25/04/2024 - Edição 540

Brasil

Violência política cresce no país

Publicado em 01/10/2020 12:00 -

Clique aqui e contribua para um jornalismo livre e financiado pelos seus próprios leitores.

O Brasil tem ao menos um atentado à vida de políticos, candidatos e pré-candidatos a cargos eletivos a cada 13 dias, aponta o relatório Violência Política e Eleitoral no Brasil – Panorama das violações de direitos humanos de 2016 a 2020, realizado pelas organizações Terra de Direitos e Justiça Global e apresentado no último9 dia 28.

O levantamento, realizado a partir de notícias de meios de comunicação, registrou ao menos 125 casos de assassinatos e atentados contra políticos entre 1° de janeiro de 2016 e 1° de setembro de 2020. Ao todo, foram registrados no período 327 casos de violência política, incluindo 85 ameaças, 33 agressões, 59 ofensas, 21 invasões e 4 casos de prisão ou tentativa de detenção de agentes políticos.

Segundo o documento, que foi entregue ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, os casos de violência contra políticos e candidatos vêm crescendo nos últimos anos, registrando um acirramento desde as eleições de 2018.

Em 2017, foram mapeados 19 assassinatos e atentados. Ainda que tenha sofrido uma pequena queda em 2018 (17 registros), o número de ataques saltou para 32 em 2019, e 2020 já contabiliza 27 casos até o início de setembro.

O Rio de Janeiro foi o estado que registrou o maior número de assassinatos e atentados: 18 no total. Minas Gerais, Ceará, Maranhão e Pará dividem o 2º lugar no ranking, com 11 casos em cada estado. 

O relatório chama atenção para dois casos simbólicos de violência política e eleitoral ocorridos recentemente: a execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL), em março de 2018, e o atentado a faca ao então candidato e atual presidente Jair Bolsonaro, em setembro do mesmo ano, durante a campanha eleitoral. 

"Os casos aqui apresentados não se resumem a ataques de ordem pessoal, trata-se de fenômenos que afetam a integridade da democracia, comprometem o exercício regular de direitos políticos e atacam esferas coletivas e difusas de participação", diz o texto.

O maior aumento de casos de violência se deu após as eleições de 2018, período que coincide com a ascensão de políticos de extrema-direita em cargos de poder no país.

Para Élida Lauris, coordenadora de pesquisa da Terra de Direitos, a pesquisa traz dados reveladores para entender o cenário de violência que se têm vivido no Brasil nos últimos anos. "Por exemplo, nos últimos quatro anos e meio, a cada cinco dias, a sociedade brasileira conviveu com pelo menos um episódio de violência política como parte do seu cotidiano. Alguns dados são muito alarmantes, como o número de assassinatos e atentados e o agravamento das ofensas e das agressões em 2019", destaca.

“A gente está caracterizando como violência política, é a violência que coloca em risco e compromete a integridade da democracia, porque ela substitui os meios democráticos, o diálogo a interação, o respeito pelas pessoas como iguais, pela linguagem da violência, pelo uso da violência”, afirma Élida.

Para a pesquisadora, o fato ocorre devido a uma mudança de configuração da força política, em que representantes de grupos historicamente discriminados passaram a ocupar cargos de deputados federais e estaduais, ao mesmo tempo em que forças políticas com perfis ideológicos mais autoritários também.

“Tudo isso faz com que o fenômeno da ofensa dispare em 2019, como uma tática constante de intimidação a grupos específicos que estão ocupando lugares de representação política”, afirma.

Misogenia, homofobia e Impunidade

Conforme o estudo, em 63% dos ataques contra a vida os suspeitos não foram identificados; já em registros de agressão, 43% dos responsáveis também não foram identificados. Os dados permitem concluir, de acordo com as ONGs, haver no Brasil um contexto de alta impunidade e baixa responsabilização dos crimes.

