20/04/2024 - Edição 540

Entrevista

Governos são sistemas de poder tentando manter seu poder

Publicado em 07/11/2014 12:00 -

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Noam Chomsky tem sido apontado como um dos mais importantes intelectuais vivos. Linguista, filósofo, crítico social e politico, tem liderado a dissidência ideológica nos Estados Unidos desde a Guerra do Vietnam. Chomsky já publicou mais de 100 livros e milhares de artigos e ensaios, além de acumular dezenas de títulos honorários de doutorado oferecidos por algumas das mais importantes instituições acadêmicas do mundo. Seu último livro “Masters of Mankind: Essays and Lectures, 1969-2013”, foi publicado recentemente. No ano em que completa 87 anos, Chomsky permanece aguçado como sempre. Nesta entrevista ele fala sobre os o surgimento do ISIS no Oriente Médio, aborda a questão palestina, fala dos vazamentos de informações na Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos (National Security Agency – NSA), sobre o futuro da mídia, dos governos e, também, sobre a ameaça de catástrofe ambiental que ameaça o planeta.

 

O presidente Barack Obama anunciou recentemente que o país está voltando ao Iraque para lutar contra o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS). O que levou a esta situação?

O surgimento do Estado Islâmico e da difusão geral do jihadismo radical é uma consequência bastante natural da política de Washington em relação à frágil sociedade iraquiana, que foi alvo de sanções militares tão duras que respeitados diplomatas as classificaram como genocídio. Um dos mais respeitados analistas do Oriente Médio da atualidade, e ex-agente da CIA, Graham Fuller, recentemente escreveu o seguinte: “Penso que os Estados Unidos são um dos principais criadores do ISIS. Os Estados Unidos não planejeram sua criação, mas sua intervenção destrutiva no Oriente Médio e a Guerra do Iraque foram basicamente as duas causas do seu surguimento.”. E ele está certo. A situação é um desastre para os EUA, mas é um resultado natural de sua invasão. Uma das graves conseqüências da agressão dos EUA e do Reino Unido foi inflamar estes conflitos sectários que agora rasgam o Iraque em pedaços, e se espalham por toda a região, com consequências terríveis.

O ISIS representa um novo movimento jihadista, com grandes tendências à barbárie na busca por sua missão de restabelecer o que chama um Califado islâmico, e em cooptar jovens muçulmanos radicais no coração da Europa e mesmo na Austrália. Em sua opinião, por que motivo o fanatismo religioso se tornou a força condutora por detrás de tantos movimentos muçulmanos no mundo?

Como os britânicos no passado, os Estados Unidos apoiaram o radicalismo islâmico e se opuseram ao nacionalismo secular no Oriente Médio com o objetivo de cumprir suas agendas de poder na região. Quando as opções seculares foram destroçadas, o extremismo religioso ocupou este vácuo. O principal aliado dos Estados Unidos tem sido a Arábia Saudita, um dos mais radicais estados islâmicos no mundo e, também, um estado missionário, que usa seus vastos recursos de petróleo para difundir sua doutrina extremista Wahabi/Salafi por meio de escolas e mesquitas. A Arábia Saudita tem sido a principal fonte de recursos de grupos islâmicos radicais nos países do Golfo. Não é de se estranhar que este fanatismo religioso se espalhe pelo ocidente enquanto a democracia se enfraquece. Os Estados Unidos são um exemplo. Não há muitos países no mundo onde a grande maioria da população acredite que a mão de Deus guia a evolução, e onde quase metade dela acha que o mundo foi criado há alguns milhares de anos. Como o Partido Republicano se tornou tão isolado, servindo ao poder dos ricos e das empresas, não pode apelar ao público para apoiar as suas políticas atuais. Foi forçado a recorrer a estes setores como base eleitoral, dando-lhes uma influência substancial na política.

Os Estados Unidos são um exemplo de fanatismo religioso. Não há muitos países no mundo onde a grande maioria da população acredite que a mão de Deus guia a evolução, e onde quase metade dela acha que o mundo foi criado há alguns milhares de anos.

