28/03/2024 - Edição 540

Ágora Digital

Tá tudo dominado

Publicado em 09/06/2021 12:00 - Redação Semana On

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Devagar, devagarinho, degrau por degrau, a tropa bolsonarista foi ocupando o Estado brasileiro, sem enfrentar resistência nem colocar tanques nas ruas. Primeiro, foi a Polícia Federal e a Abin; depois, vieram a Procuradoria-Geral da República, a AGU e a CGU, o Ministério da Saúde e as presidências da Câmara e do Senado, até chegar às Forças Armadas.

O dia D e a hora H, como diria o patético general Pazuello, para consumar esta ocupação, foi a demissão sumária do ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que até março resistia aos surtos golpistas do capitão. Para o seu lugar foi o general bolsonarista Braga Netto, junto com o general bolsonarista Luís Eduardo Ramos, que ficou tomando conta da Casa Civil. Na retaguarda, permanece o general bolsonarista Augusto Heleno, o fiel Heleninho, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. Os três generais planaltinos convenceram o capitão a demitir Azevedo e Silva para montar um "dispositivo militar" genuinamente bolsonarista, colocado a serviço do governo.

Braga Netto trocou os três comandantes militares legalistas, que entregaram os cargos, e se tornou o homem forte do governo do capitão, aquele que manda prender ou soltar, segundo as suas próprias leis. Só escapou até agora o Supremo Tribunal Federal, que logo ganhará a companhia de mais um ministro bolsonarista, desta vez "terrivelmente evangélico". Exatamente por isso, o STF se tornou o principal alvo das manifestações antidemocráticas motorizadas e das milícias digitais bolsonaristas, que continuam atuando a todo vapor, fora de qualquer controle, já em campanha para 2022.

Recapitulo nesta linha do tempo os fatos que nos levaram até aqui, para tentar entender como se abriu aos poucos o caminho para esse poder quase absoluto de Bolsonaro. A partir daí, o capitão agora pensa que pode tudo, e não dá a menor bola para a Constituição e o que os outros falam ou escrevem, pois ele criou suas próprias verdades, acreditando piamente nas mentiras que conta todos os dias.

Na coluna "Ciranda de Mentiras", na Folha, Bruno Boghossian resume com maestria a ópera, e constata que Bolsonaro bateu mais um recorde pessoal. "Em apenas 19 minutos de pregação num culto religioso, ele despejou informações falsas sobre a segurança nas eleições, os efeitos da cloroquina, a eficácia de vacinas e o número de vítimas da Covid-19. O presidente armou uma ciranda de mentiras para limpar a própria barra, escapar de punições e se reeleger". Vivêssemos em tempos normais e as instituições estivessem funcionando, só uma dessas aberrações já justificaria a abertura de um processo por crime de responsabilidade, um atentado contra a saúde pública e a democracia.

Indiferente à pandemia que continua matando mais de 2 mil brasileiros por dia, já se aproximando dos 500 mil óbitos, Bolsonaro só está preocupado com a organização de mais uma "motosseata", ou sei lá que nome tem isso, com milhares de devotos seguidores, cruzando com suas possantes as ruas de São Paulo neste sábado, só para lembrar quem manda nesta terra esquecida por Deus. Pois é, um manda e os outros obedecem.

Morrem de tiros da polícia todos os dias mulheres e crianças negras, que vão para as estatísticas fúnebres, mas estas também podem ser modificadas por algum auditor bolsonarista infiltrado no TCU, filho de um coronel bolsonarista que estudou com o presidente e arrumou uma boquinha na Petrobras, que agora também tem na presidência um general bolsonarista. Aonde eles não estão infiltrados?

No "dispositivo militar" do triunvirato Braga, Ramos e Heleninho, além dos 400 mil integrantes das Forças Armadas, devem ser incluídos os 800 mil homens das Polícias Militares e das empresas privadas de segurança, que também obedecem às ordens do capitão, sem falar nas milícias cada vez mais armadas. Quem não estiver satisfeito que vá reclamar para os bispos, mas eles também são cegamente fiéis a Bolsonaro.

