29/03/2024 - Edição 540

Especial

O país do jeitinho

Publicado em 12/11/2014 12:00 -

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Em 1946 quando o médico húngaro Peter Kellemen veio morar no Brasil, procurou o consulado geral. O cônsul José de Magalhães e Albuquerque, deliberadamente resolveu colocar em seus documentos que Kellemen era agrônomo e não médico, pois sabia que “as besteiras sem importâncias” (as leis) impediriam o visto caso ele não modificasse a profissão do viajante. Foi este o primeiro registro da prática  do jeitinho brasileiro, eternizado na obra do próprio Kellemen, “Brasil para principiantes”.

De lá para cá o “jeitinho brasileiro” transformou-se em uma instituição, a ponto de as pessoas não saberem diferenciá-lo da corrupção. É o que revelou a pesquisa que deu origem ao livro “A cabeça do brasileiro”, lançado em 2007 pelo sociólogo e cientista político Alberto Carlos Almeida, onde se observa que uma grande parcela dos brasileiros não tem esta concepção diferencial. Por exemplo. “Passar uma conversa em um guarda para ele não aplicar uma multa” foi considerado corrupção para 53% dos entrevistados, embora outros 6% tenham visto neste ato um “favor” e 41% traduzido esta atitude como “jeitinho”.

Corrupção, segundo o Aurélio, significa a “Ação ou efeito de corromper, de fazer degenerar; depravação. / Ação de seduzir por dinheiro, presentes etc., levando alguém a afastar-se da retidão; suborno”. Santo Agostinho explica a etimologia: corrupção é ter um coração (cor) rompido (ruptus) e pervertido. O pessoal da ONG Transparência Internacional tem uma definição mais contemporânea: “Corrupção é o abuso do poder para benefício privado”.

Ocorre que estas definições encontram variantes dependendo de a quem o ato de corromper ou ser corrompido se refere. No Brasil, o “jeitinho” transita pela corrupção sem que as pessoas se deem conta de que é exatamente ali, nas coisas comuns do dia a dia, que é plantado o fruto da permissividade que transforma o Brasil na 72ª nação mais corrupta do planeta, segundo a Transparência Internacional.

Para o jornalista e analista político Eron Brum, o “jeitinho” brasileiro”, que era uma qualidade nossa – enfrentar as dificuldades com otimismo, rir das próprias desgraças, dar nó em pingo d’água para dar a volta por cima e não medir esforços para ajudar o próximo – se transformou em atividade ilícita, criminosa.

“Hoje o tal jeitinho é sinônimo de levar vantagem, custe o custar, doa a quem doer. As ‘pequenas corrupções’, como furar a fila do banco ou do supermercado ou tentar subornar o guarda, ganharam corpo e se transformaram em milhões, bilhões de reais assaltados dos cofres públicos por alguns governantes”, afirma Brum.

A culpa é do outro

Uma pesquisa realizada pela Semana On no Facebook e nas ruas de Campo Grande (MS) mostrou que a maioria das pessoas considera que a corrupção que se comete nos altos escalões da política é mais grave do que àquela cometida pelo cidadão. Entre os entrevistados 54,26% concordaram com esta afirmativa. Apesar disso, 89,09% dos entrevistados disseram que o ato de oferecer dinheiro a um policial para escapar de uma multa – exemplo típico das “pequenas corrupções” citadas por Brum – pode ser considerado um ato de corrupção.

Outros números que chamam a atenção são os que se referem à aceitabilidade da corrupção como prática individual. Arguidos se em algum momento de suas vidas já haviam apelado para a corrupção para resolver algum problema, 45,45% dos entrevistados disseram que sim. No entanto, quando incitados a reconhecerem a prática ilícita nos outros, este percentual aumentou significativamente: 76,36% dos entrevistados disseram conhecer pelo menos uma pessoa que já apelou para a corrupção para resolver algum problema.

Finalmente, a pesquisa pediu que se atribuísse uma nota de 1 a 5 para a corrupção como algo que prejudica a vida das pessoas. Os entrevistados deram uma nota média de 2,95 a este aspecto. No entanto, quando lhes foi pedido que atribuíssem uma nota de 1 a 5 à corrupção como algo que prejudica o País, a nota média subiu para 4,67%.

“É uma relação de conveniência e o exemplo que considero mais comum é o das eleições. O nosso interesse eleitoral acontece apenas algum tempo antes de apertar a tecla para votar. Não temos o costume de analisar a vida do candidato, até nos esquecemos em quem votamos e, para nós, todos os políticos são corruptos. Ora, se consideramos todos os políticos corruptos será que não temos a nossa parcela de culpa? E se fizermos uma espécie de operação pente fino no nosso cotidiano será que também não cometemos as nossas falhas, até para depois contar aos amigos que levamos vantagens nisto ou naquilo? Há alguns anos, no auge do famoso Mensalão, um instituto de pesquisa realizou consulta nacional sobre corrupção e o resultado foi desolador: a maioria dos brasileiros confessou que, se tivesse oportunidade, cometeria o mesmo crime”, analisa Eron Brum.

Este comportamento se refletiu em pesquisa divulgada no ano passado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), segundo a qual a percepção dos entrevistados em relação à forma de agir do brasileiro reflete o jeito com que tratamos as pessoas, mesmo as mais próximas do nosso círculo afetivo: 82% acham que a maioria age querendo tirar vantagem, enquanto só 16% dos entrevistados acham que as pessoas agem de maneira correta.

“Há certas imagens sobre o comportamento do brasileiro que permeiam as percepções das pessoas nas suas relações sociais. A ideia de que o brasileiro sempre burla normas e determinações para obter o que almeja – e essa é uma definição do ‘jeitinho’ – é recorrente. Para a grande maioria dos brasileiros, a busca de atalhos, soluções facilitadas ou vantagens fazem parte do cotidiano das pessoas”, explica Rachel Meneguello, cientista política da Universidade de Campinas (Unicamp).

Lei: mas não para mim

O Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), divulgado na última terça-feira (12) como parte da 8ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mostra que 81% dos entrevistados acreditam ser fácil desobedecer às leis brasileiras e “dar um jeitinho” para escapar das punições.

Segundo a pesquisa, a grande maioria dos brasileiros entende que a lei pode ser facilmente ignorada e que esse comportamento é generalizado. "Esses dados reforçam o senso comum de que no Brasil 'as leis ficam apenas no papel', contribuindo para a disseminação de uma 'cultura de desrespeito à lei'", diz o estudo.

O levantamento foi feito pela Fundação Getúlio Vargas com 7.176 pessoas em oito Estados. A percepção de que é possível driblar leis é mais comum entre os mais escolarizados e com renda mais elevada, segundo o levantamento. São Paulo e Rio de Janeiro são os dois Estados em que a crença de que é fácil desobedecer às leis é mais disseminada. Entre os entrevistados com baixa escolaridade, 76% acreditam ser fácil desobedecer às leis. O percentual é de 84% entre os mais escolarizados.

A percepção de que sempre é possível "dar um jeitinho" cresce de acordo com a renda do entrevistado, abrangendo 69% dos entrevistados com rendimento de até um salário mínimo; 79% com rendimento de um a quatro salários mínimos; 82% dos com rendimentos entre quatro e oito salários mínimos; e 86% dos com rendimento superior a oito salários mínimos. "Quanto mais recursos e informações uma pessoa possui, e quanto menor a vulnerabilidade econômica e social a que ela está sujeita, mais ela parece concordar com a facilidade de desrespeitar as leis no país", diz o documento.

O estudo compara o que chama de “cultura de desrespeito à lei” ao conceito usado por Mauricio Garcia-Villegas, ao interpretar a herança da colonização portuguesa e espanhola na América Latina, segundo o qual "burlar a norma não é visto ou sentido como algo moral ou socialmente reprovável".

Espelho

Para o filósofo Mario Sergio Cortella é possível olhar o jeitinho de dois modos: o jeitinho como flexibilidade e o jeitinho como infração ética. No caso da flexibilidade, é a condição de adaptação em situações que seriam impossíveis ou de improvável solução. Quando trata-se de infração ética é que a coisa pega. “É a fragilidade de princípios e, mais do que isso, a intenção de desviar de pegar atalhos, ao invés de seguir caminho que é correto, certo, socialmente admitido. Quando nós olhamos a ideia do jeitinho como infração ética, ele é extremamente negativo, porque ele enfraquece as nossas instituições, a nossa vida coletiva e mais do que isso, ele quebra as nossas pontes para um futuro mais sólido”, afirma.

Para Cortella, quando se pensa na relação entre Estado e população há uma tendência de apontar o Estado, o poder público, como o guardião da ética. “Mas é exatamente o inverso”, diz o filósofo. “A guarda da ética tem que ser feita pela população que escolhe o poder público. Isso significa que há um dado que passa pelo cinismo. Um cidadão ou cidadã que aponta o dedo em direção ao poder público, ao Governo de maneira em geral, ele mesmo produz infrações no campo da ética sem nenhum tipo de prejuízo pra convicção que ele carrega”.

É o caso de quem só respeitam o limite de velocidade se houver um radar, ou daquele que compra produto pirata argumentando que é mais prático, especialmente porque esse produto é mais barato. São pessoas que em seu cotidiano, procuram atalhos, desvios. “Por isso, a ética não é uma questão de governo, a ética é uma questão de sociedade, na qual o Governo também é parte. Aí por isso, evidentemente, a gente não pode ter um Governo marcado pelo jeitinho negativo e nem uma população com essa mesma característica”.

De acordo com o jornalista e cientista político Clóvis de Barros Filho, a sociedade brasileira está longe de alcançar um patamar de convivência saudável e respeitosa, que possibilitaria relações sociais mais éticas. “A ética é a inteligência compartilhada a serviço do aperfeiçoamento da convivência. Uma busca coletiva de uma convivência melhor”, explica.

Segundo ele, as barreiras partem das atitudes individuais, e passam pela formação familiar e escolar. “Há dez anos dentro de um lugar fechado, teria gente fumando sem problema. Hoje não tem mais. Você tem que aceitar que a convivência mudou, e que não mudou porque um deus desceu de alguma montanha e disse para mudar. Mudou porque a gente mesmo decidiu que era melhor desta forma”, afirma, acrescentando que o respeito a essa decisão também faz parte da ética. 

“O que é o famoso ‘jeitinho brasileiro’ se não quebrar o galho de alguém em detrimento do direito de todos? A sociedade brasileira é paupérrima do ponto de vista ético. Não tenha a menor dúvida”, afirma Barros. 


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