Os Estados Árabes ofereceram ajuda militar aos Estados Unidos em sua campanha contra o ISIS. O fundamentalismo islâmico tradicional esta com medo de um novo tipo de fundamentalismo islâmico?

Este suporte é suave. Os regimes temem o ISIS, mas aparentemente continuam oferecendo suporte financeiro através da Arábia Saudita e dos Emirados. Há uma ligação basal entre a ideologia destes estados e o radicalismo islâmico.

Por quanto tempo durará o cessar fogo entre o Hamas e Israel?

O último massacre em Gaza foi mais violento que os anteriores. Seu impacto sobre os palestinos foi horrendo. O que virá agora? Tem havido um padrão desde os acordos entre Israel e a Autoridade Palestina, em novembro de 2005. O que o bombardeio israelense demoliu foi a luta por uma passagem entre Gaza e o Egito em Rafah para a exportação de bens e trânsito de pessoas, pela redução dos obstáculos ao trânsito dos palestinos, pela construção de um porto em Gaza e a reabertura de seu aeroporto. Os períodos de “calma” são usados por Israel para dar sequência a sua política de tomar o que há de valor no território palestino, condenando os palestinos a viverem em guetos desconexos. Tudo isso, é claro, com o crucial apoio dos Estados Unidos: militar, econômico, diplomático e ideológico.

Revelações sobre as atividades de vigilância do governo norte-americano por meio da NSA, que vieram à tona no ano passado, causaram impacto em todo mundo. Há algo de novo nestas práticas?

Em um primeiro momento não há nada de novo. Coisas como estas têm ocorrido há muito tempo. A escala e a incrível ambição dos sistemas de vigilância e controle, no entanto, é algo novo. Mas, é o tipo de coisa que se esperaria. Se olharmos para o século passado, logo depois da invasão americana das Filipinas – uma invasão brutal que matou cerca de 200 mil pessoas – os Estados Unidos já aplicavam estas técnicas. O que fazer para controlar a população de modo a prevenir outro levante nacionalista? Há um excelente estudo sobre este tema feito por Alfred McCoy, um estudioso filipino da Universidade de Wisconsin. O que ele demonstrou foi que os Estados Unidos usaram a mais sofisticada tecnologia para desenvolver um sistema maciço de vigilância e controle para minar qualquer oposição em potencial e para impor sistemas de controle sobre a população que duraram por muito tempo e, em muitos casos, as Filipinas ainda sofrem com isso. Ele também apontou, no entanto, que estas tecnologias foram prontamente transferidas para casa.

Estamos desenvolvendo tecnologias que serão usadas pelos nossos próprios governos e por corporações comerciais com o objetivo de maximizar o acesso à informação, controle e dominação.

O senhor acha que as revelações sobre a ampliação dos programas de vigilância fizeram com que a população norte-americana se questione de forma mais crítica sobre o aparato do Estado e seu uso da tecnologia?

Governos são sistemas de poder. Eles tentam manter seu poder e dominação sobre suas populações e usarão o que for necessário e estiver disponível para isso. Neste momento, estes meios são muito sofisticados e variados e podemos esperar que eles se desenvolvam ainda mais. Se você acompanha publicações sobre tecnologia irá perceber que já há alguns anos laboratórios de robótica tem feito esforços para desenvolver pequenos drones, que eles chamam “drones-tamanho-mosca”, que podem entrar na residência de uma pessoa, de forma quase invisível, mantendo vigilância constante. Você pode estar certo de que os militares estão muito interessados nisso, e os sistemas de inteligência também. Em breve este tipo de equipamento estará em uso.

Estamos desenvolvendo tecnologias que serão usadas pelos nossos próprios governos e por corporações comerciais com o objetivo de maximizar o acesso à informação, controle e dominação. É esta a forma pela qual os sistemas de poder trabalham. É claro, eles sempre usam o argumento da segurança. Mas, acho que as pessoas devem ser cuidadosas sobre este argumento. Todo governo alega a questão da segurança sempre que pode para justificar suas ações. Assim, como é um argumento previsível, essencialmente não está imbuído de informação adicional. Se olharmos a história vamos descobrir que segurança é geralmente um pretexto e não uma alta prioridade dos governos. Eu me refiro à segurança da população. A segurança do sistema de poder e os seus interesses domésticos, estes sim são uma preocupação para eles.