Está tudo dominado na República Bolsonarista. Se, por acaso, alguém ler este texto daqui a 100 anos, com certeza não vai acreditar que o Brasil de 2021 vivia assim. Se ainda existir Brasil… Isso ainda não é nada. Dias piores ainda virão, aguardem. Vida que segue.

Por Ricardo Kotscho

GOLPE

“Neste momento, estamos também diante de um óbvio que talvez não queiramos enxergar: o de que Jair Bolsonaro chegou a um ponto sem volta na sua preparação para um golpe…

Golpe que ele vem fomentando desde o dia da posse, quando botou em dúvida o voto eletrônico que o elegera —ideia que tem ganhado surpreendentes adesões. Bolsonaro, que já chegou ao Planalto com o aplauso das milícias, dedicou-se imediatamente a armar a população —hoje, o arsenal em mãos de civis, incluindo fuzis restritos às Forças Armadas, vai a quase 2 milhões de peças. Some a isso as PMs dos estados e o baixo oficialato do Exército, que ele corrompeu com cargos, benesses e ideologia. Efetivo para dar um murro na mesa e mandar um general calar a boca Bolsonaro já tem…

Ah, sim, os generais. Deixaram-no ir longe demais. Talvez por isso, vendo-se sem margem de recuo, tenham agora de continuar com ele rumo à aventura”.

Ruy Castro, jornalista e escritor – Folha de S. Paulo, 11-06-2021.

GOLPISTAS

"O Judiciário vai ter que se acomodar nesse avançar nas prerrogativas do Executivo e Legislativo. Vai chegar uma hora em que vamos dizer [para o Judiciário] que simplesmente não vamos cumprir mais. Vocês cuidam dos seus que eu cuido do nosso, não dá mais simplesmente para cumprir as decisões porque elas não têm nenhum fundamento, nenhum sentido, nenhum senso prático".

Ricardo Barros (Progressistas-PR), líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados.

PROS BRAÇOS DO PAI

No final de uma semana em que perambulou pela conjuntura brandindo uma falsa auditoria do TCU para sustentar a tese mentirosa de que há "supernotificação" de mortes por covid, Bolsonaro promove a infecção num novo passeio de moto. Um dos organizadores do evento, o pastor Jackson Villar, promete sortear uma moto entre os participantes. Nesse cenário, a única coisa que parece fazer sentido é o nome do evento: "Acelera pra Cristo". A prioridade dos protagonistas do encontro é acelerar o encontro dos incautos com Cristo. Veja no comentário.

Por Josias de Souza

QUANTO PIOR, MELHOR

Se há limites para uma atuação pró-vírus, Jair Bolsonaro os desconhece. “Acabei de conversar com um tal de Queiroga, não sei se vocês sabem quem é. Nosso ministro da Saúde. Ele vai ultimar um parecer visando a desobrigar o uso de máscara por parte daqueles que estejam vacinados ou que já foram contaminados para tirar este símbolo… Que obviamente tem a sua utilidade, para quem está infectado”, anunciou ele ontem, durante um evento no Planalto sobre medidas para o setor do turismo. Choveram aplausos. 

Tampouco parece haver limites para a subserviência de Marcelo Queiroga, um médico, ao presidente. O ministro, que na CPI não conseguiu convencer ninguém de que tem autonomia no comando da pasta, correu mais uma vez para tentar emendar o que não tem remédio. Foi ambíguo, como tantas vezes tem sido. Na saída do ministério, declarou que para abolir as máscaras é preciso “vacinar a população brasileira”. Mas à noite, tanto no seu perfil pessoal como no do Ministério da Saúde, foi postado um vídeo em que ele afirma ter recebido de Bolsonaro uma “solicitação para fazer um estudo acerca do uso de máscaras”… Ele diz também que o presidente está muito satisfeito com o ritmo da vacinação e, a cereja do bolo, que “Bolsonaro está sempre preocupado em [fazer] pesquisas em relação à covid”.

