18/04/2024 - Edição 540

Artigo da Semana

Fundamentalismo às avessas em tempos eleitorais

Publicado em 13/10/2020 12:00 -

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Nos últimos dias, quem acompanha o noticiário político ficou conhecendo Wesley Teixeira, candidato pelo PSOL a vereador de Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Sua história foi amplamente divulgada pelos grandes jornais do país depois que uma revista publicou matéria afirmando que ele recebeu R$ 30 mil de doação, para campanha, do economista, investidor e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga. Criada a polêmica – como um candidato do PSOL, identificado com o socialismo, pode receber doação de campanha de alguém do mercado financeiro? –, Wesley Teixeira chegou a ver sua candidatura em risco, já que algumas lideranças do partido levantaram a possibilidade de ela ser impugnada se ele não devolvesse a doação.

Outros líderes do PSOL se ergueram em defesa da candidatura do jovem negro, evangélico, morador do Morro do Sapo, com um histórico de comprometimento social que lhe dá credibilidade e reconhecimento. 

 A controvérsia ganhou o noticiário e Wesley Teixeira não só se tornou mais visível diante da enxurrada de candidatos a vereador espalhados pelo Brasil, como conquistou apoios no movimento negro e entre personalidades políticas e intelectuais, publicados em mídias sociais e em artigos de jornais. Pedro Abramovay, diretor da Open Society Foundations para a América Latina, informou em seu perfil em mídia social, que a doação foi resultado de encontro virtual que ele organizou com pessoas “do topo da pirâmide do Brasil”, que estão preocupadas com o avanço do autoritarismo e do racismo no País. 

Wesley Teixeira é parte do segmento evangélico progressista, que tem se colocado em evidência nos últimos anos por meio de movimentos como a Frente Evangélica pelo Estado de Direito, o Movimento Negro Evangélico, os quais ele integra, entre outros. Este realce se dá como reação ao forte avanço das lideranças e grupos evangélicos fundamentalistas, ultraconservadores religiosos embasados em uma leitura restritiva da religião, com ênfase no moralismo sexual e na manutenção do status quo, base da Bancada Evangélica no Congresso Nacional e do governo de Jair Bolsonaro. 

O segmento evangélico progressista é uma parcela minoritária, mas representativa deste grupo religioso, espalhada pelo Brasil há décadas e que atua na defesa e na promoção de direitos humanos, ambientais e sexuais. São invisibilizados por conta dos valores mais conservadores que prevalecem nos ambientes religiosos, mas também por conta da ignorância sobre as religiões que predominam nas mídias e entre grupos envolvidos com política.

Esta ignorância se fez explícita nesses dias em que o caso do candidato de Duque de Caixas foi debatido nas mídias sociais. Um exemplo: no auge da polêmica no interior do PSOL, o deputado federal do partido pelo Rio de Janeiro, Marcelo Freixo, publicou em seu perfil no Instagram um card com a foto de Wesley Teixeira e os dizeres: “Meu candidato em Duque de Caxias é Wesley Teixeira. Conheço ele desde menino. É jovem, negro, evangélico e educador. Qualquer tentativa de prejudicar sua candidatura é absurda e inaceitável”. 

Nos 362 comentários da postagem, em cinco dias, até o fechamento da redação deste artigo, grandíssima parte do conteúdo foi crítica a Marcelo Freixo, não pela controvérsia da doação, mas pelo fato de Wesley Teixeira ser evangélico. Reproduzo a seguir algumas das expressões exaustivamente repetidas pelos comentaristas

 “Evangélico e educador não são antônimos!?

Basta: é jovem, negro e educador. Evangélico não é qualidade boa no meio de tantos maus exemplos dentro da política

Adoro o Freixo, mas num estado laico isso não deve ser uma variável na equação

o cara que processe sua religião em casa ou nos seus templos, não na política

Evangélicos não fazem auto-crítica. A religião deles promove todo tipo de ódio e intolerância a minorias, e não podemos criticá-los pois, se fizermos, estamos ‘generalizando’ e ‘sendo preconceituosos”. Ah, tenha dó!

Mais (sic) evangélico é de direita!

depois de séculos de esforço, conseguimos trazer a maioria dos católicos para o mundo civilizado. Com os evangélicos tem que ocorrer a mesma coisa

Perdeu muitos pontos por ser evangélico. Estado Laico Freixo. Lembre se disso

a comunidade evangélica é podre. Quem é desse meio e se recusa a fazer uma análise crítica, é oportunista

acredito que se os evangélicos querem entrar para esquerda, eles precisam mudar. Precisam entrar para o mundo civilizado, como os católicos vêm fazendo

Fariseus adoradores do dinheiro alheio

Evangélico e de esquerda? Tem algo errado aí!

Parei de ler em evangélico. Política e religião não combinam

O grande problema dele é ser evangélico

Freixo o está apoiando acredito que seja uma boa pessoa mas seria melhor pra ele tirar essa descrição de evangélico afinal ele deve ter muitas outra qualidade melhores que essa

sem dúvida ele tem, ser evangélico é a última ‘qualidade’ dele

Não entendo, um estado laico infestado de evangélicos, adoradores da bíblia

Que pena que é evangélico!!!! Se fosse livre seria melhor!!!!!

Na semana passada escrevi sobre a ignorância em relação ao que significa o Estado laico. Não é Estado ateu. Portanto, uma pessoa ou um grupo religioso reivindicarem participação no espaço público é legítimo e deve ser garantido por um Estado laico. Ademais, o Brasil é um Estado democrático e, em uma democracia, é saudável que todos os grupos tenham lugar na defesa de temas de interesse comum. 

Também escrevi que o que ameaça o Estado laico, e deve ser questionado e enfrentado, é que um grupo religioso imponha sua teologia e ética religiosa como regra para todos, crentes (com toda pluralidade que vivenciam) e não-crentes. Neste caso é a laicidade do Estado e a democracia que são colocados em risco.  E isso vale não apenas para evangélicos (hoje em maior evidência), mas também para católicos, historicamente influentes no poder político, e para qualquer outro grupo religioso. 

Tenho escrito, ainda neste espaço, de como a ignorância sobre a pluralidade dos evangélicos no Brasil, que os coloca como um grupo homogêneo, só serve para reforçar as lideranças fundamentalistas que se alinham ao poder vigente. Quem vê os evangélicos dessa forma ignorante e intolerante, que se apresenta nos comentários da referida postagem, reforça justamente os fundamentalistas que critica, e nega a contribuição que os muitos Wesleys Teixeiras têm a oferecer no espaço público, inspirados por sua forma de cultivar a fé. Esse reforço da ignorância e do preconceito acaba por sustentar o poder autoritário e violento que o País experimenta. 

Temos aí um fundamentalismo às avessas: gente que se revela intolerante e ignorante em relação ao cultivo da fé alheia. Com base em uma leitura equivocada da fé cristã, busca impedir que o espaço público seja ocupado por quem não preenche o perfil pré-estabelecido por seus fundamentos políticos limitantes, que negam a pluralidade. 

Ou os quadros políticos que buscam a transformação da ordem autoritária e violenta em curso encontram formas de superar essa postura, ou a face dos fundamentalismos, em pleno avanço na política, imporá marcas profundas e duradouras. 

Magali Cunha – Jornalista e doutora em Ciências da Comunicação. É colaboradora do Conselho Mundial de Igrejas


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