Coluna
Os encantamentos da live da diva tropicalista
Postado em 07 de Outubro de 2020 - Régis Moreira
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“Solidão
De manhã
Poeira tomando assento
Rajada de vento
Som de assombração
Coração
Sangrando toda palavra sã”
Foi preciso a live da cantora. Fez-se necessário um ao vivo da diva de minha juventude, para mais uma vez perceber, o belo jovem senhor de meia idade que se delineia em mim. Ela que foi diva de minhas descobertas na música popular brasileira. Estamos tão próximos do dia em que se comemora o Dia das Crianças e me vejo aqui falando de velhices. Sim, mas também dia primeiro de outubro foi o Dia do Idoso. E como é moderno envelhecer! Antes morria-se tão cedo... Ser velho está na moda!
“Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para no entanto ele nunca envelhece”
Semana passada, um dia depois de Gracinha, Sônia, a irmã com que fui presenteado nesta existência, fez 60 anos. Fizemos festa para comemorar a data, mesmo confinados, sem aglomerar, foi preciso marcar essa passagem, essa entrada nesse marco cronológico, que significa o que mesmo??? Significa estar vivo, antes de mais nada, afora as marcas e encaixotamentos que tentam colocar sobre os corpos que envelhecem! Falta 7 para os meus 60. Como o tempo vai desenhando nossa vida lindamente. Eu gosto de comemorar os anos! Sinal que vivi. Quero comemorar quantos mais eu possa e mereça, pois considero viver é um merecimento, uma dádiva!
“Você precisa aprender inglês
Precisa aprender o que eu sei
E o que eu não sei mais
E o que eu não sei mais”
Realizamos aqui em Londrina, na universidade estadual, a UEL, um programa de rádio protagonizado por pessoas com 60 mais, que é veiculado pela rádio da universidade. O programa leva o nome de Tecer Idades. Estamos em plena gravação de um especial sobre o tema “Envelhecimento HIV/AIDS”. Quando imaginaríamos ser possível tratar sobre esse tema há alguns anos atrás? Estamos gravando os programas com um tom celebrativo, com todas as críticas e ponderações necessárias, mas com otimismo ímpar!
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”
Reafirmo: envelhecer é moderno e está na moda! Mas não é a moda da cacura, não. Na live, o que vi foi o desfile da diva tropicalista aos vivos, comemorando seus 75, com a elegância de sempre, mas com uma maturidade que a atravessa.
“Onde o que eu sou se afoga
Meu fumo e minha ioga
Você é minha droga
Paixão e carnaval
Meu zen, meu bem, meu mal”
Talvez ela não alcance mais as notas agudas, como outrora, mas quem delas precisa, tendo a suavidade da voz perfeita que cabe em minha vida! Seu figurino também não é o mais ousado, sem grandes brilhos ou peitos de fora. Escolheu calça preta e uma blusa reta, bonita, porém sem cores fortes ou lantejoulas. Nos pés, um salto, discreto, quadrado, compõe com os cabelos bem cortados e sem os volumes que a caracterizou vida afora, mas com volume, na descrição da diva senhora, na elegância da maquiagem tão natural, que nem parecia tê-la.
“Sim!
Eu estou tão cansado, mas pra não dizer
Que eu não acredito mais em você
Com minhas calças vermelhas
Meu casaco de general cheio de anéis
Eu vou descendo por todas as ruas
Eu vou tomar aquele velho navio”
O sincerômetro da diva estava ligado, deixando vazar o que pensa, sem perder a compostura, nem se entregar na luta: resistente! Outras tais, que nem ouso dizer o nome, viraram casaca, ou sempre vestiram uma roupagem elitista e agora saíram do armário. Mas a tropicalista continua de pé e selvagem! Falou das queimadas, da importância do cuidar-se na pandemia, denunciou irresponsabilidades dos governantes, comparou a natureza a Deus, indo do Pantanal à trepadeira que floriu em seu jardim. Delicadezas combativas!
“Reza, reza o rio
Córrego pro rio e o rio pro mar
Reza a correnteza, roça a beira, doura a areia
Marcha o homem sobre o chão
Leva no coração uma ferida acesa
Dono do sim e do não
Diante da visão da infinita beleza
Finda por ferir com a mão essa delicadeza
A coisa mais querida, a glória da vida”
A live da cantora me colocou tão seu e me fez lembrar de minha trajetória. Suas canções compuseram a trilha de tantas passagens, que me sinto íntimo – acho que íntimo não é a melhor palavra quando se fala de uma diva – mas me senti tão seu, tão súdito daquela voz que fez meu coração pulsar mais forte por tantas vezes e ali, me deixou extasiado diante da TV, nessa quarentena que se arrasta indefinidamente sem rumo.
“Guarde um pedaço de mim
Um cheiro no lado da cama
Seu gosto na ponta do queixo
Meu sangue escorrendo no seu peito
Vejo no tato sua pele
Tatuo com o dedo seu gosto
Não sigo mapas, desejo
Segredo e contato
Quero o brilho cortante
Desses cacos de vidro
Palavras no corpo
Respostas ao vento”
O encantamento diante da tela também é devido aos olhares escolhidos para a transmissão. Toda equipe de filmagem era formada por mulheres, e esse olhar feminino sempre me interessou deveras e me encanta, a colocar-me a desfrutar de olhares tão apurados. Esses olhares de mulheres sobre a mulher, potencializaram “minha porção mulher (...) que é a porção melhor que trago em mim agora, é que me faz viver”, como Gil poetizou lindamente em Super Homem (a canção).
“Molha tua boca na minha boca
A tua boca é meu doce, é meu sal
Mas quem sou eu nessa vida tão louca
Mais um palhaço no teu carnaval”
Vários amigos queridos enviaram depoimento a ela, todos lindos, mas o Tom Zé me derrubou mais uma vez. Disse ele: “Gal Costa sempre me trata com choques elétricos... Eu chego pra ver ela e não vejo ela e me arrebato por ela e me arrebento por ela e me desarrumo por ela”.
E a diva me desarrumou, ou me colocou no lugar onde sempre desejo estar, na contemplação do sagrado, que emana de sua voz, mesmo que não tenha consciência disso, mas o sagrado e o re-ligare não passa pela consciência, são outros sentidos acionados e a bruxa ali posta no caldeirão dos encantamentos, me enfeitiçou tão lindamente. A sedução da mulher madura, que envelhece e sabe do poder que tem!
“E eu te farei as vontades
Direi meias verdades sempre à meia luz
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis
Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte, te afasta de mim
Pois já não vales nada, és página virada
Descartada do meu folhetim”
Foi como se o tempo tivesse parado para lhe ouvir. Dei aquela pausa necessária para sobreviver na travessia desse período tão difícil, tão dolorido, tão fascista. Naquele momento, sua voz produziu em mim emoções das mais lindas, discretas e avassaladoras. Precisamos celebrar a vida, mesmo diante dos destroços: Gal fez 75!
“Ninguém diz eu te amo como eu”.
Régis Moreira – Jornalista e Gerontólogo, docente da Universidade Estadual de Londrina (UEL)