Em entrevista à CNN, Queiroga ainda sugeriu que não há nada errado em Bolsonaro jogar no seu colo um “ultimato” (e não um “estudo”): “O presidente não me pressiona. Eu sou ministro dele e trabalhamos em absoluta sintonia. É assim que funcionam as democracias”. Quando assumiu há menos três meses, ele pediu que os brasileiros formassem uma “pátria de máscaras”.

EFEITO PRÁTICO

A obrigatoriedade do uso de máscara em locais públicos no Brasil está prevista em lei federal. Mesmo que viesse realmente a ser editado, nenhum parecer do Ministério da Saúde mudaria isso. Mas o efeito prático das propostas de Bolsonaro nunca depende do quanto elas sejam factíveis – como é de seu costume, o presidente atua na produção de ruído.

Os senadores da oposiçãorepudiaram a declaração do presidente. Infectologistas apareceram nos jornais, em choque, explicando por que a ideia é absurda. Mas a confusão está armada, num cenário em que comunicar a necessidade de manter as medidas preventivas após a vacinação já era um grande desafio.

AÍ SIM

Ontem (10), a CPI da Covid deu um passo concreto em direção ao esclarecimento da atuação do governo Bolsonaro na pandemia. Com chiadeira dos senadores da base aliada, o colegiado aprovou a quebra de sigilo telefônico e telemático de 19 pessoas. A devassa de mensagens trocadas e ligações realizadas e recebidas, dentre outros dados, atingirá um elenco variado de personagens que colaboraram oficial ou extraoficialmente para o caos sanitário brasileiro. 

No cordão daqueles que podem ser responsabilidades administrativamente estão os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), assim como ex-integrantes do Ministério da Saúde – coronel da reserva Élcio Franco – e gente que dá ordens lá até hoje, caso de Mayra Pinheiro (Gestão do Trabalho e da Educação), Hélio Angotti (Ciência, Tecnologia e Insumos), Arnaldo Medeiros (Vigilância em Saúde) e Francieli Fontana (Programa Nacional de Imunizações).

Já na lista do povo sem cargo mas com poder de influência despontam o médico Paolo Zanotto, que defendeu a criação de um “gabinete das sombras” em reunião com a participação de Jair Bolsonaro, e o bilionário Carlos Wizard que circulou por semanas nos corredores do Ministério da Saúde com tanta moral que chegou a anunciar à imprensa que mandara cancelar a compra de ventiladores pulmonares. Mais tarde, ele se uniu ao folclórico Luciano Hang para fazer lobby pela vacinação privada e, hoje, foge da CPI: os senadores não conseguem contatar o empresário convocado a depor. A situação pode ficar animada a ponte de Omar Aziz (PSD-AM) determinar uma condução coercitiva para levá-lo ao Senado, segundo o Estadão.

O médico cloroquiner Luciano Dias Azevedo, apontado pela colega Nise Yamaguchi como o autor da famosa minuta de decreto para ampliar o uso da hidroxicloroquina, não ficou de fora. Nem o bolsonarista da vez, Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, autor de outra iniciativa “paralela” num contexto político em que o adjetivo abunda. O auditor do Tribunal de Contas da União é o autor do relatório com a tese de que há supernotificação de mortes por covid-19 no Brasil.

Destacamos ainda um alvo que representa a confluência entre o gabinete paralelo e o gabinete do ódio: o assessor internacional da Presidência da República, Filipe Martins, também terá seu sigilo quebrado.

Os senadores do G7 acreditam que os requerimentos, que preveem a quebra dos sigilos de abril do ano passado até o presente momento, poderão dar acesso às provas mais robustas da investigação contra Bolsonaro. “Teve cloroquina a torto e a direito. A troco do que, ninguém sabe. E agora o presidente disse que vai recomendar ao Queiroga fazer um decreto para quem já foi vacinado ou teve covid não usar máscara. É brincadeira”, criticou Aziz.

Como era de se esperar, a votação dos requerimentos foi tumultuada. O mais atuante dos titulares governistas, Marcos Rogério (DEM-RO), afirmou que “perde o Brasil” com o que chamou de medidas extremas e indevidas. O vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), rebateu que o “Brasil perdeu 480 mil vidas”.