A pesquisa sublinha que a intensidade da violência na disputa política é bem maior na esfera municipal. Nos casos mapeados, cerca de 91% das vítimas de atentados e assassinatos são do âmbito municipal: vereadores, prefeitos ou vice-prefeitos (pré-candidatos, candidatos ou eleitos). Os 11 casos restantes (9%) envolveram candidatos a deputado estadual e a governador, deputados federais, estaduais e senadores.

Os homens são as maiores vítimas de assassinatos e agressões. No entanto, as políticas e candidatas mulheres foram vítimas de 76% dos casos registrados de ofensas.

Ofensas, sobretudo, com forte conteúdo racista e homofóbico foram os atos que mais cresceram durante o período. Dos 59 casos mapeados, 76% das vítimas eram mulheres e 24%, eram homens.

Uma das vítimas do crescimento da violência com fins políticos foi Fabrízia Tonico (Podemos/MS). Vereadora da cidade de Bela Vista, no Mato Grosso do Sul, ela foi atacada e arrastada pelos cabelos depois de fazer uma vistoria em um bairro, a pedido dos próprios moradores, por um outro agente político: o secretário de Obras do município.

“Foi uma violência que eu nunca pensei que eu fosse passar na minha vida, me dilacerou. Eu fiquei uns dois dias sem dormir. Um pavor. Foi uma afronta, uma violência psíquica, emocional, terrível”, relata.

A parlamentar registrou um boletim de ocorrência e conseguiu uma medida protetiva, que garante a distância de 100 metros do agressor. Porém na maioria dos casos de violência, a impunidade é o resultado mais comum. 

Para a pesquisadora Élida Láuris, é necessário que os órgãos responsáveis sejam atuantes para coibir esse tipo de prática, especialmente em períodos eleitorais, como o que agora se aproxima.

“Para essas pessoas, agentes políticos divergentes, não hegemônicos, mulheres sobretudo, pessoas LGBT, viver a política é insuportável. E aqui tem um espaço para a gente discutir o papel dos partidos, das assembleias legislativas, do Congresso Nacional. O que essas autoridades têm feito para criar ambientes livres de assédio para grupos disseminados poderem exercer a política? Eu acho que isso a gente tem que cobrar”, conflui a pesquisadora.

Ideologia miliciana

Milícia é uma palavra conhecida no Rio de Janeiro há muito tempo, mas se popularizou no país após a morte da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, em 2018. No Brasil, a maioria sabe ao menos um nome de miliciano de cor.

Os milicianos são e representam hoje muito mais do que o cara que puxa o gatilho. A “ideologia miliciana” disseminou no Brasil a ideia de que paz e segurança vêm por meio da bala.

José Cláudio Alves, que pesquisa milícias no Rio há mais de duas décadas, disse que o conceito de milícia é insuficiente para abarcar tudo o que elas representam. Para ele, as milícias “são grupos de extermínio que estão hoje vivendo uma fase denominada miliciana, a partir da expansão dos seus negócios”. O assassinato por aluguel ou encomenda é o mais conhecido deles, mas há ainda o controle territorial conquistado a partir desses homicídios, a prestação de segurança para o comércio e, mais recentemente, o fato de eles se elegerem – e terem formado muitas, mas muitas alianças com quem tem um mandato pela frente.

O exemplo mais popular dessas amizades “despretensiosas” são os elos da família Bolsonaro com o Escritório do Crime, nome dado a milícia suspeita da morte de Marielle. Milicianos foram empregados pelos Bolsonaro, homenageados por eles, emprestaram dinheiro à primeira-dama, pescaram juntos. Mas não tem nada a ver com a família, tá okey?

Outro pesquisador, André Rodrigues acredita haver o que ele chama de “ideologia miliciana“, uma espécie de “crença de que o uso ilegal da força e do poder de matar é o principal instrumento de produção da ordem e da segurança”. E alerta: essa será a “eleição mais miliciana da história”.