As mudanças causadas por uma sociedade sem livrarias são muito maiores do que as mudanças causadas pelo desenvolvimento da internet.

Durante sua carreira o senhor tem apontado insistentemente as falhas da grande mídia, especialmente em seu livro “Manufacturing Consent” (Fabricando o Consenso). Qual sua opinião sobre o atual estado da mídia nos Estados Unidos? O senhor vê esperanças em novos modelos?

A internet ofereceu um acesso mais fácil para uma imensa quantidade de informações e opiniões. Mas, eu não acho que foi uma mudança qualitativa. É mais fácil ir à internet do que a uma livraria, sem dúvidas. Mas, as mudanças causadas por uma sociedade sem livrarias são muito maiores do que as mudanças causadas pelo desenvolvimento da internet. A internet permitiu mais acesso, o que é bom, mas por outro lado, isso foi combinado com um processo de enfraquecimento da independência da própria mídia. Há muita crítica a mídia de massa, mas é ela a fonte regular de informação sobre uma imensa quantidade de temas. Você não pode fazer isso nos blogs. Aí está o declínio. Jornais locais, necessários para sua informação, estão ficando muito mais superficiais na cobertura global e mesmo na nacional. E é aí onde estão as verdadeiras fontes de informações. Podemos criticar seu caráter, os preconceitos embutidos nele, suas restrições institucionais, mas não podemos subestimar sua inegável importância destes veículos. Nunca questionei isso.

Acho que, por exemplo, o New York Times permanecerá na liderança do jornalismo impresso por muitos anos ainda. Não vejo nenhum competidor se elevando com a mesma quantidade de recursos e tantos correspondentes mundo afora. Novamente, penso que há muitas críticas a serem feitas a este modelo, mas trata-se de um recurso de informação inestimável. Há também muitos projetos independentes e importantes como o Democracy Now e o Salon, entre outras vozes independentes. Mas, não vejo nenhuma indicação que estas serão experiências radicalmente novas no processo de coleta, análise e distribuição da informação.

Que temas contemporâneos lhe causam mais preocupações?

Bem, podemos fazer uma longa lista, incluindo os temas que discutimos, mas também vale lembrar que, pairando sobre tudo o que falamos, há dois grandes problemas. São temas que afetam seriamente a possibilidade da decência humana sobreviver. Um deles a crescente ameaça de uma catástrofe ambiental, para a qual estamos avançando rapidamente como se estivéssemos ávidos a despencar de um precipício.

A outra é a constante ameaça de guerra nuclear, que não desapareceu. De fato trata-se de algo muito sério e em muitos aspectos uma ameaça que vem se desenvolvendo. Esta segunda ameaça, sabemos, pelo menos em princípio, como lidar com ela. De fato, armas nucleares já estão nas mãos de grupos terroristas. Os Estados Unidos são um deles. É concebível que armas de destruição de massa possam cair em mãos de outros terroristas? Sim. Há um caminho para diminuir de forma significativa esta ameaça. Os métodos não estão sendo aplicados, mas sabemos quais são.

No caso de uma catástrofe ambiental não está nem mesmo claro se há uma forma de controlá-la ou revertê-la. Quanto mais esperarmos, quanto mais adiarmos as medidas, pior esta situação ficará. É perturbador ver que aqueles que tentam liderar uma ação a respeito deste problema são aquelas a que chamamos sociedades “primitivas”. As Primeiras Nações no Canadá, sociedades indígenas na América Central, aborígenes na Austrália. Eles têm estado na linha de frente na luta pela prevenção deste desastre para o qual avançamos. É irônico que os mais ricos e mais poderosos países do planeta estão acelerando rumo ao desastre enquanto as chamadas sociedades primitivas tomam a dianteira na tentativa de refrear este processo.


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