SEGUINDO O DINHEIRO

A CPI também começou a desfiar o novelo de quem ganhou com a atuação exaustiva de Jair Bolsonaro em prol da cloroquina. Randolfe Rodrigues apresentou ao colegiado requerimentos para a quebra de sigilos das farmacêuticas Apsen e EMS. Serão votados na semana que vem. Na quarta-feira (9), a CPI já havia aprovado a convocação do presidente da Apsen, Renato Spallicci – bolsonarista ilustre. Rodrigues quer aprovar agora a oitiva dos executivos da EMS. O CEO da empresa, Carlos Sanchez, já foi recebido por Bolsonaro para reuniões no Palácio do Planalto e participou recentemente de jantar com empresários realizado em São Paulo no qual o presidente foi ovacionado.

Esse front ficou mais agitado essa semana por conta do vazamento de um telegrama secreto do Ministério das Relações Exteriores, que trata da transcrição de um telefonema de Jair Bolsonaro para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em abril do ano passado. Na conversa, o presidente atua em favor das duas empresas para acelerar a exportação de insumos utilizados na fabricação de hidroxicloroquina por aqui.

Em tempo: ontem os senadores também aprovaram a quebra do sigilo bancário e fiscal de empresas de publicidade que viraram foco após depoimento do ex-secretário de Comunicação, Fabio Wajngarten, entre elas a PPR e a Calya/Y2.

OS PRÓXIMOS CAPÍTULOS

Mas nem só de péssimas notícias vivem os governistas na CPI: também há as ruins. Isso porque parte importante da estratégia de desviar o foco de Bolsonaro et caterva para os governadores dá sinais de que pode ir por água abaixo. Ontem, com o habeas corpus concedido pela ministra Rosa Weber debaixo do braço, o governador do Amazonas, Wilson Lima (PSC), não deu as caras na CPI.

O presidente da comissão, Omar Aziz, afirmou que vai a Advocacia do Senado vai recorrer da decisão.

Cabe a Rosa examinar a ação apresentada por 19 governadores pedindo para o STF proibir a CPI de convocá-los a depor. “O entendimento usado no caso de Wilson Lima pode servir de precedente para livrar os outros gestores estaduais da obrigação de comparecer à CPI”, escreve a DW

Na agenda da comissão, estão previstos os depoimentos dos governadores Helder Barbalho (PA), dia 29/6; Wellington Dias (PI), 30/6; Ibaneis Rocha (DF), 1/7; Mauro Carlesse (TO), 2/7; Carlos Moisés (SC), 6/7; Antônio Garcia (RR), 7/7; e Waldez Góes (AP), 8/7.

Sempre alinhado ao Planalto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, enviou ao STF ontem um parecer em que se manifesta de forma favorável à convocação de governadores pela CPI.

NÃO VAI PARAR?

Jair Bolsonaro voltou a sugerir Que o coronavírus foi fabricado de propósito em um laboratório chinês. “Eu não tenho provas, mas esse vírus nasceu de um animal ou de um laboratório? Eu tenho da minha cabeça de onde ele veio e para quê. Mas ele está aí, está entre nós”, disse, em um culto em Goiás.

Pois é. O Globo descobriu que em maio, depois de ele ter falado publicamente em “guerra química” e insinuado que a China foi o país que mais cresceu na pandemia, a Sinovac cobrou uma mudança de posicionamento do governo para garantir o envio de insumos da CoronaVac ao Instituto Butantan. A informação está em um documento sigiloso do Itamaraty enviado à CPI e obtido pelo jornal. O presidente da farmacêutica, Weidong Yan, ressaltou “a importância do apoio político para a realização das exportações, e mesmo a possibilidade de tratamento preferencial a determinados países”.

QUEM É ALEXANDRE

E não é que o servidor do Tribunal de Contas da União (TCU) Alexandre Figueiredo Costa Silva Marques, autor do estudo paralelo que questiona o número de mortes ocorridas no Brasil na pandemia, não apenas é bolsonarista como tem relações estreitas com a família presidencial? 