A “ideologia miliciana” não só estimula como fundamenta atentados contra políticos e autoridades locais. “Os grupos ‘vendem’ a ideia de que o poder de matar é o principal instrumento de produção de ordem e de segurança. E usam esse poder não só para eliminar seus concorrentes e construir currais eleitorais contemporâneos, mas também para se credenciarem como políticos que militam pela ordem e pela segurança”, explicou Rodrigues.

Desde janeiro, Pablo Nunes, doutor em Ciência Política e coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, CESeC, mapeia assassinatos, agressões e atentados contra pessoas ligadas à política em todo o país, a partir de notícias que saem na imprensa. Na listagem entram aqueles que estejam cumprindo mandato, que já cumpriram ou que anunciaram concorrer ao pleito este ano.

Nunes decidiu contabilizar os casos devido ao “clima violento e agressivo na política do país desde a posse de Bolsonaro e de alguns governadores”. De acordo com ele, “esse clima poderia propiciar um aumento de respostas violentas em disputas políticas”.

Nordeste na liderança

Dos 112 políticos vítimas desses atentados, homicídios ou tentativas e agressões mapeados neste ano, 15 ocorreram em Pernambuco. Para Nunes, o que chama atenção em casos registrados em estados do Nordeste, que concentram 41 das ocorrências, é a crueldade, o uso de arma branca e “histórias longas”, que atravessam por gerações.

É o caso da morte Abson Mattos, pré-candidato a vereador na cidade de Itambé, na Zona da Mata pernambucana. Em 2016, quando disputou uma vaga na Câmara, Abson sofreu um atentado e foi baleado de raspão na cabeça. Este ano ele não teve a mesma sorte e foi o 47º político morto no país.

Abson era primo do advogado e ex-vereador Manoel Mattos, morto por um grupo de extermínio há 11 anos, em Pitimbu, na Paraíba. Eleito em 2000, Mattos, conhecido por seu trabalho contra grupos de extermínio no Nordeste, foi o vereador com a maior votação de Itambé.

A execução de Mattos foi o segundo caso a ser federalizado no país. A investigação da morte do vereador, que era também membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-PE, saiu da esfera estadual e passou para a federal – uma medida prevista desde 2004 para crimes com grave violação aos direitos humanos. O único pedido de federalização feito antes foi o caso do assassinato da missionária e defensora de direitos humanos Dorothy Stang, morta em fevereiro de 2005, no Pará.

Abson testemunhou a morte do primo. Os dois foram mortos em cidades que fazem divisa entre Paraíba e Pernambuco. Duas pessoas foram condenadas pela morte de Manoel Mattos – entre eles, o sargento reformado da PM da Paraíba Flávio Inácio Pereira. O caso de Mattos se assemelha ao da também defensora de direitos humanos Marielle Franco, morta em 2018 no Rio. O assassinato da vereadora carioca e de seu motorista, porém, segue em aberto.

Mas não é tão simples.

O major da reserva da PMERJ Luiz Alexandre, mestre em Ciências Jurídicas e Sociais, se sente incomodado com a prática de adotar termos novos “para ter repercussão”. Para ele, o “termo [ideologia miliciana] acaba caindo num vazio existencial, e a verdadeira e perigosa milícia acaba sendo colocada como mais uma das muitas realidades apontadas”. Alexandre toma por base pesquisas sobre as relações entre agentes políticos e violência que desenvolve no Laboratório de Pesquisa de Segurança Pública e Defesa do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e da Escola Superior de Guerra. Mas uma coisa é certa: mortes de políticos não são novidade. É praticamente uma tradição brasileira. O brasileiro não tem medo da morte.

A “ideologia miliciana” – ou seja lá o nome que daremos a isso em um futuro breve – não é privilégio do Rio de Janeiro e está mais fortalecida que nunca. O que assistimos acontecer de forma cristalina com a morte de Marielle não é novidade. É palanque e rende voto – há muito tempo.


Voltar


Comente sobre essa publicação...

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *