essa não é a visão do catolicismo nem das denominações protestantes históricas europeias, que ensinam que o milênio é alegórico – são amilenaristas.

“A dimensão de um apocalipse está em movimentos messiânicos e milenaristas [como os fundamentalistas evangélicos]”, afirma Jacqueline Moraes Teixeira, doutora em antropologia social e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a USP, ela própria ex-evangélica. “O Messias que aparece nessas histórias não é o Messias conciliador dos Evangelhos, mas é o Messias que volta para constituir seu Exército para vencer a batalha que marca o fim dos tempos e a instauração de um novo mundo”, explica.

Veja então que o milenarista tem dois “Jesuses”: o do passado, o “hippie” da Judeia que todo mundo reconhece, e o do futuro, que está mais para Rambo. A belicosidade é resultado do foco que dão ao Jesus do futuro.

Para quem acredita que Jesus voltará para matar pessoas, passagens bíblicas brutais, que outros cristãos consideram ultrapassadas, ganham nova relevância e se tornam parte central da mensagem. Um hino bastante tradicional diz o seguinte:

Vem com Josué lutar em Jericó
Jericó, Jericó
Vem com Josué lutar em Jericó
E as muralhas ruirão

Suba os montes devagar
Que o senhor vai guerrear
Cerquem os muros para mim
Pois, Jericó chegou ao fim

O tema no caso é a (não comprovada historicamente) conquista de Canaã pelos hebreus. No Velho Testamento, Josué é o sucessor de Moisés como líder do povo escolhido. Mas diferentemente de Moisés, é um líder militar. Um general. O Livro de Josué narra a conquista de Canaã, território atual de Israel e Cisjordânia, mais partes da Jordânia, Síria e Líbano.

O Livro de Josué é basicamente a narrativa de um genocídio. Um por um, os povos cananeus são escravizados ou exterminados até a última criança. Às vezes, o próprio Deus dá uma mão, fazendo cair os muros da citada Jericó, fazendo chover pedras do Céu, fazendo o Sol e a Lua pararem no céu. Mas a maior parte do trabalho é mesmo pelas espadas e tochas dos hebreus.

“Velho Testamento”, dirão cristãos moderados. A era de um Deus furioso, antes de mandar a si próprio para ser sacrificado para perdoar nossos pecados. Os fundamentalistas acreditam na mesma coisa, que a vinda de Jesus tornou obsoleto o Velho Testamento. A diferença é que, para eles, o futuro será como o passado.

O antropólogo (e ex-pastor, hoje ateu) Vinícius Esperança, professor da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, lembra que o militarismo não está só na letra, mas no estilo. “É importante nessas igrejas a ideia de marchar com Cristo.”

É uma das muitas heranças de um movimento nascido nos Estados Unidos. Sua tradição musical é importada. Seu ritmo é o de marcha militar, um estilo pensado para unir a tropa. Marcha, não marchinha: assim como os fundamentalistas rejeitam Carnaval como um festim diabólico, e música brasileira tradicional por ser africanizada, ligada às religiões afro-brasileiras, vistas como coisa do Diabo.

O evangelismo fundamentalista é um movimento que nasce militarizado por conta do contexto em que nasceu: os EUA pós-Guerra Civil (1861-1865) e da expansão para o Oeste (1832-1912). Como afirma Jacqueline Teixeira: “Essa retórica teológica [fundamentalista] está relacionada à Guerra de Secessão. O imaginário que essa guerra vai produzir é recuperado pelo movimento missionário pentecostal”.

Há uma imensidão de fatores em como uma guerra civil massiva mexe com o imaginário de uma nação. Entre tantas coisas, a guerra enaltece a figura do militar, criando seus heróis e uma multidão de veteranos. E gera memórias violentas. É um caldo cultural onde o pensamento apocalíptico milenarista floresce.

E a outra parte desse caldo é o Velho Oeste. Uma situação na qual colonos civis cristãos enfrentavam, com violência, os indígenas pagãos e contavam com apoio dos militares. Os cristãos americanos tomando território indígena – numa missão sagrada de cumprir o Destino Manifesto do país – facilmente se reconheciam na figura de Josué conquistando Canaã, eliminando inimigos por ordem divina. “Isso estabelece o imaginário de um cristianismo que se pensa por violência e disputa territorial e política”, afirma a antropóloga.

E ela nota uma ponte importante: o catolicismo brasileiro tem uma história parecida. É também um cristianismo colonizador. Antes mesmo da colonização, os portugueses haviam se firmado tomando territórios islâmicos, na Reconquista Ibérica (711-1492). As Forças Armadas brasileiras se fundam nesse catolicismo colonial, reimaginando os símbolos de um Império oficialmente católico numa República supostamente secular, criada num golpe militar em 1889. “Dom Pedro I, em quadros republicanos, aparece não paramentado como um rei, mas como um militar”, lembra a Jacqueline Teixeira.

Assim já há um campo preparado para a aceitação de um protestantismo militarizado num país com um pensamento militar católico. E pouca coisa pode ser mais impactante em explicar essa aliança entre crentes fundamentalistas e militares – em sua maioria católicos, principalmente no comando – do que as histórias coletadas pelo antropólogo Vinícius Esperança em seu trabalho no Rio de Janeiro, que ele considera o tubo de ensaio do fundamentalismo evangélico que passou ao resto do país.

Esperança estudou as comunidades evangélicas nas favelas e em outras partes da cidade. “O Rio foi um experimento para o Brasil”, afirma. “Por dez anos, foi capital internacional em megaeventos [como megacultos]. O aumento das operações de GLO [Garantia da Lei e da Ordem], infelizmente nos governos de Lula e Dilma, as UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora], a Ocupação da Favela da Maré, isso tudo aconteceu com um apoio muito próximo das redes evangélicas, especialmente pentecostais locais.”

Segundo o pesquisador, essas operações simplesmente excluíram todas as ONGs e todas as lideranças de igrejas afro-brasileiras: “Diziam: isso não pode, tem que ser cristão. Precisava de uma identificação ideológica, e eles detestavam as ONGs, que eram todas esquerdistas. Porque pastores e generais têm um projeto de cidadania em comum”.

No meio policial e militar, as metáforas bélicas dos fundamentalistas assumem uma forma bem literal. “Não passa pela cabeça do policial crente essa questão de laicidade; isso é coisa de intelectual”, diz Esperança. “Eles entendem ‘a gente está aqui porque Deus abriu essa porta para a gente’. Teve uma reunião entre pastores e militares que terminou com brados de ‘O Complexo [da Maré] para Jesus!’”. Um exemplo transparente do domínio territorial do cristianismo colonialista aludido por Jacqueline Teixeira.

E não, não são policiais que chegam perguntando se você já ouviu falar de Nosso Senhor Jesus Cristo, como testemunhas de Jeová no domingo de manhã. “Tem um grupo aqui no Rio chamado Tropa de Louvor”, lembra. “São policiais do Bope que fazem shows em igrejas, em espaços públicos. Eles vão de preto, todos de preto, e cantam músicas de batalha. Eles se veem como agentes divinos mesmo. Então, quando chega na favela atirando, matando, isso é plenamente justificado. É uma guerra santa mesmo. Deus colocou essa missão de limpeza da sociedade para ele. Quando ele mata o bandido, está matando satanás.”

“O cara mata e dorme com a consciência tranquila, vai pra igreja, não tem nenhuma análise”, afirma o antropólogo. E, para não dizer que não falamos em flores, nota: “Tem igreja no Rio, na Barra da Tijuca, um bairro novo, rico, que é igreja dos milicianos, notória por ter milicianos. Inclusive frequentada por sobrenomes Bolsonaro”.

Não é preciso muito esforço para ver como a simpatia pelo militarismo se estende à ditadura militar e justifica suas atrocidades. “O ideário militar defende que é preciso passar por um processo de crise para se obter a vitória”, afirma a antropóloga Jacqueline Teixeira. Guerra leva à paz. Guerra leva à liberdade. Guerra é um mal necessário para combater um mal maior. Foi assim na ditadura militar, o período “de crise” para “salvar a democracia”, como se prega nos quartéis. “É um imaginário que se estabelece sem fazer oposição entre militarismo e regime democrático. Então, as pessoas não sentem que estão com seus direitos civis em risco quando veem, por exemplo, uma gestão com 12 ministros militares entre 22.”

Como os militares, os fundamentalistas enxergam no projeto bolsonarista a mais pura democracia, bem melhor que a democracia corrupta da “esquerda” católica ou ateia. E essa é uma missão sagrada. A brutalidade policial ou militar se torna uma cruzada. E que Deus separe os mortos maus dos bons.

Essa quase literal bomba deixo no seu colo, cristão progressista: não será o ateu iconoclasta aqui a convencer fundamentalistas que não existe essa guerra. É preciso outro cristão para isso.

Você está pronto para essa batalha?


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