Ele é filho de Ricardo Silva Marques, coronel do Exército, colega de turma de Jair Bolsonaro na Academia Militar das Agulhas Negras. Em 2019, Ricardo assumiu o cargo de gerente-executivo de Inteligência e Segurança Corporativa da Petrobras. “Desde então, o coronel já se reuniu três vezes com Bolsonaro, no Palácio do Planalto. Os encontros foram realizados em 11 de junho de 2019, em 27 de dezembro de 2019 e em 29 de janeiro de 2020. Durante a pandemia do novo coronavírus, Ricardo Marques se reuniu com o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão (PRTB), e com a assessoria dele”, apurou o site Metrópoles.

Alexandre afirma que o relatório teria chegado à Bolsonaro através de seu pai. No tribunal, há suspeita de que a história seja uma forma de o auditor aliviar a própria responsabilidade.  

Além disso, Alexandre seria amigo dos filhos de Bolsonaro, que o teriam indicado para uma diretoria no BNDES. A indicação foi barrada pelo TCU. 

Mesmo assim, ou por causa disso, Bolsonaro tornou a repetir a mentira de que há supernotificação de óbitos pela doença no país. Ao participar de culto em Goiás, ele também lançou a fake news de que a vacina não tem comprovação científica e está “em estado experimental”

A propósito: há um mês, um estudo do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde da Universidade de Washington estimou em 596 mil o número real de mortes causadas pela doença por aqui. O número oficial, hoje em 479 mil, estava em 417 mil na época…

FATOS ALTERNATIVOS

Um mês depois de alegar covid-19, dando pretexto para o adiamento da ida de um Eduardo Pazuello em pleno treinamento de imprensa à CPI da Pandemia, Elcio Franco finalmente deu as caras no colegiado ontem. Em seu depoimento, o coronel da reserva que foi escolhido por um general da ativa para ocupar o segundo cargo mais importante do Ministério da Saúde na maior crise sanitária do século admitiu que o governo brasileiro retardou de propósito a mudança na legislação que permitiria a compra de vacinas da Pfizer e da Janssen ainda em 2020. E mais: segundo ele, a orientação veio do Ministério da Economia.

Para refrescar a memória: em 26 de dezembro, vazou para a imprensa uma versão da medida provisória 1026 com um dispositivo que autorizava e União a assumir responsabilidade por possíveis efeitos adversos de vacinas adquiridas contra a covid-19 – exigência das farmacêuticas. A MP foi enviada ao Congresso no dia 6 de janeiro sem esse trecho. “O Ministério da Economia não participou desse consenso. Foi ele que discordava dessa situação com relação a essas cláusulas”, disse Franco.

O coronel da reserva, que atualmente tem cargo na Casa Civil, também afirmou que o governo não respondeu 90% dos e-mails enviados pela Pfizer porque muitas mensagens eram repetidas…

Já em relação à trava explícita colocada na negociação por Jair Bolsonaro para a compra da CoronaVac (“Já mandei cancelar, o presidente sou eu”, disse o chefe do Executivo federal em outubro), Franco saiu-se com essa: “Acredito que isso [dificuldades nas negociações após declaração] foi uma questão de percepção do Dimas Covas”, disse, se referindo ao diretor do Instituto Butantan que também depôs à CPI.

Franco também falou sobre a decisão do Ministério da Saúde de aderir à cota mínima do consórcio Covax Facility. De acordo com ele, o Brasil não precisava de mais vacinas dessa fonte pois havia “outras negociações” em andamento.

O revisionismo que tem sido o script adotado pelos membros da gestão Pazuello também deu as caras ontem. Franco que exortou em pelo menos duas coletivas de imprensa os brasileiros a procuraram “tratamento precoce da covid” com medicamentos como a cloroquina mentiu à comissão: “A nossa gestão defendia o atendimento precoce”. 

Outra pérola de ontem: “Nunca tivemos uma atuação negacionista da ciência”, afirmou o general da reserva que em maio de 2020 chamou de negacionista a… OMS: “Nós temos evidências científicas sobre a efetividade e a eficácia de determinados medicamentos e aqueles que dizem que não há evidência científica são os verdadeiros negacionistas”.

Por fim, Franco afirmou que “nunca se discutiu na área técnica do ministério, entre os secretários e o ministro essa ideia de imunidade de rebanho” – segundo a qual o estímulo à livre circulação de pessoas e vírus aceleraria a retomada econômica. O relator da CPI, senador Renan Calheiros (MDB-AL), mostrou a contradição. Em 2020, o coronel disse o seguinte: “Não há eficácia também com relação a qualquer medida de isolamento e ela se presta para que nós possamos adequar a rede de atenção à saúde”. 

TRIO CLOROQUINER

A atuação dos governistas Marcos Rogério (DEM/RO), Eduardo Girão (Podemos/CE) e Luis Carlos Heinze (PP/RS) na CPI é examinada por Guilherme Mazieiro no Intercept. A trinca de senadores em primeiro mandato tem chamado atenção pelo festival de fake news usado para defender o governo no colegiado. Como moeda de troca, os parlamentares têm ganhado destaque nas redes bolsonaristas – o que pode dar tração a planos de concorrer ao governo de seus respectivos estados em 2022. 

O repórter descobriu que o “pelotão da cloroquina” usa como principal fonte um grupão de WhatsApp com gente ligada ao Médicos Pela Vida, o grupo que lançou em mais de um punhado de jornais um “manifesto” em defesa do falso tratamento precoce da covid-19 em fevereiro. Heinze admitiu à reportagem “não ter tempo” de checar a veracidade das informações que recebe e divulga ao vivo para milhões de pessoas. Já Marcos Rogério afirmou ser preciso “desapegar da lógica” para entender a defesa do governo

Além do ‘zap’, Rogério e Heinze também participam de reuniões no Planalto, onde são municiados com argumentos arquitetados nos ministérios. “O objetivo dos ensaios é causar o máximo de ruído e confusão, de forma a minimizar o impacto do que a CPI vem trazendo à tona. Isso é atingido em etapas. A primeira ocorre ao vivo, nas transmissões das sessões, em que os senadores seguem o roteiro de perguntas e intervenções combinado com o Palácio do Planalto. Em seguida, elas são editadas em pequenos vídeos ou memes destinados a viralizar nas redes sociais bolsonaristas”, descreve o repórter.

FALANDO EM MÉDICOS PELA VIDA…

No site do grupo Médicos pela Vida há uma lista de nomes de 103 profissionais de 13 estados, com foto, número do CRM e WhatsApp. O repórter Carlos Messias entrou em contato com mais de 30 desses médicos. A maior parte se recusou a dar entrevista. Ele, então, mudou de tática: “Sem me identificar como jornalista, conversei com o ginecologista Wilson Roberto Roberto Ponce. Mediante meu relato fictício de dor no corpo e 38º de febre, ele me telefonou. Mesmo sendo informado de que eu não havia sido testado, me ofereceu uma receita com ivermectina, azitromicina, vitaminas C, D e zinco; uma receita com antialérgico e antiandrogênico, citando uma suposta relação entre a mortalidade por covid-19 e a calvície, o que pôde notar pela minha foto no WhatsApp; e uma terceira receita, com hidroxicloroquina. Para retirá-las, eu só precisaria pagar R$ 250 pela consulta de cinco minutos por telefone e enviar um Uber até seu consultório em Santo André, no ABC paulista”, conta no UOL.

NO RETORNO

Marcelo Queiroga foi chamado de volta à CPI porque seu primeiro depoimento foi evasivo. No segundo, o ministro da Saúde não trouxe grandes novidades. Mas ajudou a deixar claro, pelo conjunto da obra, que sua pasta não apita nada dentro do governo federal: ele reconheceu que, pessoalmente, compreende a não-eficácia da cloroquina no tratamento da covid-19, e também garantiu que tenta explicar ao presidente sobre a necessidade de ele usar máscaras e fazer distanciamento social, mas disse não ser um “censor”, não podendo julgar a conduta de Jair Bolsonaro.

Como lembrou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), Queiroga está espremido entre um chefe anticiência e uma equipe repleta de nomes que compartilham das ideias do presidente, como Mayra Pinheiro e Hélio Angotti – e o ministro, ao mesmo tempo em que dizia se opor ao negacionismo, afirmou não ver necessidade de fazer alterações nessa equipe. Escancarando seu apego ao cargo, ele ainda topou colocar nas próprias costas a responsabilidade por dispensar a infectologista Luana Araújo, que assumiria a Secretaria Extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, pois ela não poderia contribuir para “harmonizar” as discussões sobre o tratamento precoce. A fala contraria o que Araújo disse à CPI e o que o próprio Queiroga havia sugerido em maio: que decisão havia sido do Palácio do Planalto. Apesar do que ele tenta fazer crer, é muito difícil comprar a ideia de que sua pasta tenha alguma autonomia. 

A CPI trouxe até agora algumas informações importantes, como as evidências de que o governo federal atrasou a compra de vacinas. Porém, faz falta levantar mais elementos que impliquem a possibilidade de responsabilização por atos e omissões. 
E não apenas a partir dos depoimentos: o pesquisador da USP Mario Scheffer lembra 76 requerimentos da CPI dirigidos ao Ministério da Saúde, a maior parte aprovada há mais de um mês, ainda estão sem resposta:

“Apenas quatro pedidos de informações foram integralmente atendidos pela pasta, um deles em dobradinha com senadores governistas, sobre recursos federais repassados a estados e municípios. Mais próxima do fim do que do início, tudo indica que a CPI jogou ao mar peças que poderão fazer falta no quebra-cabeça da responsabilização do governo federal, como a insuficiência de leitos, de equipamentos de proteção individual, oxigênio, respiradores, testes e outras providências negligenciadas, que exigiriam cruzamentos das oitivas com documentos ainda não remetidos à comissão”, escreve ele, em coluna do Estadão.

TENTOU E CONSEGUIU

Um estudo da USP, em parceria com a ONG Conectas Direitos Humanos, concluiu que o governo federal teve “empenho e a eficiência em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional”. A análise se baseia nos atos normativos e nas propagandas feitas pela administração federal durante a pandemia; uma versão anterior tinha sido divulgada em janeiro e foi atualizada a pedido da CPI da covid-19 com dados até 28 de maio. Segundo o documento, o governo “optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que a infecção naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos”.

E um relatório elaborado pelo Ministério das Comunicações, também a pedido da CPI, explicita que o governo preferiu divulgar suas ações na área da economia do que na saúde: “Das 2.596 postagens do Governo em seus canais oficiais, 64% (ou 1.648) se referiam à preocupação do Governo com empregos, renda e auxílio emergencial, e 36% (948) tratavam de entregas feitas na área de saúde, dos repasses de verbas obrigatórios aos Estados e Municípios, das medidas de prevenção e da compra de vacinas”, conta o El País. E mais: “até o dezembro passado, havia mais publicações sobre cloroquina e outros ineficazes medicamentos no tratamento da doença do que sobre os imunizantes. (…) Havia apenas 37 postagens tratando de negociações de vacinas ou criando narrativas de que o governo Bolsonaro não era a favor do movimento anti-vacinacinação, apesar de pouco ter se esforçado para adquirir os imunizantes. Enquanto isso, outras 85 peças defendendo o kit covid, principalmente a cloroquina, já haviam sido produzidas”.

Por Outra Saúde

DIA DE BOLSONARO

Sempre maltratado pelo espírito selvagem do colega brasileiro, o presidente da Argentina, Alberto Fernández, teve o seu dia de Bolsonaro. Em timbre preconceituoso, ecoou uma canção que diz que argentinos vieram de barcos da Europa, enquanto os mexicanos vieram dos índios e os brasileiros vieram da selva. Fez lembrar uma velha anedota segundo a qual o argentino é um italiano que pensa que é inglês. Tem sangue latino e pose de anglo-saxão. Hoje, sob crise econômica, a Argentina tem dificuldades para manter a pose.

Por Josias de Souza

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Victor Barone

Jornalista, professor, mestre em Comunicação pela UFMS.


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